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quinta-feira, 4 de maio de 2017

Na urgência de uma cidade... MÁRIO DE ANDRADE DE SÃO PAULO




De Paulicea Desvariada (1922)

ODE AO BURGUÊS

Eu insulto o burguês!  O burguês-níquel,
o  burguês-burguês!
A digestão bem feita de São Paulo!
O homem-curva! O homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampeões! Os condes Joões! Os duques zurros!
que vivem dentro de muros sem pulos
e gemem sangues de alguns milréis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam o “Printemps” com as unhas!

Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá?  Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!

Morte  à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
Ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!
Padaria Suissa!  Morte viva ao Adriano!
“ – Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
- Um colar... – Conto e quinhentos!!!
Mas nós morremos de fome!”

Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte e infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!

Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!

Fora! Fú! Fora o bom burguês!...



NOTURNO

Luzes do Cambuci pelas noites de crime...
Calor!... E as nuvens baixas muito grossas,
feitas de corpos de mariposas,
rumorejando na epiderme das árvores...

Gingam os bondes como um fogo de artifício,
sapateando nos trilhos,
cuspindo um orifício na treva cor de cal...

Num perfume de heliotrópios e de poças
gira uma flor-do-mal... Veio do Turquestan;
e traz olheiras que escurecem almas...
Fundiu esterlinas entre as unhas roxas
nos oscilantes de Ribeirão Preto...

-          Batat’assat’ô furnn!...

Luzes do Cambuci pelas noites de crime!...
Calor... E as nuvens baixas muito grossas,
feitas de corpos de mariposas,
rumorejando na epiderme das árvores...

Um mulato cor de oiro,
Com uma cabeleira feita de alianças polidas...
Violão! “Quando eu morrer...”  Um cheiro pesado de baunilhas
oscila, tomba  e rola no chão...
Ondula no ar a nostalgia das Baías...

E os bondes passam como um fogo de artifício,]
sapateando nos trilhos,
ferindo um orifício na treva cor de cal...

-          Batat’assat’ô furnn!...

Calor!... Os diabos andam no ar
corpos de nuas carregando...
As lassitudes dos sempres imprevistos!
e as almas acordando às mãos dos enlaçados!
Idílios sob os plátanos!...
E o ciúme universal às fanfarras gloriosas
de saias cor de rosa e gravatas cor de rosa!...

Balcões na cautela latejante, onde florem Iracemas
para os encontros dos guerreiros brancos... Brancos?
E que os cães latam nos jardins!
Ninguém, ninguém, ninguém se importa!
Todos embarcam na Alameda dos Beijos da Aventura!
Mas eu... Estas minhas grades em girândolas de jasmins,
enquanto as travessas do Cambuci nos livres
da liberdade dos lábios entreabertos!...

Arlequinal!  Arlequinal!
As nuvens baixas muito grossas,
feitas de corpos de mariposas,
rumorejando na epiderme das árvores...
Mas sobre estas minhas grades em girândolas de jasmins,
o estelário delira em carnagens de luz,
e meu céu é todo um rojão de lágrimas!...

E os bondes passam como um fogo de artifício,
sapateando nos trilhos,
jorrando um orifício na treva cor de cal...

-          Batat’assat’ô furnn!...


Uma sábia e generosa lição na biblioteca do Mestre

De Clã do jabuti (1927)

DOIS POEMAS ACREANOS

I – DESCOBRIMENTO

Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Cahves
De sopetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.

Não vê que me lembrei que lá no norte, meu Deus! muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.

Esse homem é brasileiro que nem eu.


II – ACALANTO DO SERINGUEIRO  (trechos)

Seringueiro brasileiro,
Na escureza da floresta
Seringueiro, dorme.
Ponteando o amor, eu forcejo
Pra cantar uma cantiga
Que faça você dormir.
Que dificuldade enorme!
Quero cantar e não posso,
Quero sentir e não sinto
A palavra brasileira
Que faça você dormir...
Seringueiro, dorme...

Como será a escureza
Desse mato-virgem do Acre?
Como serão os aromas
A macieza ou a aspereza
Desse chão que é também meu?
Que miséria! Eu não escuto
A nota do uirapuru!...
Tenho de  ver por tabela,
Sentir pelo que me contam,
Você, seringueiro do Acre,
Brasileiro que nem eu.
Na escureza da floresta
Seringueiro, dorme.

Seringueiro, seringueiro
Queria enxergar você...
Apalpar você dormindo,
Mansmente, não se assuste,
Afastando esse cabelo
Que escorreu na sua testa.
Algumas coisas eu sei...
Troncudo você não é.
Baixinho, desmerecido,
Pálido, Nossa Senhora!
Parece que nem tem sangue.
Porém, cabra resistente
Está ali. Sei que não é
Bonito nem elegante...
Macambúzio, pouca fala,
Não boxa, não veste roupa
De palm-beach... Enfim não faz
Um desperdício de coisas
Que dão conforto e alegria.

