quinta-feira, 30 de junho de 2011

NOIVADO

Minha namorada é noiva. Ela mora na Tijuca, estudou nos Santos Anjos e tem um nome a zelar. Ao qual em breve se juntará o do afortunado consorte.  O fuzileiro naval sonha em ser mariner, mas por enquanto é apenas noivo.
Nas domingueiras no Tijuca Tênis Clube ela sabe que mulher não pode dançar com mulher, nem mãe com filha a pretexto de comemorar por exemplo as bodas de ouro daqueles que já foram noivos um dia.  Os seguranças se aproximam e com muito tato dizem: “é pra não abrir precedentes pra atitudes lésbicas”.
Ele, muito longe, sonha com os US Corps, com o retorno à base mutilado e zumbizado e com um futuro de corno de guerra.  Sabe que dificilmente se realizará.
Eu nunca fui noivo mas a minha namorada é.  Nunca morei na Tijuca, onde ela mora.  Nunca sonhei ser mariner mas meu comborço também não será.   Provavelmente ele trará de seus giros pelo mundo muitos badulaques, que talvez com o tempo, juntos,  aprendam a discernir do que é ourivesaria.  Ela abrigará tudo no patrimônio do casal, não se desfará nunca de nada, pois em tudo ela identificará sinceridade e gratidão de corações mútuos, e tudo lhe recordará o feliz momento: das longes terras em que ele se encontrava, quando dela ele se lembrou, do arroubo que o fez comprar, da forma de pagamento que adotou, do embrulho que mandou caprichar, do carinho quando lhe ofertou, de quão bonita ela ficou ao usar.
Do varejo de Copacabana ou de Madureira trago prendas que ora lhe ofereço: borboletinhas clitorianas, lingeries comestíveis, bolinhas de sabores variados para o sexo oral.  E trepamos toda a noite, enquanto a Via-Láctea como um pálio aberto cintila. Ele saberá guiar-se pelas constelações.
Ela ensina inglês e já explicou bilhões de vezes para um monte de idiotinhas a diferença entre o present tense e o present continuous.  Namorar e noivar para eles são ações contínuas.  Para mim, namorar é sempre present tense.  Noivar, não tenho idéia.
Mas estou adorando namorar uma noiva.  Quando ela casar, talvez me separe.  Talvez procure outra noiva.



 


In: Firma irreconhecível. Oficina Raquel, 2009.


terça-feira, 28 de junho de 2011

DOROTHY PARKER






EM SUMA

Navalhas doem,
ácido mancha,
o rio molha,
drogas dão cãibra;
arma é ilegal,
laço desfaz-se,
gás cheira mal.
Viva: é mais fácil.
                       
            Tradução de Nelson Ascher



RÉSUMÉ

Razors pain you – ,
Rivers are damp:
Acids stain you;
And drugs cause cramp.
Guns aren’t lawful;
Nooses give;
Gas smells awful;
You might as well live.


In: Nelson Ascher. Poesia alheia: 124 poemas traduzidos, Imago, 1998.

sábado, 25 de junho de 2011

ANTÓNIO GEDEÃO

POEMA DO ALEGRE DESESPERO

Compreende-se que lá para o ano três mil e tal
ninguém se lembre de certo Fernão barbudo
que plantava couves em Oliveira do Hospital,

ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Dores
que tirou um retrato toda vestida de veludo
sentada num canapé junto de um vaso com flores.

Compreende-se.

E até mesmo que já ninguém se lembre que houve três impérios no Egipto
(o Alto Império, o Médio Império e o Baixo Império)
com muitos faraós, todos a caminharem de lado e a fazerem tudo de perfil,
e o Estrabão, o Artaxerpes, e o Xenofonte, e o Heraclito,
e o desfiladeiro das Termópilas, e a mulher do Péricles, e a retirada dos dez mil,
e os reis de barbas encaracoladas que eram senhores de muitas terras,
que conquistavam o Lácio e perdiam o Épiro, e conquistavam o Épiro e perdiam o Lácio,

e passavam a vida inteira a fazer guerras,
e quando batiam com o pé no chão faziam tremer todo o palácio,
e o resto tudo por aí fora,
e a Guerra dos Cem Anos,
e a Invencível Armada,
e as campanhas de Napoleão,
e a bomba de hidrogénio,
e os poemas de António Gedeão.

