quarta-feira, 31 de agosto de 2011

"FIRMA IRRECONHECÍVEL", SEXTO SEGMENTO




                    Assinar também
é fera compulsão de sui-
cida, sedução de pre-
cipícios, degustação
de formicida, Assis convul-
so valente, não acordem
o menino, pediu Tor-
quato silente enquanto
o cacho caía, a faca cor-
tava rente, o corpo
despenca da ponte e a
alma flutua fria, em câmera
lenta ardente segue a via-
gem sem guia, em es-
piral descendente se junta
à algaravia, babel invertida
e corruta do sétimo
círculo em frente, assinar
é tão sem volta, ainda
mais quando malogra
o gesto tresloucado,
por faltar na última hora
ou desde o começo pla-
nejado pontaria de
cowboy, posologia
adequada, encapsulada
em coragem, e resta
então só o que fica,
falsa solidariedade,
descrédito na praça,
assunto de pasmatórios,
cômico de nosocômio,
pedrada a quebrar vidraça,
risinhos na vizinhança,
abandono da esperança,
expectativa frustrada.
Quem assina então pede
as bênçãos do esquecimento,
quem assinta no sumiço
da promessa vida adentro
sabe o assunto, a premissa,
da promissória vencida,
do humano endividamento
dos jardins do paraíso
aos umbrais do empreendimento
de frente pro Letes, me-
mento, incorporação e vendas,
chaves no financiamento,
convenção de condomínio,
assinou, entrou tá dentro,
quem assina não descura
de esquecer o pensamento
e a negação do que esquece
dá o tom do que acontece
e nasce e se transfigura
e inexiste a cada momento.
Peido de bactéria Deus
assinou por descuido,
depois de tudo a matéria
começou seu torvelinho,
aves e flores migraram,
grasnaram gralhas no exílio,
símios exímios se ergueram
impuseram seu domínio
Adão e Eva morreram
Darwin reina absoluto
e quem também se fudeu
foi Deus, expulso que foi sem
um puto das igrejas
que fundou como reza o es-
tatuto assinado por
pastor vigário vigarista
astuto que deu ordem de
despejo e marmorizou
o templo e até deixa que Deus
explore um quiosque dos seus
quando mais não seja ao
menos pra ocupar o
seu tempo, que o contrato
se renova bem antes da e-
ternidade e diz que ele as-
sim quis e que o que quis
tá direito, e a cessão de di-
reitos cessa assim que co-
meça o do outro e o preço
da liberdade é o etcétera
mofino, o mundo inteiro
não vale a posse, já se vê,
do que eu assino. Assina-
tura,alma inexistente
bordada em panos de casa,
delicadeza entre
porcelana e cambraia,
toalha de linho na mesa,
caimento exato na saia,
quando o corpo gira em valsa,
quando gota a gota a chuva
em bulha escoa pela calha,
quando o que veste cai ao chão
e pelas pernas o olhar
da insuportável paixão
que no desejo se espraia,
ecoa, sobe, os olhos são
como a boca, a boca é menos
que a mão que é menos que a
boca e falta, e a falta preenche
o todo, todo ilusório
e falta, se beija o pé que
o pisa o desejo em seu
reinado, é férreo o calcar
de leveza, e sob a unha
a mão represa e preme
o sangue que roreja como
quem quer reter em carne,
vermelho quente de lacre
borra de digital muito
mais que assinatura,
então todas as gotas
da pele a toda pele igualam
a pele do outro corpo,
incenso que inunda a casa,
nardo, lótus, mirra, alquena,
em desvãos entre armários,
habitat apaziguado e vão,
hóspede de todo precário,
cântico que Salomão
em seus aposentos entoa,
cercado de redondilhas,
ilhas enrodilhadas, preto
no branco da pele, da pele
do papel e pele, pentelhos
dos que se amam, redondi-
lhas na paisagem, enredond-
ilhadas ilhas arquipe-
lagadas, alheias a toda
margem, a todo além
das ilhargas, nos confins
do corpo clama clama a voz
em sua visagem sem viso
de assinatura só o ama-
do e sua amada só o ama-
do e seu amado a ama-
da e sua amada quentura
cálida de quente
mútuo calor quente
quente calor e mais nada.

