sexta-feira, 28 de setembro de 2018


QUATRO CANTOS DO RIO AOS 21 ANOS


            Ainda não está totalmente claro, mas acho que vou reativar este blog, cuja última postagem tinha sido  feita no final de abril, com um poema em que homenageei uma amiga querida, que havia nos deixado há poucos dias.
         Caso eu resolva de fato voltar à atividade blogueira, penso que terei de fazer mudanças importantes quanto ao material postado (nenhum problema com qualidade, nada disso, principalmente das produções alheias, das quais muito me orgulho) e periodicidade.  Mais exatamente: tem mais a ver com as formas de postar.  Os próximos dias e as próximas postagens – ou sua ausência – definirão aos poucos esses caminhos.
         O que me levou a este retomar, por ora provisório, foi o fato de eu ter mais uma vez vasculhado meus arquivos, aquilo que durante muito tempo foi papel e que aos poucos foi virando arquivo de computador, e daí vai que acabei topando com o que era para ter sido meu primeiro livro editado, que nunca saiu,  Pouca vergonha, que seria lançado em 1982 ou 83, já nem sei bem. Já falei dele aqui, acho até que mais de uma vez, bem como já postei poemas que o integrariam, escritos quando eu tinha no geral 20 e poucos anos.
         E eis que me deparando de novo com esses textos, resolvi que cabe agora postar quatro deles de 1977, que têm a cidade do Rio como presença – explícita ou apenas sugerida.  Enfim, sem querer me estender mais, ei-los aí.

 

 

 

SÃO COSMIDAMIÃO





os restos dos dias
escorrem na pele
com o suor do rosto
se ganha suor

o espírito come o pão
que o diabo vende




RÉQUIEM


o dia amanheceu enforcado num poste da avenida
e os proscritos
                   pedra pedra pedra
rindo
de sua figura grotesca
                            balouçante
                   inerte

um sentimento carniceiro pousou
a rodear o cadáver

os pequenos marginais urbanos
                   pivetes
                   putas
                   gigolôs
                   assaltantes a mão armada
resolveram estender seus horários
de trabalho
                   - a vida
                   clamava por uma solução

está lá.  roxo.
não suave prenúncio de auroras
mas asfixiado.




VALSA DE UMA CIDADE


viver no Rio
         me deixou alguma beleza nas retinas

                            o ônibus célere entre manhãs
                                                        despindo
                            árvores, pardais
                            a mais no carinho do olhar
                            Praça Paris
                            memórias
                                        e mesmo
                            futuras esperanças

- paisagem útil, inútil paisagem -

vês?

                            impulso assassino, simples tique
                            de suicídio     a nuca entre arestas
                            estas mãos que não se decidem:
                                               plena oferta
                                                                  ou
                                               trêmula recusa
                            esta vertigem de becos celestes
                            um estertor premonitório o corpo
                            destrinchado por 4 rodas
                            - sensação de aguardar perícia

                            contraponto entre
                   fera e medo
viver no Rio.




(“É proibido o uso de aparelhos sonoros no interior deste veículo” - diz o aviso.  No entanto a transmissão clandestina se faz ouvir no rádio clandestino do poeta


Praça Paris


     ao sol da manhã
                        os mendigos
               os pombos

a mãe fala:
somos todos irmãos

o menino inventa:
 a palavra fratrifagia




                                                                  melhor desligar antes que o
                                                                  trocador descubra)

segunda-feira, 30 de abril de 2018

POEMA DOS FINS


(DILUÍDO DE AUGUSTO DE CAMPOS)
                                     

                              para Rosemary Granja


Diante do fim sempre a pergunta:
Com que fim
resvala o corpo ao ermo?

Silenciosos sós como pós
nós nos
vivemos na orla do cosmos

Por muitos átimos
intermitentes
vazios  entre orgasmos

habitamos - e nos olhamos
nas cismas
de almas a esmo

Os que aqui ficamos
nos abraçamos
como um fim em si mesmo.