Compreende-se.

Mais império menos império,
mais faraó menos faraó,
será tudo um vastíssimo cemitério,
cacos, cinzas e pó.

Compreende-se.
Lá para o ano três mil e tal.

E o nosso sofrimento para que serviu afinal?

In: António Gedeão. Obra poética, 2001.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

AH, UM SONETO... DE DANTE MILANO

          (Dedico esta postagem a Márcia Rios, com quem outro dia eu conversava sobre o poeta.)


O amor de agora é o mesmo amor de outrora
Em que concentro o espírito abstraído,
Um sentimento que não tem sentido,
Uma parte de mim que se evapora.
Amor que me alimenta e me devora,
E este pressentimento indefinido
Que me causa a impressão de andar perdido
Em busca de outrem pela vida afora.
Assim percorro uma existência incerta
Como quem sonha, noutro mundo acorda,
E em sua treva um ser de luz desperta.
E sinto, como o céu visto do inferno,
Na vida que contenho, mas transborda,
Qualquer coisa de agora mas de eterno.

Dante Milano. Poesia e prosa, 1979.

domingo, 19 de junho de 2011

RASCUNHO PARA UMA BAILADORA QUASE LUSA

Como as bailarinas
amadas por Cabral
ela tem o peso audível
ao fugir do chão
e ao chão tornar.

Nunca a vi pairar
nunca lhe vi corola
aura, auréola nem
aquela fímbria entre o corpo
esguio e o mundo etéreo.

Com pentelhos, veios
e furor, fulgura
ante o átimo da carne
pousa na memória
como num fundo de coral

e aos destruí-lo, e à areia
revolver,   e esfacelar
mesmo a âncora, incorpora
o que é ferro e à flor
d’água paira,  mas

tangível à vista:
o logro da leveza
submerge para sempre.
O que nela é vero
dá-se a ver à tona.

sábado, 18 de junho de 2011

EUGENIO MONTALE

SEGUNDO TESTAMENTO

Não sei se um testamento equilibrado
entre a prosa e a poesia triunfará sobre o nada
do que nos sobrevive.
O tom oracular da versificação
não cairá na indiferença,
e um fragmento, uma parte da minha
impotência, me vingará do anterior
e do ignoto.  Nunca escolhi a estrada
mais batida, porém aceitei o fato
em seu engodo de sempre.
E agora que o fim se aproxima atiro
minha garrafa que talvez dará lugar
a uma bela algazarra.
Nunca nos restou um vácuo onde desaparecer
já outros graças à recordação ressurgiram,
deixai em paz os vivos para reviverem
os mortos: no além eu quero é divertir-me.



SECONDO TESTAMENTO

Non so se um testamento in bilico
tra prosa e poesía  vincerá el niente
di ciò che sopravvive.
L’oraculare tono della versificazione
non cadrà nell’indifferenza
e un brandello, una parte dela mia
impotenza farà vendetta del prima
e dell’ignoto.  Non scelsi mai la strada
più battuta, ma accettai il fato
nel suo inganno di sempre.
Ed ora che s’approssima la fine getto
la mia bottiglia che forse dará luogo
a um vero parapiglia.
No vi è mai un nulla iu cui sparire
già altri grazie al ricordi son risorti,
lasciate in pace i vivi per rinvivire
i morti: nell’aldilà mi voglio divertire.