Mas porém é brasileiro,
Brasileiro que nem eu...
Fomos nós dois que botamos
Pra fora Pedro II...
Somos nós dois que devemos
Até os olhos da cara
Pra esses banqueiros de Londres...
Trabalhar nós trabalhamos
Porém pra comprar as pérolas
Do pescocinho da moça
Do deputado Fulano,
Companheiro, dorme!
Porém nunca nos olhamos
Nem ouvimos e nem nunca
Nos ouviremos jamais...
Não sabemos nada um do outro,
Não nos veremos jamais!

Seringueiro, eu não sei nada!
E no entanto estou rodeado
Dum despotismo de livros,
Estes mumbavas que vivem
Chupitando vagarentos
O meu dinheiro o meu sangue
E não dão gosto de amor...
Me sinto bem solitário
No mutirão de sabença
Da minha casa, amolado,
Por tantos livros geniais,
“Sagrados” como se diz...
E não sinto os meus patrícios!
E não sinto os meus gaúchos!
Seringueiro, dorme...
E não sinto os seringueiros
Quem amo de amor infeliz...
Nem você pode pensar
Que algum outro brasileiro
Que seja poeta no sul
Ande se preocupando
Com o seringueiro dormindo,
Desejando pro que dorme
O bem da felicidade...
Essas coisas pra você
Devem ser indiferentes,
Duma indiferença enorme...
Porém eu sou seu amigo
E quero ver si consigo
Não passar na sua vida
Numa indiferença enorme.
Meu desejo e pensamento
         (... numa indiferença enorme...)
Ronda sob as seringueiras
         (... numa indiferença enorme...),
Num amor-de-amigo enorme...

Seringueiro, dorme!
Num amor-de-amigo enorme
Brasileiro, dorme!
Brasileito, dorme.
Num amor-de-amigo enorme
Brasileiro, dorme.

Brasileiro, dorme,
Brasileiro... dorme...

Brasileiro... dorme...




De Lira Paulistana (1945)


Garoa do meu São Paulo,
- Timbre triste de martírios –
Um negro vem vindo, é branco!
Só bem perto fica negro,
Passa e torna a ficar branco.

Meu São Paulo da garoa,
- Londres das neblinas finas –
Um pobre vem vindo, é rico!
Só bem perto fica pobre,
Passa e torna a ficar rico.

Garoa do meu São Paulo,
- Costureira de malditos ´
Vem um rico, vem um branco,
São sempre brancos e ricos...

Garoa, sai dos meus olhos.


Num filme de B. de Mille
Eu vi pela quinta vez
A triste vida de Cristo,
      Rei dos Reis.

Num mictório de São Paulo
Pouco depois li uma vez,
Sobre o desenho dum pênis,
      Rei dos reis.

Num automóvel de luxo,
Sessenta vezes por mês,
Bem barbeado, bom charuto,
      Rei dos reis...

Oh vós todos, homens, homens,
Homens, o escravo sereis,
Si dentro em breve não fordes
      Rei dos reis!


Mário de Andrade (1893-1945)


sexta-feira, 15 de abril de 2016

MÁRIO DE ANDRADE E A PLUTOCRACIA PAULISTA

                                                                                De Lira Paulistana



Moça linda bem tratada,
Três séculos de família,
Burra como uma porta:
Um amor.

 Granfino do despudor,
Esporte, ignorância e sexo,
Burro como uma porta:
Um coió. 

Mulher gordaça, filó
De ouro por todos os poros
Burra como uma porta:
Paciência...

 Plutocrata sem consciência,
Nada porta, terremoto
Que a porta do pobre arromba:
Uma bomba.



Mário de Andrade. Poesias completas, 4 ed. SP: Martins, 1974.

sábado, 27 de junho de 2015

MÁRIO DE ANDRADE


Ilustração de Talarico


CANTO DO MAL DE AMOR

       (1924)

Caminho pela cidade
Sofrendo com mal-de-amor.
Senti que vinha... Seus braços
Era fatal me chamavam,
Parti... Cheio de vontade
E já não tenho vontade,
Percorro a noite, percorro
A noite com mal de amor...

É tarde já... Zero grau.
Hesito mais, indeciso...
Meus irmãos desaparecem
Nos corredores com luz
Donde saltam na calçada
Muitos palhaços de riso,
Até rio... Vaia o jazz.
Caminho pela cidade
Sofrendo com mal-de-amor
Sofrendo com mal-de-amor
Sofrendo com mal-de-amor
Sofrendo. A frase não pára
No meio: com mal-de-amor.

Ironia do contraste,
Militares linhas retas,
Praças claustros seculares
Nunca amaste! nunca amaste!
Névoa filha-de-Maria,
Névoa fria... vida fria...