Foto: Carolina Bezerra

segunda-feira, 9 de abril de 2018

CINCO POEMAS DE EDSON PEREIRA S.: marEmoto


Construí-los de água e sal
Dar-lhes movimentos de marés
Cores de oceano
E navegá-los

Cometer naufrágios
Dando-lhes mistérios

Construí-los com melodia de marulho
E silêncio abissal
Calcareamente brancos
Como coração de concha

Povoar de espécies
Plâncton, nécton, bentos

Construí-los reto horizonte
E deixar-los ir
Vela, vento
Asa

Linha, traço, rota
Solitude

2

Anoiteço
Sem estrelas, sem lua
Noite apenas

Navego
Escuro, só
Negras vagas

Até onde possa
Aportar
Manhã


3

Que saudade do trem
Trenzinho
Leopoldina
Caipira

Levava a gente
A Nictherói
Seis horas de viagem
Ansiedade e pó

Na partida
A despedida
Lenço branco de cambraia
De interior

Porto do Carro
Campo Redondo
Adeus ainda
Na nossa cabeça

Araruama
Sampaio Correia
Trilho
Fumaça

Na estação
Cidade grande
Olhos grandes
De espanto

Cabo Frio ficou
No convento
Na ponte
No anjo caído

4


Reside o vento em mim
Como nas palmeiras
Há muito faz
É dono do emaranhado do meu cabelo
Há muito faz
Nordeste, sudoeste
Nas velas do pensamento

Mas sou comandante desse barco
Não discernisse o rumo
Seria naufrágio
Donde reside o vento
Donde resido vento

Linha do sol, sextante, compasso
Traço a rota
Caço a vela
Miro a proa
Nessas águas de vento


5
Quando veio o vento
Eram noturnos e
Ébrios
Dançavam boleros

E quando vieram
Os peixes da chuva
Suas bocas morriam
Em inverno e verão
Tempo e frenesi
De libélulas

Até que veio a manhã
E fez deles
Uma rosa estiagem
De outono






        Sera lançado nesta terça-feira, dia 10 de abril, o livro de poemas de Edson Pereira S., para o qual tive a honra de ser convidado a escrever a orelha de apresentação, que posto a seguir:

Mar substantivo
         A escrita em marEmoto distingue-se de saída pela sobriedade, pela  inênfase da voz poética: dicção elíptica,  poucos adjetivos que, quando presentes, é como se quisessem passar despercebidos: via de regra, designam pouco mais que  a cor ou são apenas fantasmagoricamente visíveis em locuções adjetivas (“latitudes de auroras/longitudes de poentes”), ou ainda “disfarçados” em advérbios,  a qualidade rarefazendo-se em circunstância: “naufragarei navio”. Quando brilham em inventividade são ótimos achados de substantivos em função adjetiva, no que a antiga retórica cataloga como enálages: “amor nave”/”cabelos Atlânticos”.   Porque o que prevalece aqui é a concretude,  são os nomes que, frequentemente remetendo ao mar,  designam o  horizonte do todo, mais do que sua ambientação; em especial na segunda parte do volume os verbos deixam claro a que vieram,  respondendo pelo  efetivo movimento designado no título por “moto”, imagem axial  a comandar em  boa medida os principais efeitos da leitura do livro: veja-se, por exemplo, como  a ideia de estabilidade, de fundamento presente,  num dos melhores poemas do livro,  no correlato “residência”,   assim se resolve no  seu contrário : “Reside o vento em mim/Como nas palmeiras/Há muito faz/(...) Donde reside o vento/Donde resido vento”. Observe-se que não é “onde”, é “donde”, com uma implícita sugestão não da plácida ideia da estabilidade do morar, mas de ser proveniente de algum lugar, ou seja, habitar (n)a mudança, como a dizer que é tudo movente, de modo tal  que  os próprios significados de águas e de vento entram na íntima relação de aproximação amorosa, o  que é uma das pedras de toque de toda boa poesia: “Nessas águas de vento”.  Em marEmoto o horizonte é o movimento. Do mar à terra,  daí às anotações da vida social na terceira parte do volume, quando, nos últimos poemas,  o acidental parece atingir a própria dimensão gráfica dos textos. Poética da concretude que parte do mar e dele e nele lança suas redes: Pancetti e Caymmi sempre souberam da substantiva  inextricabilidade de mar e movimento.”