 IN: Diário póstumo, Eugenio Montale.  trad. Ivo Barroso, 2000.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

A FARAONA, A PINTADE, A GALINHOLA, O CAPOTE: GALINHA D’ANGOLA


          Se isto aqui fosse uma seção ou um blog de receitas, eu diria que aproveito que é sexta-feira para inspirar os leitores a capricharem no almoço de fim-de-semana, aproveitando o friozinho que anda fazendo (acho que até peguei o estilo, não?).  Não dou as receitas porque não teria jamais a pretensão, sou cozinheiro amador e autodidata (que vergonha, caro leitor, escrevi  quatro linhas e já fui duas vezes ao dicionário: uma pra confirmar se “seção” no sentido que uso aqui é com cedilha mesmo; outra, pra ver se tem hífen em autodidata, oh céus!), mas como eu dizia, sou amador e autodidata,  e comigo a coisa funciona muitas vezes como tentativa-e-erro (sei, sei, os hífens aqui não são recomendáveis e tal, mas assim eu acho que fica menos rúim – e isso agora é uma homenagem ao Mário. Que Mário? O de Andrade, claro). Mas tergiverso.  Vou começar de novo – o que é, falando nisso, diferente de “torno a repetir”.
Sem receita, só inspiração, só istorinha (sei, sei, Guimarães Rosa escrevia “estória” etc).  Foi no domingo passado, 12 de junho, data que o comércio mais rico desdenha, segundo fiquei sabendo na Bárbara Gancia, pois o Dia dos Namorados seria uma “comemoração classe C”, já que o pessoal parece que pouco compra além das flores – acho até que compra uma só, com a desculpa de que fica mais pessoal – e da caixinha de bombons. Bom, mas não importa.  Quero dizer, importa sim.
                Porque recebi um amigo para almoçar aqui no brejo.  Ele não é classe C, visto não ter dado importância à data, uma vez que a namorada dele, que  certamente também não é, está na Europa (se bem que segundo as estatísticas que a imprensa não cansa de destacar, “gente que nunca voou está voando para os destinos antes mais impensáveis...” – bom,mas isso também não importa. E não importa mesmo).  Pois ele veio do Rio até o brejo,  e ao chegar lembrei-lhe que era Dia dos Namorados  e não apenas, lembrei-lhe que passaríamos juntos.  Ele fez charme de tolinho (estou imaginando a cara dele ao ler isto aqui), disse que ia embora, até que lhe mostrei as coxas da galinha d’angola que eu ia fazer pro nosso almoço fraterno.
                De vez em quando eu penso em criar umas bichinhas (estou falando das galinhas d’angola, não do meu amigo) dessas aqui no meu brejo, acrescentá-las ao plantel de galinhas, patos, perus e gansos do quintal.  Depois desse almoço exitoso volto a pensar em criá-las.  Não tem maior mistério, mas como é um bicho um tanto selvagem é preciso tomar certos cuidados. Como, por exemplo, confiná-las, tendo que pôr uma cobertura para evitar que voem.  Como não me agrada a idéia de encarcerá-las em cubículos, teria que ser uma área razoavelmente grande, com cobertura grande. E cara. Se forem criadas soltas no amplo cercado do galinheiro,  é preciso estar constantemente cortando-lhes  as asas,  caso contrário é preciso armar-se de disposição e sair por esses matos afora  quando elas resolverem passear mais longe.  Inclusive conseguir recuperar as fujonas  antes que algum aventureiro...
                Bom, mas enquanto não tomo nenhuma decisão prática sobre o assunto, falarei aqui do almoço.  Comprei umas coxas de capote, que é como se diz no Nordeste,  e resolvi cozinhá-las em uma água com alho-porró, aipo, tomilho, uma folhinha de louro e umas pimentas da Jamaica.  O resultado do caldo, aromático, depois eu conto.    para as coxas, fiz uma mistura de mel, suco de laranja, páprica e mostarda,  e pincelei essa mistura antes de remetê-las ao forno para dourar.
                Para acompanhar... bem, um arroz integral com manga e pinhões passados na manteiga por cima: pinhão é uma delícia, e de maio a julho encontro-os frescos por aqui, produção praticamente silvestre que vem da região do Itatiaia. Ainda  umas batatinhas miúdas cozidas no vapor com alhos e aspargos,  e depois passadas no azeite com tomilho e alecrim, o tempo suficiente para que peguem uma crostazinha e os aspargos não se desmanchem.  O legal é cozinhar o alho com casca e tudo e depois amassar , retirando a casca e banhando no azeite que salteou as batatas, juntando  pimenta do reino e umas gotas de limão, de modo a forrar  a travessa que vai receber as batatas e os aspargos.  E uma saladinha de verdes crus aqui do quintal: mostarda, rúcula, alfaces, agrião e acelga.
                Ficou um belíssimo almoço, sendo que o caldo do cozimento eu coei e guardei no freezer.  Aí, umas três noites depois, com o frio que anda fazendo aqui, a rondar a casa dos 10 graus, retirei do caldo a gordura excessiva, acrescentei um pouco mais de água e nele cozinhei uns maravilhosos inhames do quintal, tenros e adocicados  a mais não poder.  Como tinham sobrado alguns pinhões, cozinhei-os também, e aí juntei o caldo da faraona – como se diz na Itália – com o inhame já praticamente derretido e mais os pinhões,  e bati tudo no liquidificador.  À parte, como tinha usado toda a carne da galinhola,  peguei um filé de frango, temperei, cortei miudinho e grelhei, dando-lhe ainda uma flambada em cachaça.  Aí pus esses pedacinhos no caldo, cortei em lascas alguns pinhões reservados, salsinha e... ficou do jeito que está aí na foto um tanto canhestra.  Pena o  blog não ter sabor (eu tô que tô jornalista de receita hoje, não é mesmo?).
                Ah, faltou dizer.  No almoço abri um ótimo malbec da Don Laurindo.  Só não teve flores e bombons para que não nos confundam: afinal, eu e o meu amigo  não somos classe C.
               