In: Firma irreconhecível. Oficina Raquel

Ao fundo o ótimo Réplica das urtigas, de Tatiana Pequeno, lançado na mesma ocasião.

Link para o 5o. segmento. Lá estão os links para os segmentos anteriores. 

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

ESTAVA ESCRITO BOM DIA

E depois que se foi
a felicidade
a gente foi tateando
buscar nossos óculos
(os dedos pegajavam as lentes)
e rápido mas sem pressa saímos
recolhendo pelo chão
brincos
a cueca a calcinha
enroladas nos moletons
jeans, cálices
xícaras
sherry
café
maços e cinzeiros
lambuzados nos sabíamos
sem nenhuma vergonha
e também
que a felicidade se foi
mas vem de novo
embora pela janela nem desse sinal
a boca seca
o alho na porta da geladeira
a imagem do tálamo
tudo volta
antes de para
sempre

sábado, 27 de agosto de 2011

RUY ESPINHEIRA FILHO: DOIS POEMAS

OS BENS MAIORES

O que ficou
além do enlace
é o que mais foi
preso pelo gesto.

O que não foi
tocado é o que
deixou sua marca
mais nítida na mão.

A gaiola vazia
é onde habita
o que há de mais belo
em gorjeio e pássaro.



RELATO DE UM SÚDITO APÓS O PASSEIO MATINAL DO SOBERANO

Fui vê-lo atravessar
            a cidade
mas os guardas vieram
            e me bateram
até que o sangue jorrou
            dos meus olhos

E o séquito imperial
sobre cavalos azuis
transformou-se numa nuvem
vermelha
que era um dragão.

            In: Julgado do vento. Civilização Brasileira, 1979.

sábado, 20 de agosto de 2011

GIORGIO CAPRONI: DOIS POEMAS

NO ESTRIBO
“Vou-me”, disse.
“O que lhes deixo é tudo
o que levo em boa hora.
Tenham saúde. Cuidem
de si mais do que
de mim cuidei eu.
Vou-me para onde,
há tempo, Deus foi-se embora.”


SULLA STAFFA
“Me ne vado”, disse.
Quello che vi lascio, è tutto
quello che mi porto via.
Statemi sani.  Abbiate
cura di voi, più di quanta
di me non ne ho avuta io.
Me ne vado dove,
da tempo, già se n’è andato Dio.”



CONCLUSÃO QUASE NO FIM DA SUBIDA
- Senhor, deve voltar ao vale.
O senhor procura à sua frente
o que deixou para trás.


CONCLUSIONE QUASE AL LIMITE DELLA SALITA
- Signore, deve tornare a valle.
Lei cerca davanti a sé
ciò che há lasciato alle spalle.


 In: A coisa perdida: Agambem comenta Caproni. organização e tradução de Aurora Fornoni Bernardini. Ed. UFSC


domingo, 14 de agosto de 2011

CAROL SABOYA: FOI POUCO




FOI POUCO
(Fred Martins – Roberto Bozzetti)

Amei demais
Além de toda medida
Além quer dizer demais
E sozinha

Amei demais
Depois de tanto castigo
Demais de um abismo
Amei escondido

Presa em mim, descobri
Me perdi a rondar o cais
Pode ser o amor uma dor
Que não se desfaz

Amei demais
Nem sei, e ainda lhe digo
Foi pouco e além do mais
Só por isso eu sigo


Voz: Carol Saboya
Guitarra e arranjo: Ricardo Silveira
Baixo acústico: André Rodrigues
Bateria: Renato “Massa” Calmon

            (in: Carol Saboya. Presente, 2003)

Fred Martins

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

VERANICO

Veranico de agosto
desviou a minha idade
eu jurava que agora
(agora que era agosto)
retomava a solitude
dissipando a neblinagem
onde guardara o que fui

Nunca disse onde era
pra que guardava também
inda mesmo que eu soubesse
veranico dissipou
cortou franjas de friagem
desfez a cama bem feita
avoado me deixou