          Amigo de longa data que sou do autor, deixo que ele mesmo se apresente, tal como está em marEmoto:

Edson Pereira da Silva assina aqui Edson Pereira S. para não incomodar soletrando tanto alemão da primeira versão (ou seria judeu, digo, novo cristão?). Nascido em Cabo Frio, onde foi criado, sua terra virou quimera (em todos os maus sentidos). Hoje exilado em Niterói, está longe um oceano donde viveu sete anos e lhe trouxe de volta um avião, embora a alma ainda nade em indecisas águas. E a poesia? Como diria Mário de Andrade:

Todo escritor acredita na valia do que escreve
Si mostra é por vaidade
Si não mostra
É por vaidade também.

Resolvida, então, esta questão (?). Quanto às musas, estão todas implícitas, quanto às crenças, estão todas explícitas e não se fala mais nisso. Não tem celular, navega mal na internet (tantos naufrágios...), mas tem e-mail para correspondência (gbmedson@vm.uff.br) embora seja preciso um pouco de paciência, se a pessoa desejar, realmente, uma resposta. Todos os poemas daqui são antigos, como já está ficando ele mesmo.


Edson Pereira da Silva. marEmoto.  Rio de Janeiro: Editora Texto Território, 2018. 


sábado, 17 de março de 2018

46502




I


Tantos cadáveres empilhados
naquelas tais fotografias
doem
(sabê-los
dói)

Se você não resistir e mais uma vez voltar
atrás
não se transformará em manequim de sal
a aguardar o contato da agência internacional
nem perderá para sempre o seu amor
sorvido em trevas pelo melhor contrato publicitário
de vossas  vidas.
Se mais uma vez você não resistir
e voltar e olhar
pra trás
doerá de novo
ver as mesmas fotos com tantos cadáveres empilhados
como doeu
quando pela primeira vez você viu as fotos
de Treblinka e Auschwitz
quando o mundo pela primeira vez viu as fotos
de Treblinkla, Sobibor, Auschwitz
como dói a cada vez que voltamos a elas para as olharmos
(uma dor que chega a dar certo conforto
- e por isso  voltamos a elas?).
As fotos registraram e certamente ficarão aí para sempre
ao menos enquanto durar nosso sempre
que estamos descobrindo também perecível

- mas sem conforto o que dói
é que os cadáveres empilhados numa quase imperceptível diacronia
vão sendo apagados

nós também os vamos apagando
cada caso cada corpo cada rosto cada nome
cada circunstância de que já não sabemos
não lembramos
nem onde pusemos sua foto
(sabê-lo, sim
dói)







II


Não se empilham mais cadáveres como antigamente
embora pegue fogo a maré
embora haja fogo no alemão
os assassinos mandam recado claro
repercutido pelo corajoso pânico das vítimas potenciais
queremos que o bairro queime e que todo mundo
o mundo todo fique sabendo
como se lapidássemos um coletivo epitáfio

não existe amor no RJ
não existe amor em SP
ninguém mais morre de amor
no largo do Estácio

mas somos 46502
e muitos mais.














quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

GUTO LEITE


       
 


       Talvez um instrumento o que se houve ao fundo, o sexto livro de poemas de Guto Leite, mineiro de BH radicado em Porto Alegre, onde é professor de Literatura Brasileira na UFRGS, começa a ser corajoso pela provocação contida na homofonia do  título.  Provoca o leitor, claro que a pressupor um leitor dado às frequentações da poesia.    E continua a ser corajoso em seu texto de abertura, “A queda”, toda uma primeira seção do volume feita de um bloco maciço de prosa poética sem pausas,  a exigir fôlego, controle da respiração e da volúpia,  a exigir uma familiaridade com um tipo de texto pouco comum entre nós (só entre nós?) já um século depois de Joyce, que se faz presente somente  nos raros e rarefeitos vislumbres atingidos por, pra ficar na prata da casa, o Leminski de Catatau, o Waly de Me segura que eu vou dar um troço, Gramiro de Mattos (Ramirão ão ão) de Urubu-Rei e poucos mais, sem falar nas Galáxias de Haroldo de Campos.  Difícil recortar algo para dar de exemplo ao leitor aqui dessa descida do poeta às várias mortes de seu Inferno, sugerido pela epígrafe do Canto I da Comédia (sem designação de autoria) e pela afirmação do prefaciador, que nos assegura estarmos diante de um todo que dialoga com a obra máxima de Dante.