terça-feira, 14 de junho de 2011

ECLIPSE

Ela sempre soube que a lua
uivava-a. Eu, que a lua agora
contemplo, sem ela sofro
agulhas  na crua ausência
de seu dorso perolado, cor
que a lua ainda mais baldia
torna mais vazia a voz sem uivo
o céu como se não, como se
eclipse.

Ela sempre soube e eu não
sabia, ouvia apenas, o ouvido
colado assim  todo o corpo
a ela entregue submetia-
-me, sumia-me, jazia quase
e sobre mim ela mais desejada
a sua íris jade, pérola da pele
anulando a lua a cidade,
eclipse.

sábado, 11 de junho de 2011

BANHEIRO

impresso em papel
o cu
visto do avesso
jaz
no fundo do cesto

água-
-forte em tom pastel
seco
até a curvatura
oca

rumo ao monturo
alhures
         - azares da rima
         da vista
na casa onde
se entrou
- visita.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

AH, UM SONETO... DE JORGE DE LIMA

De Invenção de Orfeu,

Do  Canto VI – Canto da desaparição

I

Aqui é o fim do mundo, aqui é o fim do mundo
em que até aves vêm cantar para encerrá-lo.
Em cada poço, dorme um cadáver, no fundo,
e nos vastos areais – ossadas de cavalo.

Entre as aves do céu: igual carnificina:
se dormires cansado, à face do deserto,
quando acordares hás de te assustar.  Por certo,
corvos te espreitarão sobre cada colina.

E, se entoas teu canto a essas aves (teu canto
que é debaixo dos céus, a mais triste canção),
vem das aves a voz repetindo teu pranto.

E, entre teu angustiado e surpreendido espanto,
tangê-las-á de ti, de ti mesmo, em que estão
esses corvos fatais.  E esses corvos não vão.

