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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

JOSÉ CARLOS CAPINAM

INQUISITORIAL

I
Cúmplices da comoção moderna,
Galhofamos no teatro e no cinema
Ante o III Reich.

Galhofamos do desencontro
Entre discurso e realidade.

(Mas a perda do sincrônico
Se dá por nossa memória
Ou pelo             dedo de Chaplin.

Ao tempo real, eram ambos coerentes:
Discurso e realidade.)

II
Quando um soldado capenga
Surgir em cena,
Não compreenda, e se compreender,
Não ria – porque não estamos
Ante um soldado nem ante o III Reich.

Quando um tanque se precipitar
Da ponte,
Não cante, e se cantar,
Não dance – porque não estamos
Ante a firmeza do tanque e a verdadeira ponte.

E quando um gueto se sublevar
E for morto heroicamente,
Não comente, e se comentar,
Não glorifique – porque não houve heróis,
Só houve homens no III Reich.

E, ademais, não se diga
Indigno o III Reich.
Porque não houve indignidades,
Só houve o tempo.
O tempo não tem adjetivos: é ou foi e faz-se.

III
Agora, amadureço a questão.

Nós prontamente solidários com a memória
(Compromisso sem perigos)
E o desespero irreparável dos mortos,
Se àquele tempo presentes e vivos,

Como veríamos o III Reich?

IV
(Para responder, não te transfiras
A cômodo, como agora,
Busca adquirir a cidadania alemã
E depois, estável, responde:

Ao curso de fuzis e verdades da época
– considerando o risco de tua estabilidade –
Operário ou proprietário da Mercedes Benz,

O que farias no III Reich?)

V
Em nós o tempo é o mais humano,
E hoje de homem não temos senão o tempo ganho,
Fração de um tempo maior
Que a vagar se compõe, tão árduo.

Por isso pergunto:
Em todos os tribunais passados,
Que lado ocuparíamos

Pois que somos mas não somos ante o tempo
E também seus acidentes
Históricos e geográficos,
As estações a carência e os meses?

Se ainda fosse abril,
O que faríamos sendo em tempo do III Reich?

VI
Agora que estimamos
A incerteza
Ante o III Reich;

Agora que estimamos
Menos perigosa
A participação da memória

E muito menos eficaz;
Pergunto: tu, ante o presente,
Como te defines ao que será passado?

Há urgência de resposta, antes que a noite chegue.

Carregarás fardos para evitar
(Repara que o rio corre e a noite vem como onda)
Ou deixarás que apenas sejamos o tempo
E irreparável memória?

VII
Como existir e ser ante o III Reich
E qualquer um outro tempo de inquisição?

Diante escolha dada sem senões:
Vida ou absolutamente nada,
O nada mais roído,
O nada mais raspado,
Sem pontes ou rios, sem rios, sem pontes
Às fugas e navegações?

Ao dizermos sim, estamos com eles.
Não, e nos perderiam de tudo, mesmo de nossa intimidade,
E, na praça,
Sorririam de nossa solidão, nossa extrema solidão, nossa solidão na morte,
Conseqüência deste caminho de contradição.

(Quando semelhante escolha
Nos vierem pedir,
Que coisa diremos
Se só temos a vida,
A necessidade de preservá-la
E a compulsão de defini-la?

O que agir, se o que agimos
Nos define a vida
E a consciência
Desta mesma vida
Ante seus momentos
E ela mesma ainda?)

Ah, como louvamos o tempo
Que nos põe distantes,
Só importando em memória
A nossa escolha e saída.

VIII
(Como nenhum roteiro são
As navegações do barco,

Não há previsões que possam conceber o que seja
Anterior ao seu ato.

Qual a determinação da cidade
E do caminho ideal de abordagem

Não evitam a pedra
Calmaria e tempestade.

Portanto, ainda mais se complica a questão
Do que ser ante o III Reich.)

IX
Nada a perguntar
Se esquemática, fatal e somente

Judeu fosse judeu
E operário, operário.

E não como são:
Eles e, inclusive, o III Reich.

(Ao existir nos pomos, às vezes,
Cúmplices da contradição.

De outra forma, nada seria dramático,
A simples previsão do roteiro salvaria o barco.)

X
Pois, sendo judeu ou operário
O que fazer ante o III Reich?

