O inquieto, criativo, superativo - numa palavra, MULTI - chapa Felipe Ivanicska, lá das Minas Gerais, anda aprontando com textos meus. O que só posso agradecer. Aqui ele trabalhou em vídeo dois poemas do meu Despreparaação para a morte (Rio: Texto Território, 2017), cujo resultado, para mim excepcional, posto agora, junto com os textos.
Em tempo: a voz leitora é de Carlos Tuviequizal, a quem só posso parabenizar e agradecer.
E OUTROS POEMAS, O IMENSO LIVRINHO DO GUTO LEITE
QUE ME CHEGA DO RIO GRANDE DO SUL
A questão fulcral da poesia que se quer
“do tempo presente”, creio, creem – e assim devem sentir – os poetas é:como ferir a carne dos dias com a
palavra.Falemos por enquanto
metaforicamente.Começa pela
contingência que leva o poeta a escrever
o poema, por certo.Mas lógico que a
questão não é essa, e sim, e sempreé o
resultado.Melhor dizendo:ronda o perigo de o resultado, o poema (ou o
que se pretendeu que fosse) acabar sendo insuficiente, datado, ficar preso ao
circunstancial, no sentido mais flébil do termo. O poeta olhará frustrado, se tiver bom senso de autocrítica,
o seu poema logrado.
Não chego a me considerar poeta.Digo em termos de resultados do que escrevo
ou tento escrever.Nem sombra de falsa
modéstia, é senso de meus limites mesmo, ante o terrível poder da palavra poética, que
me subjuga.Embora, às vezes até ache
que acerto a mão (não disse que não era falsa modéstia?). Por exemplo: reativei este blog, que estava
parado desde 2018, porque me assaltou a urgência de escrever ante os tempos
funestos que vivemos e que se pintam – ou se maquiam, vá saber – com tintas de
eternidade. Maquiagem ou máscara, como advertiu em célebre conferência Mário de
Andrade, da necessidade de “pegar a máscara do tempo e esbofeteá-la como ela
merece”. Tenho escrito esses poemas
últimos que publiquei neste blog premido por essas circunstâncias, premido pela
necessidade –que tenho certeza de que não é vã – de responder ao tempo
presente.Esta necessidade não é vã,
embora os resultados a que chego muitas vezes ou quase sempre o sejam.Aí só o leitor avaliará.
Ferir a carne dos dias com a palavra...
escrevi a frase acima em registro, claro, metafórico. E acabei desdobrando-a em
mais metáforas, mesmo alheias. Para
tentar ficar mais claro, mas no fundo tergiversando, passo para alguns
exemplos:poemas de Brecht e de
Maiakovski conseguiam fazê-lo, feriam a carne dos dias.O Drummond de A rosa do povo (Quem não entra com o russo em Berlim?) e de mais
alguns poemas próximos cronologicamente a esse livro magistral,
certamente.O Mário de Andrade de Lira paulistana, idem (“Terremoto que a
porta do pobre arromba”),O Chico
Buarque assertivo de “Construção” e “Deus lhe pague”, cruel de “As caravanas”, divinatório de “A
flor da terra”, o Caetano de “Um índio”, “Fora da ordem” e da letra de “Haiti”
(a melodia é de Gil), o Gil de “Um sonho”...são alguns exemplos.Talvez esses poucos sejam quase todos, pra
falar a verdade, porque não é coisa fácil conseguir esse efeito de que
falo.E antes que me leiam errado: não
estou dizendo que esses são, qualitativamente, os melhores poetas, ou que são
os melhores poemas e canções desses criadores.O que quer dizer:ferir a carne dos dias com a palavra,
responder com poesia ao tempo presente à altura, não éO critério de
avaliação de um poema ou de uma canção.Mas é sem dúvida um atestado de se ter atingido um grau de excelência no
que foi proposto, a ser confirmado tão somente pelo escrito que o leitor
atualiza.