Poesia Completa de Jorge de Lima.  Nova Fronteira, 1980.

Célia Pedrosa lança livro na UFF

A professora e pesquisadora Célia Pedrosa lança seu livro sobre poesia contemporânea.

domingo, 5 de junho de 2011

"FIRMA IRRECONHECÍVEL", 3o. SEGMENTO



"Firma irreconhecível" é o longo poema que dá título ao meu segundo livro de poemas, lançado em 2009, pela Oficina Raquel.   Postei anteriormente os dois primeiros segmentos, posto hoje o terceiro (ao final, os links para os dois primeiros):

A assinatura não passa
do que leva do que se faz
ao que se conserva,
alvo de tédio e de con-
trovérsia, descaminho
disfarçado de tolice
ou platitude, ardil de
onça, ardor de caiena
dissolvida em calda quente,
conversa de gáudio gaudério,
sesquipedal quadrupe-
dia a dia onde se en-
contrem vadios em hos-
pital ou cemitério.
Assinatura é rabo
de lagartixa e o resto do
corpo é o óbvio que
se espicha, o ovni, o ob,
o ó do borogodóvio,
o bode de Dioniso, o tísico
de Tribobó, o leproso
de Pouso Alto, a querer re-
atar, a buscar o istmo
que de novo o ligue à grei
da tara e do vício dis-
farçados do salutar con-
vívio dos mortos em vida,
da perfídia dos que se
sabem ou se pensam vivos,
viúvos de si mesmos,
úvulas em riste a se que-
rerem ouvidas nos campos
da eternidade, Arcturo,
Sírius. Nonada, quirera,
xerém, falsa jóia,  ouro
de tolo, joio, chicharro,
cachorro, quinquilharia,
cd pirata, emenda, as-
sinatura não vale nada,
nem o que pesa, nem o
que se pensa, fedor de flor
que não se cheire, fru-
ta que não se morda,
jaca, abacaxi, melão
pêra de cera, uva de lata,
estrela de latão, per-
fume que não cativa,
garganta boa pra forca,
bacalhal de plural  falso,
falta de sal na açorda,
tripa da fina ou grossa,
molde de medir merda,
cigarro de báli, sombrinha
de usar em chuva que
não abre quando chove,
vale muito a assinatura
de 1,99
buchada de bode, estro-
gonofe de bofe, churras-
co de baiacu, de tudo que
cai no mundo hai na feira
de Caruaru.  Assinar
com pesar o óbito, pá
de cal na discórdia e noi-
te eterna encomendada,
bilhete de suicida, falso
risinho de mofa, fama
de uranista post-mor-
tem coisa que só fudendo,
laranja de beira-estrada,
assinar não vale nada,
não prende a prenda
que se quer, não paga a pe-
na que nem se sente, nem
a praga que se roga à por-
ta do leito da amada,
na cabeceira do doente,
não apaga o malefício
da palavra violada ou
do silêncio conveniente.
Isto quer dizer que assina
qualquer um que se exima
de ver na vera ravina
voraz voçoroca rapina
o futuro da  selva sel-
vagem cerrada na moto
-serra, na certidão libe-
rada, sacramentada e estu-
prada, dada a taipa para
casa, estuque de escavação,
senhora nossa da lapa,
da penha, do parto, de pu-
tas velhas matronas, mada-
lenas de redevu, no mei
da rua o diabo com toda
a documentação, atrás
de quem reconheça por
legítima sentença doce
promessa de prêmio, cortejo
de romaria, santarrões
de putaria, canibais
negando crença. Assinar
também se assina rega-bofe
de bacana, carta de vinho,
cardápio, quadro de giz
na esquina, comidakilo,
latrina onde se mete
o de Duchamps na goe-
la, perfuratriz de vagina,
almofariz de tolete,
servida em fino banquete,
assinado: omelete aux fines
herbes, quoi c’est ça,
c’est la mer de tout le
monde aboli,  muco,
remela, mingau, alheira,
moela, jiló, silveira,
salteada na frigideira,
flambada em pernod anis,
meleca da cozinheira,
focinheira nas crianças,
pra que não metam o nariz
por sob a toalha fina
e descubram a lingüiça
marinada em serotonina
na delicada mão da moça,
ansiosa de que o bálsamo
da salivação da língua à
pica prepare o desfe-
cho no  esguicho que a
roliça rola lança e a
mão pressurosa assina.
Letra ilegível em receita
não recomenda o que as-
sina, como quem de vista
conhece mas não re-
conhece viva a vítima,
salva do estado crítico
pra morrer pessoalmente,
tubo,  seringa, sonda,
ampola, comadre, dreno,
a agulha que busca o
medo, percebida em rai-
o x 0 x 0 xô!,
com a vida, doença que ma-
ta muito a medicina
mata mais, não quer ficar
para trás mas não quer le-
var a fama, gato vive sete
vidas, no rabo dá septi-
cemia, médico chega, mede
o risco, risca o corte, extrai
o quisto, mas era só cisco
no olho e não do cu, e ganhou
cisto o vigarista  do E-
varisto, e de noite no
oaristo do médico e da es-
posamante diz-se acabe
logo com isto, siga em frente,
vá adiante, morrer todo mundo
morre, se não for depois
                                               é antes.