Se pretensa vinculação mais ampla, de homem,
Te impede de responder

Com vinculação real de raça ou classe,
Onde não se é bom ou mau homem,

Mas mau negociante ou bom operário,
Lembra-te do acordo de ato e consciência que possui o III Reich.

Então, como te farias um homem
Ante o III Reich?

(Isto não é tão simples como aplaudir ou chorar,
Comprometido com Chaplin.)

XI
Tenho medo da imaginação
E de todas as travessias
Onde me possa superar a correnteza do rio.
Sinto medo de mim solto às divagações,
Onde não me determino.
(Mas que faria se já não fosse outono
E já não estivesse na outra margem do rio?)

Dou graças aos que passaram
E submergiram.  Bendigo os que se comprometeram
Com o erro, para que eu não tivesse
De vacilar quanto ao lugar de vau
Para atravessar este rio
Da existência, tão largo, tão humano e extensamente largo,

E arrancar o fruto do outro lado.

XII
Não quis dizer que a tudo justifica o tempo:
Fora, fazê-lo, assaz temerário.
Nem tentei um poema para desesperar:
Diverge o intento.  Quero dizer que o tempo não reflui
E inexiste chance de se provar a resposta
Do que seríamos ante o III Reich, mãos de SS ou meras mãos de inocente,
Participação mais grave que a dos que fizeram por bom senso
Ou interesse indefensável.

Escrevi para então,
Aos que dizem não posso, tenho limitações,
Posso ser posto de lado, à margem de direitos e comodidades,
Ou aos que têm dúvida de que a mudança é ótima.
Escrevi aos lúcidos, aos que mais rápido entendem o símbolo
E outra qualquer linguagem, aos que, entretanto, calam.
Acuso este bom senso de salvar-se
Roubando balsas ao barco
Que se tomou para viagem.

Mas tenho certeza de que, se apenas
Esses existissem, ainda amargaríamos o III Reich,
Como fruto constante
Na boca:

Fruto que não se come nem se joga fora.

Escrevo e sei que a todo tempo houve outros,
Com estes aprendo e me comovo,
E mesmo que soçobre o barco num relativo naufrágio,
Me mantenho atento às perseguições do porto.

In: José Carlos Capinan.  Inquisitorial.  2 ed. Civilização Brasileira, 1995.