Não sei se me faço entender.Mas eis que abro um livrinho umas 60 páginas
do Guto Leite, chamado E outros poemas
(Editora Zouk, 2024) e me deparo com um poema inicial já atordoante.Em seguida vem este, que me nocauteia:
o
time que matou meninos em fevereiro
será mais uma vez campeão do brasileiro
trouxe de portugal um treinador
tarimbado
faltou
para a revisão do ar-condicionado
uma zaga segura um meio-campo
entertainer
os
garotos da base ficavam num container
centroavantes mortais em um
esquemaque amassa
é
difícil enxergar quando tem tanta fumaça
a cada gol do artilheiro a galera
delira
não
deu pra socorrer os moleques, que dormiam
aumenta a distância pro segundo
colocado
christian
athila arthur rykelmo pablo bernardo
gedson
jorge samuel vitor morreram dez
todos sabem o que fazer com a bola
nos pés
será mais uma vez campeão do
brasileiro
o
time que matou meninos em fevereiro
É um poema
desconcertante, é um dos tais poemas que ferem a carne dos dias.Tento ser um pouco mais preciso:um poema capaz de dizer do tempo presente em
sua concisão verbal, em sua precisão formal ao mesmo tempo em que, justo por isso, flagra este presente em visada capaz de abranger em imagens terrificantes o esgoto,
o esgoto calcinante em que vamos mais e mais nos tornando, como país, como humanidade, que sei eu, como
seres vinculados ao que chamamos modernidade, ao que chamamos Ocidente, ao que
chamamos capitalismo.Que começa, o
poema,por ser à queima-roupa em quem gosta
de futebol, em quem tem um time, ou já gostou ou já teve e hoje não mais –
volto a meu próprio exemplo.E como não
chorar, a não ser que se seja um canalha, com o absurdo fato da morte dos dez
adolescentes da base de futebol do Flamengo em fevereiro de 2019?Mas o magistral desempenho com que os versos
se desnovelam ante nossos olhos, em um virtuosismo de craque poeta que fala ao
mesmo tempo de futebol, de poesia e do medonho que nos cerca.O belo da criação estética não se perde na
indignação, o belo se faze se queima
dentro do horror que contemplamos: “uma zaga segura, um meio campo
entertainer/os garotos da base ficavam num container”.Me tirou o fôlego.Os dez meninos mortos nomeados em impressionantes
versos de 13 sílabas – chamados “bárbaros”,
será um acaso? – , que se mantêm ao longo de todo o texto.Guto não perde o andamento.
E
o pior, digo, o melhor.Ou: o melhor é o
pior.O livrinho está cheio de poemas
assim, de igual excelência. Que inclusive dialogam amorosa e asperamente com o
melhor legado nosso em poemas, de Drummond (“ó louça infinita, Aleph de
vasilhas,/se em espasmos de tempo sumires inaudita//nós vos recriaremos”) e
outros poetas, em canções de Caetano (“o fim do mundo será por extenso//o
menino do rio/derreteu”) e outros cancionistas (Guto também o é, com três CDs
gravados).São poemas de impressionante
potência e – atenção – , Guto é um poeta residente em Porto Alegre, na Porto
Alegre destes dias trágicos.Seus poemas
premonitórios são espantosos, sem nada
terem de divinatórios: são poemas de um poeta atento, leitor de seu tempo em
suas implicações concretas, sociais, ecológicas. Capaz de poetizar o fato na
medida mesmo em que sabe que fato e fatalidade não podem ser confundidos.
Por exemplo, no
admirável e já citado “causas naturais”, dividido em nove segmentos, o poeta
nos diz no segmento 2:
os
cabelos são arrancados
à
mão
e
um fio d’água
correndo
o cocoruto
se
espalha
imagine
então
as
margens
desarvoradas
de
um rio
E
no encerramento do mesmo poema, no segmento 9:
não
há outro tema que não o fim do mundo
é
obsceno fazer poema sobre o fim do mundo
A
vontade que tenho, para fechar estas páginas de justo elogio disfarçado de
crítica impressionista, é poder me estender a cada um dos poemas o quanto eles-
todos eles – merecem.Quem sabe, me empenho dia desses, num texto de maior fôlego.Por ora, deixo aqui com vocês o também atordoante
“A anoa” (que me remete a Murilo Mendes em sua modernização do arcaico num
livro como Convergência), como um
testemunho de que o tempo presente é sempre, como as pinturas rupestres a que o
texto alude.E que a poesia tem de estar
sempre à sua altura.
Guto
Leite, querido, professor doutor Carlos Augusto Bonifácio Leite, muito obrigado
por estes e outros poemas e canções.
Um
gato vivo é qualquer coisa linda Nada
existe com mais serenidade Mesmo
parado ele caminha ainda As
selvas sinuosas da saudade De
ter sido feroz. À sua vinda Altas
correntes de eletricidade Rompem
do ar as lâminas em cinza Numa
silenciosa tempestade. Por
isso ele está sempre a rir de cada Um
de nós, e a morrer perde o veludo Fica
torpe, ao avesso, opaco, torto Acaba,
é o antigato; porque nada Nada
parece mais com o fim de tudo Que
um gato morto.