Link para o 1o. segmento:
   
Link para o 2o. segmento:



quinta-feira, 2 de junho de 2011

MÁRIO DE ANDRADE, "RECONHECIMENTO DE NÊMESIS"

Mário por Anita Malfatti
RECONHECIMENTO DE NÊMESIS
                                    (Março de 1926)


Mão morena dele pousa
No meu braço... Estremeci.
Sou eu quando era guri
Esse garoto feioso.
Eu era assim mesmo... Eu era
Olhos e cabelos só.
Tão vulgar que fazia dó.
Nenhuma fruta não viera
Madurando temporã.
Eu era menino mesmo,
Menino... Cabelos só,
Que à custa de muita escova
E de muita brilhantina,
Me ondulavam na cabeça
Que nem sapé na lagoa
Si vem brisando a manhã.

É gente que não compreendo
Os saudosos do passado,
Nem os gratos... Relembrança
Porta muito raramente
Nos olhos dos ocupados.
Por isso enxergo sem gosto
A casa da minha infância,
Casão meio espandongado
Onde meu pai se acabou.
Só mesmo o que é bem de agora
Possui direito de lágrima,
Sofrer... pois sim, mas lutando
Pela replanta brotando,
Sofrer sim, mas porém nunca
Sofrer puxando memória
Pelo café que secou.

Mário por Di Cavalcanti




No entanto quando sucede
Mais braba a vileza humana
Arranhar na minha porta,
Não sei porque o curumim
Que eu já fui, surge e se bota
Assim rentinho de mim.
Será que é um anjo-da-guarda?...
Não sei não... Creio que não.
Ele faz que não me enxerga,
Que não me conhece... Mão
Morena sempre pousando
No meu ombro, aluada muito!
Até o menino inteirinho
É que nem cousa perdida
E não dá tento de si.
Possui a vida sem vida
Das sombras. Assombração.
Remexe por todo o quarto,
Não desloca nenhum traste,
Se vê bem que não faz parte
Do grupo dos meus amigos...
Volta-e-meia vem e pousa
No meu braço a mão morena...
É um silêncio atravessando
O corpo manso das cousas.
Eu também si o reconheço
É só porque sofro agreste,
E embora grudando a vista
No livro, eu faça de conta
Que não reparo no tal,
Minha alma espia o menino
Enquanto a vista devora
Uma sopa de aletria
Feita de letras malucas.
Mas ele não vai-se embora,
E o vulto do curumim,
Sem piedade, me recorda
A minha presença em mim.