Torquato Neto, Caetano e Capinan, c. 1966
 
               Em outubro de 1967, pouco antes de receber o prêmio dividido com Edu Lobo pela vitória da parceria dos dois, “Ponteio”, no III Festival de Música popular da TV Record, Capinan, o autor da letra, recebeu a notícia do assassinato de Ernesto Che Guevara nas selvas bolivianas, ocorrido alguns dias antes.  Nos bastidores do festival (considerado o mais importante de todos os festivais de canção, e sobre o qual aliás foi feito o ótimo documentário Uma noite em 67, disponível em DVD), Capinan escreveu a letra de “Soy loco por ti, América” e a entregou a Gilberto Gil, que no mesmo evento obteria o segundo lugar com “Domingo no parque”.  Essa história foi contada pelo próprio Capinan em uma entrevista, e penso ser suficiente para demonstrar a importância da obra deste poeta e letrista de canções no panorama da cultura brasileira dos últimos 40 e pouco anos.
            José Carlos Capinan é não apenas o estupendo letrista de “Ponteio” e “Soy loco por ti, América”, com parceiros que naquele momento estavam começando a se distanciar um do outro em suas propostas no panorama da MPB:  o tropicalista Gil (que na célebre foto de capa do disco Tropicália ou Panis et circensis, segura a foto de Capinan em bem comportada roupa de formatura) e o não-tropicalista Edu.  Capinan já vinha compondo e ainda comporia  outras magníficas canções com Edu e Gil, além de tê-lo feito ainda com muitos outros:  “Clarice”, por exemplo, com Caetano;  com Jards Macalé várias, entre elas  “Movimento dos barcos”, http://robertobozzetti.blogspot.com/2011/02/movimento-dos-barcos-jards-macale.html
além do escândalo de “Gotham City” em 1969; com João Bosco compôs aquele que talvez tenha sido seu maior sucesso de massa, “Papel maché”; com Paulinho da Viola, seu compadre, a extraordinária “Mais que a lei da gravidade” e muitas outras.  Isso para citar apenas de passagem outro parceiros como Sueli Costa, Xangai, Geraldo Azevedo, Fagner, Francis Hime e outros e outros, resultando num total que deve andar perto de 200 letras compostas.
            A complexidade e a excelência deste poeta letrista ficam claras quando se pensa no arco de criadores tão diferentes e nas propostas tão diversas que sua lírica atingiu – quando a letra é de Capinan é possível ver que sua assinatura confere uma marca própria no interior da obra de seu parceiro: isso impede, é óbvio, que se possa falar em “ecletismo”.  Mas hoje quero abordar o poema postado acima,   “Inquisitorial”.  “Inquisitorial” poema e  Inquisitorial livro.
            O livro Inquisitorial teve sua primeira edição, em pequena tiragem e, reza a lenda, circulação quase clandestina, em 1964. Há pouco tempo eu soube que a editora Civilização Brasileira o reeditara em 1995 e o adquiri.  Leio-o devagar, como exige esta poesia densa, incrivelmente densa e complexa, embora clara, de uma clareza que às vezes confunde, pelo esforço de depuração testemunhado em cada verso.  Em um poema, diz Capinan: “Mentira que o poema sublime/O medo e o sofrimento./O poema é trabalhado, dói, o poema é amargo.” O leitor é testemunha; o poeta é o exigente artífice dessa depuração e clareza.
O grande diferencial entre a primeira edição e a de 95 é sem dúvida a introdução de José Guilherme Merquior: o ensaio “Capinan e a nova lírica”, escrito em “Paris, abril de 1968”, e que Merquior houvera incluído em um de seus primeiros livros, o excelente Astúcia da mimese (por sinal que a obra de Merquior, vasta e valiosa,  está para ser toda relançada, com organização de João Cezar de Castro Rocha). Para esta 2ª. edição, a viúva de Merquior liberou a publicação do texto, conforme consta em agradecimento editorial.
            Li o poema “Inquisitorial” pela primeira vez nos idos de 1970 e poucos, incluído num volume de “poesia participante”  também da Civilização Brasileira, chamado Poesia viva. Eu não conhecia ainda o estudo de Merquior, nem universitário eu era.  Também naquela época, caso o tivesse lido, não o teria entendido, dadas as referências que o costuram e a complexidade com que o brilhante raciocínio do estudioso as articula.  Por falar nisso, está ali, nesse texto,  uma das mais importantes sínteses da poesia brasileira do século 20, que se torna mais impressionante ainda quando se considera a pouca distância temporal com que fora escrito.  Vim a ler o ensaio depois, já num período avançado do curso (por sinal, é desejável que se volte a ler a obra de Merquior nos cursos de letras, vinte anos após sua morte). Mas há muito de notável em que um poeta nitidamente alinhado à esquerda tenha chamado a atenção de Merquior, identificado sempre pela esquerda mais tacanha como um desprezível direitista.  Afinal, o que teria Capinan, militante comunista até os anos 70 (ou seja, atravessando a época mais violenta da repressão policial-militar), para atrair Merquior, que gostava de se definir como “social-democrata em política e anarquista em cultura”, além “liberal em economia”, e o levar a escrever o célebre ensaio – note-se: às vésperas do “maio de 68” em plena Paris?  As razões para isso são duas e nenhuma delas é desprezível: a qualidade da poesia política de Inquisitorial é altíssima (Merquior exclui dessa avaliação a terceira parte do volume, que seriam os primeiros poemas de Capinan); a segunda razão é que a honestidade intelectual de Merquior é exemplo raro no Brasil. Ao longo de toda sua vida, que se interrompeu quando ele não tinha ainda 50 anos, se não erro, Merquior foi um polemista feroz, escudado numa profunda inteligência e em assombrosa erudição: mas soube como poucos reconhecer o valor daqueles que muito diferente dele pensavam.