Não vale a pena ficar
Torturando a minha carne
Com o cilício da esperança,
Arrasto gozos perdidos,
Vim buscar os corredores
Os corredores com luz,
E o eco desses braços nus
Resvalando no céu baixo,
Atordoando os meus ouvidos,
Corro cambaleio azoinam
Meu corpo corpos rangentes,
Estalidos de desejos,
Beijos, ecos estridentes
De braços nus me chamando,
Eu quero! eu quero... Seus braços
Teus abraços boca pele
Seios olhos seios dentes
Corro. O eco explode já perto
Muito, perto muito, forte,
Vejo perfume de fome
Muito forte, muito perto,
Agora... Ela me abre os braços
Viro a esquina, estendo os braços,
Meus abraços nos espaços.
Rua reta, rua reta,
Rua reta, que deserto!...
Os lampiões bem regulares
Com um só olho. São ciclopes.
São eunucos dum harém,
Odalisca, o lampeão pisca,
Não tem mais nada niguém...

O sino cai sobre mim.

São três horas já.... Percorro
A noite com mal de amor...
Pedaços de minha carne
Pelos punhais das esquinas
Vão ficando, vou caminho
Sigo... amor... Sei que não morro,
Vou sigo caminho... é tarde...
É mais adiante! Na esquina!...
Já sei que não é... Aquela
Janela sempre acordada,
É uma puta me chamando,
Dez milréis, mercadoria,
Alfândega, porto de Santos
Oceano atlântico, grande
Mar monótono monótono,
As ondas que vão e vêm,
Os cadáveres nos naufrágios
Serão jogados na areia...
E há praias muito bonitas
Com palmeiras guaranis...
As invenções de Alencar
Ficaram muito inferiores
A esses oásis das praias
Tão verdes, tão verdes, tão,
Tão horrível solidão!...
E o mar ondula e desmaia,
Depois me empurra é fatal
O mar me empurra pra areia
Sou atirado na praia
Das palmeiras, minha rua...
Minha rua das Palmeiras...
Vou sigo caminho.... Longe
Meu quarto... quarto vazio...

Um vago marulhar de ondas
Sai dos meus ouvidos... O eco
Morreu. Um marulhar de ondas...

A miragem se dispersa.

Os braços nem chamam mais...
Sangue da aurora... O padeiro
Passou.
            Última esquina.
                                     Perto
O olho frio do meu quarto...
Nem não tenho carne mais...
Carne mais... Sigo. Caminho...
Destroços de ossos batendo...

Triste triste do andarilho
Carregando para o quarto
Os lábios secos. Inúteis...

 




                   Mário de Andrade. Poesias completas. 4 ed. SP: Martins, 1974.

 

sexta-feira, 6 de abril de 2012

AH, UM SONETO... DE MÁRIO DE ANDRADE

QUARENTA ANOS (27-XII-33)

A vida é para mim, está se vendo
Uma felicidade sem repouso;
Eu nem sei mais si gozo, pois que o gozo
Só pode ser medido em se sofrendo.

Bem sei que tudo é engano, mas sabendo
Disso, persisto em me enganar... eu ouso
Dizer que a vida foi o bem precioso
Que eu adorei.  Foi meu pecado... Horrendo

Seria, agora que a velhice avança,
Que me sinto completo e além da sorte,
Me agarrar a esta vida fementida.

Vou fazer do meu fim minha esperança,
Oh sono, vem!... Que eu quero amar a morte
Com o mesmo engano com que amei a vida.

            In: Poesias completas.

Explicando esse título de seção:         Este blog tem mais ou menos um ano e meio de existência e logo no começo resolvi fazer uma seção especialmente dedicada à públicação de sonetos.  Então redigi esta nota que vai aí abaixo, e que acho oportuno republicar.


        O soneto, como forma poética, está para mim sintetizado nesse belo título que Álvaro de Campos achou para o seu.  Provavelmente a forma mais praticada de poesia ocidental, o soneto só é rígido em mãos inábeis ou apenas esforçadas em consegui-lo: os grandes poetas fazem com que seu sentido mais profundo de forma fixa se movimente imageticamente em bilhões de combinações rítmicas, fônicas, lexicais e mesmo métricas, que a aparente rigidez formal antes ressalta do que escamoteia quando lemos um grande soneto; e só aparentemente é uma forma breve: os grandes sonetos duram enquanto vivemos e os recordamos e gostamos de percorrer, galgar, escalar seus  versos até nos sentirmos à vontade para flanar por eles. Brevidade não implica ligeireza, superficialidade.
        Essa junção de enganosa previsibilidade poética e permanente surpresa me leva sempre a dizer, reverberando Campos, “Ah, um soneto...”
        Vou postar aqui, sob essa rubrica, alguns sonetos de minha profunda admiração.