Só isso.  E por causa disso
Não posso fugir de mim!
Não posso ser como os outros!
Riso não pega de enxerto,
Ser mau carece raiz...
E confessando que sofro,
Não sei si é pela coragem,
Mas tenho como uma aragem
E fico bem mais feliz.
Menino, tu me recordas
A minha presença em mim!
Mário por Tarsila do Amaral
... A primeira vez que veio,
Tive uma alegria enorme,
Gostei de ver que já era
Bem mais taludo e mais forte
Que em pequeno e que possuía
Uma alma aquecida pelo
Fogo humano do universo.
Segunda vez me irritou.
Fui covarde, fui perverso,
Peguei no tal, lhe ensinei
A indecente dança-do-ombro.
Não quis saber, foi-se embora.
E quando não o vi mais,
Sozinho, me arrependi.
A terceira vez é agora
E eu... não sei... não gosto dele
Mas não quero que o rapaz
Me deixe sozinho aqui.
Não danço mais dança-do-ombro!
Eu reconheço que sofro!

Ah! malvadeza brutaça
Dos indivíduos humanos,
Dos humanos desta praça!
Ah! homens filhos-da-puta,
Gente bem ruim, bem odiando,
Homens bem homens, grandiosos
Na sua inveja acordada!
Grandiosos na força bruta,
Na estupidez desvelada!
Que heroísmo sem inocência,
O do sujeito esquecendo
Do remorso e da consciência!
Ôh! força reta, bem homem,
De ser talqualmente os mares,
E os movimentos do mundo!
Perversidades solares
Da magrém! Ser matapau!
Sucuri, raio, minuano!
Forçura destes humanos,
Iguais na perversidade,
Iguais na imbecilidade,
Na calúnia, iguais no ciúme!...
Mário por Portinari
Concientemente implacáveis!
Imperiais no riso mau!...
Ota, cabra demográfico,
Jornaleiro do azedume,
Secreção de baço podre,
Alma em que a sífilis deu!
Burrice gorda, indiscreta,
Veneranda... Homo imbecilis,
Invejado pelo poeta...
Viva piolho de galinha!
Êh! home, bosta de Deus!

Menino, sai! Eu te odeio,
Menino assombrado, feio,
Menino de mim, menino,
Menino trelento, que enches
Com teus silêncios puríssimos
A bulha dos meus desejos,
Que nem a calma da tarde
Vence a bulha da cidade...
Menino mau, que me impedes
De entrar também pro recheio
Das estatísticas... sai!
Menino vago, sem nome,
Que me embebes inteirinho
Nesta amargura visguenta
Pelos homens! Pelos homens!...
Mário por Lasar Segall

Puxa! Rapazes, minha alma,
Comprida que não se acaba,
Está negra tal-e-qual
Fruta seca de goiaba!
Meus olhos tão gostadores
Nem tem mais gosto de olhar!
E pela primeira vez
O murmurejo natal
Desta vida está sem graça,
E eu só desejo uma calma
Que apagasse até meus ais!
Tudo amarga porque os homens
Me amargaram por demais!
Uma tristeza profunda,
Uma fadiga profunda,
E até, miseravelmente,
O projeto inconfessável
De parar...

                                   Menino, sai!
Você é o estranho periódico
Que me separa do ritmo
Unânime desta vida...
E o que é pior, você relembra
Em mim o que geralmente
Se acaba ao primeiro sopro:
Você renova a presença
De mim em mim mesmo... e eu sofro.

É tarde. Vamos dormir.
Amanhã escrevo o artigo,
Respondo cartas, almoço,
Depois tomo o bonde e sigo
Para o trabalho... Depois...
Depois o mesmo... Depois,
Enquanto fora os malévolos
Se preocupam com ele,
Vorazes feito caprinos,
Nesta rua Lopes Chaves
Tem um homem concertando
As cruzes do seu destino.

In: Poesias completas. Martins, 1974