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

A NOITE OBLÍQUA

Nem sonho nem vigília
serena inquietação
pelo que se quer
e não pode
ser a não ser
pleno agora
palma de mão
ilharga
pele macia
aos dedos os mamilos
sereno dentro e fora
o dia que não tarda
sobre os flancos da garoa
ilha redoma nicho
rede cama ninho
trama a iludir o sono
urdida pela saudade
fina linha de carinho
a hora de se ir já chega
à noite se achega
a manhã
devagarinho.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

DE SABIÁS, MARIPOSAS E OUTROS INSETOS

          A classificação entomológica pouco ortodoxa aí do título vai em homenagem a Seu Antonio do Brejo, antigo morador destas paragens, morto há muito, que uma vez –  eu era moleque ainda – louvando a “imundície de terras” do sitiante Mané Bento (isso tá parecendo caipira fake, mas juro que não só os nomes mas também o “causo” é verdade) disse “Lá ele tem de um tudo, tem porco, boi, vaca, cavalo e outros aninsetos...” Na época não me ocorreu que, à maneira de Rosa, Seu Antonio poderia estar adicionando o prefixo de negação para indicar que se tratava de não-insetos.  Pensando bem, ainda bem que eu não tinha lido Guimarães Rosa ainda.  Nem Seu Antonio o lera jamais. O fato é que Seu Antonio passou a ficar conhecido por mim como Seu Aniceto.
            Pulo fora do causo pra umas anotaçõezinhas despretensiosas, que divido aqui com a paciência do leitor.  É que depois de uma estação fria  como há muito não fazia por estas bandas, aprendi duas maneiras de identificar que o frio maior já passou (infelizmente para mim) e já já começará pra valer a despedida do inverno.  É quando os sabiás retomam o canto.  Sábado anoitecia e vai que eu ouço aquele canto marcantemente monótono, destacando-se em meio a outras vozes menos privilegiadas.  Engraçado é que de início achei que era de algum pássaro forasteiro (o que volta e meia ocorre), mas logo me toquei de sua autoria, me tocando ainda que fazia algum tempo que ele não soava.  Por sinal que neste exato instante eis que de novo o ouço, são 5 e meia da tarde. É que os sabiás que ocorrem por cá (além do manjadíssimo sabiá-laranjeira,  há ainda o sabiá-pardo e, mais raro, o sabiá-una) começam a cantar por agora, quando começam a se acasalar e vão até fins do ano, quando parece que os filhotes já se criaram e vai cada um tratar da sua vida sem muita cantoria. Cantam ao cair da tarde e ao amanhecer, o que ainda não ouvi desta vez.  E no auge de sua felicidade conjugal cantam a qualquer hora do dia e duelam duelam duelam.
            Outra maneira, bem menos bucólica, de identificar o fim do inverno exige rapidez e destreza dos meus dotes de cozinheiro.  É a volta dos insetos, principalmente das mariposinhas pequenas que insistem em mergulhar à noite nas panelas, atraídas pela luz da cozinha e de seus fogos. Fazer comida aqui à noite de janelas abertas,  a partir de agora até a volta do frio,  exige que as luzes de fora estejam acesas e que sempre que possível eu tampe os recipientes onde estou cozinhando. Já perdi alguns azeites deliciosamente aromáticos, quando de seu aquecimento para receber os ingredientes do refogado,  por conta dos mergulhos infaustamente suicidas de insetos que resolvem compartilhar comigo as delícias de minha rústica culinária campestre. Quando é só a água fervente eu lamento pelo pobre diabo mergulhador. Quando é algo mais, xingo em dobro.
            Mais uns três meses chegarão as chuvas mais fortes e o retorno significativo da população de anuros.  Li não sei onde que é uma população perigosamente ameaçada de extinção, no que acredito, uma vez que o uso de pesticidas em escala hiper-industrial certamente extermina os insetos de que eles se alimentam.  Aqui mesmo onde moro, um brejo quase ex-brejo (só retoma sua perigosa dignidade de brejo quando das chuvas fortes), tinha há alguns anos muito mais sapos, rãs e pererecas do que hoje.  Mas ainda eles pintam por cá quando o tempo fica mais úmido.  E aí é a hora de prestar atenção para que não estejam sendo cobiçosamente seguidos por jararacas, urutus e outros rastejantes aninsetos.  Mas aí já será outra estação do ano.