         Mas “A queda” oferece súbitas  recompensas de intenso prazer epifânico, entremeado com árduos esforços da escalada (para baixo é escalada?).  Na dificuldade de tomar um trecho bem delineado como exemplo dessa aventura inicial, dou ao leitor sua página de abertura:

da primeira vez que morri foi uma
espécie de  susto puxei o ar inutil
mente ar não era o problema e cai

como do sono no horror macio da c
ama da segunda de súbito uma dor
aguda rasgou-me do peito para cá f
ora farpa extensa e pontuda quede
i esquecido feito estopa velha da
terceira descobri tarde que estava
morrendo uma centena de células pó
r vez apodreciam no tronco jeito
que deus inventou pra matar a clãs
se média não há o que fazer lembro
de ouvir antes da vertigem e entre
o que fora e o que era formou-se
uma ponte fina de ataduras soros
analgésicos choros de familiares d
a quarta intervi magroexasperado m
e leve logo cortemos o papo derr
ame sua foice do modo que for cond
uza-me rápido para o outro lado do
rio  retire-me já dos demais  viv
entes a morte premente que é o a
caso enlutado cansou-se de mim e
em uma voz de mil séculos  bradou


        Mas o melhor nem é buscarmos  confirmar e reconhecer – ou não – nas diversas “estações” de Guto o diálogo cheio de negaças também, por exemplo,  com as estações de Rimbaud:  o melhor será se entregar de início ao gozo de seu livro, fruindo cada texto em sua singularidade. Assim a segunda seção, toda em rascantes textos curtos (veja-se no recorte que fiz abaixo os dois primeiros e os dois últimos poemas, todos sem título),  bem como a terceira seção, onde o poeta permite se espraiar mais em extensão e diálogos explícitos (veja-se o extraordinário “Poema tirado de duas notícias de jornal”, a que o ilustrador Talarico deu aqui sua valiosa contribuição).  O leitor nem tão familiarizado assim com um universo poético muito vasto poderá, ele também, ter muito a fruir de todo o convívio – e poesia é arte de convívio, longo, fiel e amoroso – com os poemas deste Talvez um instrumento o que se houve ao fundo.


         E como isto não é uma resenha, pretendendo ser mais uma apresentação o mais digna possível deste poeta (por sinal, ele é também cancionista, tendo já dois CDs lançados, mas a isso volto em outra ocasião)que conheci pelas redes sociais (o lado bom da coisa), vai aqui uma breve mostra de sua poesia:

         se teu verso não causa
         náusea ou suicídio
         é propaganda

x

         os nascidos até hoje
         menos os vivos
         morreram

         quando é a tua esperança



POEMA TIRADO DE DUAS NOTÍCIAS DE JORNAL

no dia 25 de outubro de 1975
um próprio cinto
casado
pai de dois filhos
apresentou-se no paraíso
para esclarecimentos

no dia seguinte
constrangido
pelas relações que não tinha
com o partido
enforcou-se
nas grades da cela

para isso
usou o pescoço
cheio de roxos
de vladimir herzog

hoje o paraíso é tombado

segundo o Condephaat
a construção
aspas
possui apelo estético
particular
e carrega uma difícil simbologia
política

fecha aspas




VALERÁ A PENA

valerá a pena
criarmos códigos
memórias juntos
filhos & ódios

se um dia os lábios
de um dos dois
fossem fissurados
por ausências

valerá a pena
amarrar afetos
dividir espasmos
e concretos

se um dia a vida
de um dos dois
estiver submersa
de pretéritos


VALERÁ A PENA

valerá a pena
parear destinos
combinar tecidos
temperos & agendas

se um dia a tarde
para um dos dois
impuser seu corpo
vagarosimensa

valerá a pena
sobrepor os panos
suspender os planos
suspirar os sábados

se um dia imóvel
um dos dois
compulsoriamente
romper com o pacto


x

não gaste anestesia
com a negrinha

x

isso não é poesia
por isso é poesia


Guto Leite.  Talvez um instrumento o que se houve ao fundo. Belo Horizonte: Moinhos, 2017.