quarta-feira, 29 de outubro de 2014

HAROLDO DE CAMPOS




O ANJO ESQUERDO DA HISTÓRIA

 

os sem-terra afinal
estão assentados na
pleniposse da terra:
de sem-terra passaram a
com-terra:     ei-los
enterrados
desterrados de seu sopro
de vida
aterrados
terrorizados
terra que à terra
torna
pleniposseiros terra-
tenentes de uma
vala (bala) comum:
pelo avesso afinal
entranhados no
lato ventre do
latifúndio
que de im-
produtivo re-
velou-se assim u-
bérrimo:    gerando pingue
messe de
sangue vermelhoso
lavradores sem
lavra ei-
los: afinal com-
vertidos em larvas
em mortuá-
rios despojos:
ataúdes lavrados
na escassa madeira
(matéria)
de si mesmos: a bala assassina
atocaiou-os
mortiassentados
sitibundos
decúbito-abatidos pre-
destinatários de uma
agra (magra)
re (dis)(forme)forma
   fome  − a-
grária:  ei-
los gregária
comunidade de meeiros
do nada:


enver-
gonhada a-
goniada
avexada
− envergoncorroída de
imo-abrasivo re-
morso −
a pátria
(como ufanar-se da?)
apátrida
pranteia os seus des-
possuídos párias −
pátria parricida:
 

 
que talvez só afinal a
espada flamejante
do anjo torto da his-
tória cha-
mejando a contravento e
afogueando os
agrossicários sócios desse
fúnebre sodalício onde a
morte-marechala comanda uma
torva milícia de janízaros-já-
gunços:
somente o anjo esquerdo
da história escovada a
contrapelo com sua
multigirante espada pó-
derá  (quem dera!)  um dia
convocar do ror
nebuloso dos dias vin-
douros o dia
afinal  sobreveniente  do
j u s t o
a j u s t e  de
contas


Haroldo de Campos. Crisantempo: no espaço curvo nasce um. Perspectiva, 2004.

sábado, 25 de outubro de 2014

AH, UM SONETO... DE BRECHT


SOBRE OS POEMAS DE DANTE A BEATRIZ

 
Ainda hoje,na cripta onde jaz
Aquela que ele não pôde fazer sua
Por mais que a seguisse pela rua
Uma emoção forte seu nome nos traz.

Pois ele cuidou de nos mantê-la na memória
Ao dedicar-lhe verso tão sublime
E não pode haver quem não se anime
A acreditar inteira em sua história.

Ah, que mau costume ele inaugurou então
Ao cobrir de louvor arrebatado
O que havia apenas visto e não provado!

Desde que versejou a uma simples visão
Tudo de aparência bela e casta, a qualquer ensejo
Cruzando uma praça, tornou-se objeto de desejo.

 

                                   Tradução de Paulo César Souza

In: Brecht – poemas 1913-1956.  SP: Brasiliense.

 

           

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

BAUDELAIRE: O CISNE


O CISNE

            A Victor Hugo

 

I
Andrômaca, é em ti que eu penso! Aquele rio,
Espelho triste, em que outrora resplandeceu
Tua dor de viúva em majestoso brio,
Simoente irreal que teu choro cresceu,

Súbito fecundou minha fértil saudade,
Quando ia cruzar o Carrossel atual.
A velha Paris não é mais! (uma cidade
Muda mais rápido, ai, que um coração mortal);

Em minha mente vejo o campo de barracas,
Fustes, capitéis numa pilha de bosquejos,
Ervas, pedras que as poças tornam verdes placas, 
Brilhos do bricabraque sobre os azulejos.

Ali ficavam bichos em exibição;
Ali eu vi num dia de céu claro e frio,
No instante em que o trabalho acorda, e um tufão
De lixo vem cortar o ar sombrio em silêncio,

Um cisne, que fugira da gaiola, só,
A esfregar os seus pés no seco pavimento,
E arrastar sua branca plumagem no pó.
Junto ao regato sem água, o bico sedento,

Nervoso, no chão duro as asas mergulhando, 
Seu coração imerso no lago natal,
Dizia: "Sem trovões, sem chuvas, até quando?"
Eu vejo este infeliz, mito estranho e fatal,

Erguer algumas vezes, qual o homem de Ovídio,
Rumo ao azul irônico e cruel dos céus,
A cabeça ansiosa, convulso, em dissídio,
Como a endereçar reprovações a Deus!

II
Paris muda! porém minha melancolia
Não!, andaimes, palácios novos, avenidas,
Blocos, para mim tudo vira alegoria, 
E mais que as pedras, pesam lembranças queridas.

Também em frente ao Louvre uma imagem me oprime:
Penso em meu cisne, no seu gesto delirante,
Tal qual os exilados, grotesco e sublime,
Roído de um desejo sem fim! e adiante,

Andrômaca, em ti, de um grande esposo roubada,
Sob o poder de Pirro, gado sem valor, 
Junto à tumba deserta em êxtase curvada;
Mulher de Heleno, mas a viúva de Heitor!

Penso naquela negra, magricela e tísica,
Os pés na lama, os olhos na procura aflita 
Dos coqueiros ausentes da África magnífica
Por detrás das muralhas de bruma infinita;

Nos que perderam o que não se recupera
Jamais, jamais! nos que lambem suas feridas
E vão mamar na Dor como uma boa fera! 
Nos órfãos magros tal qual flores ressequidas!