Florença, novembro de 1963
MORAES, Vinícius de. Obra reunida v. 1. Org. Eucanaã Ferraz. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.
CANÇÃO SEM VELÓRIO Tanto faz
onde me enterrem a água vai
levar tudo as cinzas,
se me cremarem tomarão rumo
de esgoto engarrafando
o emissário ou chegarei
lá nas Cagarras ou qualquer
outro arquipélago agregado a
mil dejetos cumprindo a
fatalidade deste tempo
em mim inscrita. Deste tempo
em mim inscrito a água vai
levar tudo cravejado de
adesivos QR codes,
códigos indícios de
assassinatos tempos idos
e vividos encharcados
e afogados chegarão lá
nas Cagarras tudo imenso
arquipélago no pélago
das mandíbulas de assassinos
planetários cumprindo a
fatalidade tanto faz
onde me enterrem melhor que
me deixem à tona em cardume
de podridos descurado do
planeta negligente
do universo trânsfuga de
igrejas desertor de falsos
deuses tanto que me
empenhei pra água me
colher cedo liquefazer
remotos ossos revestidos
de adiposes de carvão
fóssil derivados povoado de
adjetivos. De toda
matéria extinta o amálgama
se incompleta a água
levará tudo tanto faz
que não me enterrem tanto tempo
acreditamos em rituais benfazejos encomendas a
divindades ritos de
passagem tolos magias do
insondável luto a ser
respeitado e tudo era
só um lixão retratos
assinaturas eletrodomésticos
joias documentos
em braile conversas
criptografadas divindades
de encomenda enquanto
também na torrente a coroa mais
cara enviada saudades
eternas inscritas
É extraordinário este poema do chileno Pablo Neruda (1904-1973), pela capacidade de falar por um eu poético perverso, reprimido sexualmente, que se enxerga solitário, punido, cercado de demônios libertinos.
Alberto Lins Caldas é pernambucano, com formação em
Geografia e Arqueologia, professor aposentado da UFPE. É autor de vasta obra, tanto na teoria
quanto na narrativa ficcional (contos e romances). Publicou os seguintes livros de poesia: No
Interior da Serpente (Pindorama, Recife, 1987), senhor krauze (Revan, Rio de Janeiro, 2009), Minos (Íbis Libris, Rio de Janeiro, 2011) e De Corpo Presente (Íbis Libris, Rio de Janeiro, 2013), 4x3 - Trílogo in Traduções (Ibis Libris,
Rio de Janeiro, 2014, com Tavinho Paes e
João José de Melo Franco), a perversa
migração das baleias azuis (Ibis Libris, Rio de Janeiro, 2015), a pequena metafisica dos babuinos de
gibraltar (Ibis Libris, Rio de Janeiro, 2016), minha pessoa sob o dominio dos barbaros (Íbis Libris, Rio de
Janeiro, 2018), tantalo (Flan deTal,
Vila do Conde-Portugal, 2019) corpos de
troia (Íbis Libris, Rio de Janeiro, 2021). Publicou ainda poemas em
jornais, blogs e revistas como Coyote, Escamandro, Intempestiva, Eutomia,
Continente Multicultural, Flanzine, Rascunho, Caliban, Gueto, Blecaute,
Incomunidade, Ruído Manifesto, Cândido, Conexão Literatura, Germina, Quatetê,
Pausa, Zona de Impacto, Caderno de Criação, Literatura e Fechadura, Zona da
Palavra, Alagunas, Diversos Afins, Gratuita, Mallarmargens, Tlön, Vallejo and
Company, Gazeta de Poesia Inedita, plaquetes pela Galileu Edições. Participou ainda das antologias: Fandago,
Simultâneos Pulsando: Uma antologia fescenina da poesia brasileira contemporânea,
Poetas Siglo XXI, Pandemoinhos, Vinagre: uma antologia de poetas neobarracos,
Escriptonita: Pop/Poesia, Mitologia-Remix & Super-Heróis de Gibi, Lula
Livre*Lula Livro, Atlas da Literatura Digital Brasileira, Poesia Viva do
Recife, 70 Poemas para Adorno.
O rio
volta a seu leito na
cozinha os utensílios voltam
a cada gancho e
prateleiras assim
os livros no mesmo instante os
filamentos da lâmpada um a um luz gotejam
como a água em cada bica a
viúva é ex-viúva o
viúvo é ex-viúvo no 3 x
4 a identidade recupera
a dignidade na
escola de novo pintada a uva
viu Ivo a
partida é retomada no ovo
do 0 a 0 o gato
volta a seu peixe o
peixe volta a seu rio