No exílio, na floresta onde fiz minha trilha, 
Uma velha Lembrança sopra seus metais!
Penso nos marinheiros deixados na ilha, 
Nos presos, nos vencidos! ... e outros tantos mais!

                                                         Tradução de Duda Machado
 
 
Imagens da Praça do Carrossel em Paris , onde Baudelaire ambientou o poema, e arredores,  no período da reforma urbana contemporânea do poeta, a cargo do Barão Haussmann.



Aspecto da Praça do Carrossel, c. 1870.

Fotografia de Charles Marville
 

LE CYGNE
À Victor Hugo
I
Andromaque, je pense à vous! Ce petit fleuve,
Pauvre et triste miroir où jadis resplendit
L'immense majesté de vos douleurs de veuve,
Ce Simoïs menteur qui par vos pleurs grandit,


A fécondé soudain ma mémoire fertile,
Comme je traversais le nouveau Carrousel.
Le vieux Paris n'est plus (la forme d'une ville
Change plus vite, hélas! que le coeur d'un mortel);


Je ne vois qu'en esprit tout ce camp de baraques,
Ces tas de chapiteaux ébauchés et de fûts,
Les herbes, les gros blocs verdis par l'eau des flaques,
Et, brillant aux carreaux, le bric-à-brac confus.


Là s'étalait jadis une ménagerie;
Là je vis, un matin, à l'heure où sous les cieux
Froids et clairs le Travail s'éveille, où la voirie
Pousse un sombre ouragan dans l'air silencieux,


Un cygne qui s'était évadé de sa cage,
Et, de ses pieds palmés frottant le pavé sec,
Sur le sol raboteux traînait son blanc plumage.
Près d'un ruisseau sans eau la bête ouvrant le bec


Baignait nerveusement ses ailes dans la poudre,
Et disait, le coeur plein de son beau lac natal:
«Eau, quand donc pleuvras-tu? quand tonneras-tu, foudre?»
Je vois ce malheureux, mythe étrange et fatal,


Vers le ciel quelquefois, comme l'homme d'Ovide,
Vers le ciel ironique et cruellement bleu,
Sur son cou convulsif tendant sa tête avide
Comme s'il adressait des reproches à Dieu!




Fotografia de Charles Marville
 

II
Paris change! mais rien dans ma mélancolie
N'a bougé! palais neufs, échafaudages, blocs,
Vieux faubourgs, tout pour moi devient allégorie
Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs.


Aussi devant ce Louvre une image m'opprime:
Je pense à mon grand cygne, avec ses gestes fous,
Comme les exilés, ridicule et sublime
Et rongé d'un désir sans trêve! et puis à vous,


Andromaque, des bras d'un grand époux tombée,
Vil bétail, sous la main du superbe Pyrrhus,
Auprès d'un tombeau vide en extase courbée
Veuve d'Hector, hélas! et femme d'Hélénus!


Je pense à la négresse, amaigrie et phtisique
Piétinant dans la boue, et cherchant, l'oeil hagard,
Les cocotiers absents de la superbe Afrique
Derrière la muraille immense du brouillard;


À quiconque a perdu ce qui ne se retrouve
Jamais, jamais! à ceux qui s'abreuvent de pleurs
Et tètent la Douleur comme une bonne louve!
Aux maigres orphelins séchant comme des fleurs!


Ainsi dans la forêt où mon esprit s'exile
Un vieux Souvenir sonne à plein souffle du cor!
Je pense aux matelots oubliés dans une île,
Aux captifs, aux vaincus!... à bien d'autres encor!


 
Praça Carrossel com o Louvre e a pirâmide invertida, hoje
 

domingo, 12 de outubro de 2014

SOSÍGENES COSTA


O PROCURADO DAS MISSES

 

Uma vez miss Chipre, esse modelo de Coty,
com seu ar de perfume da nobreza,
veio me procurar em Pafos
e foi aquela beleza.

Outra vez, miss Pafos, em conchas de Caron
veio me procurar em Chipre
e foi aquela outra beleza.

Outra vez, se não me engano,
miss Europa, também vestida de princesa,
veio me procurar em Roma
e foi outra beleza.

Outra vez, miss Itália,
veio me procurar, não em Veneza,
mas na Bahia, durante um Santo Antônio
e foi aquela beleza que se viu.
Bendita e louvada seja.
De todas foi a mais rutilantes para o Santo Antônio.

Outra vez, miss Austrália, minto:
foi miss Grécia, de Corinto,
veio me procurar, imaginem, em Antioquia,
e foi a melhor de todas.
Acreditem.  Foi uma glória para mim.

                                                                       (1949)

 

 

Sosígenes Costa.  Obra poética. 2 ed. Cultrix/MEC, 1978.


segunda-feira, 6 de outubro de 2014

ANDRÉ SAMPAIO, TRÊS VEZES

1.

pétala por pétala
devora a voraz lagarta
o salto da flor



2.

cada pedra
um segredo

lapidado à revelia

vão-se os anéis

ficam os medos
vão-se os anos
ficam os dias






3.




    
 Esses poemas de André Sampaio são inéditos.  A intenção do poeta é reunir sua produção no volume Palavraria, para o qual trabalha atualmente na seleção do material.  Abaixo vão os links para as páginas no Facebook tanto de Palavraria quanto de sua  Editora Boto Azul.