            Voltando a Capinan, o fato é que desde então poucos poemas de marcado vinco social ou político me impressionaram como “Inquisitorial” (na antologia em que o conheci, em meio a outros, seu destaque para mim era incontestável); creio mesmo que na literatura brasileira ele só encontra paralelo no “Nosso tempo”, de Drummond. E é, como no poema do mestre itabirano, um texto atravessado pela urgência do “tempo presente”; só que eu arriscaria a dizer que Capinan o faz atravessado pelo caráter dramático não exatamente (ou não apenas) do tempo – “o tempo não tem adjetivos: é ou foi e faz-se”, ele nos alerta –  mas do homem que vive seu tempo:  em Drummond,  no “tempo de partido/tempo de homens partidos” a tomada de posição é clara, quase que imediata; em Capinan, se a tomada de posição – “do que ser ante o III Reich” – também é clara,  ela vem somente após um lento, doloroso, percuciente desenrolar de observações que visam a remover o principal obstáculo da questão: o logro produzido pela cumplicidade da memória/história  com o mito,  personificado para e pela  nossa “comoção moderna” na figura do “Great Dictator” de Chaplin.  Esse obstáculo precisa ser removido para que o poema ao se fazer político não transija com o rigor da exigência de uma tomada de posição ética, irredutível ao brilho fácil dos clichês demagógicos.   No jovem Capinan parece nítida a lição de Brecht.
O poema ”Inquisitorial” leva o leitor ao desconforto, ao incômodo;  no entanto, parece-me também  implacável em seu poder de sedução pelas imagens, como na parte II, em que nos socorremos de nosso acervo de imagens cinematográficas na memória e somos quase que flagrados a endossar acriticamente o discurso do vencedor, por cruéis e repulsivos que tenham sido, no caso, o discurso e a prática do derrotado.  O poema se flagra, flagra o poeta e seus leitores ante o momento histórico brasileiro também: “Se ainda fosse abril/o que faríamos sendo em tempo do III Reich?” (...) “Mas que faria se já não fosse outono/e já não estivesse na outra margem do rio?”.  Sabemos  o quanto foram conturbados em termos político-institucionais os anos da primeira metade da década de 60 no Brasil, o quanto mesmo em seu todo a própria década foi intensa em torno da politização dos debates e das exigências de ação política.  O que torna ainda mais admirável a queda-de-braço de Capinan com as exigências éticas que em última análise se impõe e impõe à sua poesia: através do caminho que passa pelo leitor, que a este enlaça e ao poeta, a exigência ética assume uma dimensão que é verdadeiramente ontológica, indissociável da prática da poesia: “Escrevi aos lúcidos, aos que mais rápido entendem o símbolo/e outra qualquer linguagem, ao que, entretanto, calam./Acuso este bom senso de salvar-se/roubando balsas ao barco/que se tomou para viagem.” Ao dizer desta forma na última parte de seu poema, quero dizer, ao passar do discurso argumentativo ao imagístico, pela intermediação e explicitação do símbolo, Capinan mantém teso o arco de não acumpliciar-se com o conforto da memória, que nos leva a todos a “aplaudir ou chorar/comprometido com Chaplin.”  Mas que não se confunde quanto à posição política que sabe valer: afinal, como está em “Compreensão do bem”, o último poema do livro: “Em si, como todas as coisas, o bem não existe:/pelo mal se define e contradiz”.  
Essa poética do mais acerado rigor radica-se ainda, Merquior bem o detecta em seu ensaio, numa profunda compreensão da lição dos mestres modernistas brasileiros (mas não somente).  Eu diria que sobretudo da lição de João Cabral, se bem que ao lançar mão de estilemas que no poema “Inquisitorial”  despistam aqueles mais óbvios do mestre pernambucano, tal procedimento sutiliza o que poderia ser facilmente “denunciado” como “influência”.   O jovem Capinan em seus 22 ou 23 anos  (impressionante a junção de juventude e talento dessa geração e dessa turma, é só pensar, por exemplo nos companheiros de MPB) soube driblar também mais esse possível inconveniente, quer este fosse tomado como sendo da ordem do  “pastiche” ou da “diluição”. 
E assim, temos que a importância de Capinan está não apenas em que com ele a poesia de caráter abertamente político mostrou-se equipada para enfrentar os perigos do discurso panfletário, demagógico, do bom-mocismo bem intencionado em que tantas vezes cai a verborragia “política”  (heranças possíveis ainda do nosso condoreirismo), mas também que essa espinha dorsal do rigor e das exigências da lucidez certamente compuseram muito da diferença entre a politização da “canção de protesto” e a da canção tropicalista e pós-tropicalista (na qual a virulência crítica acabaria por se somar a uma politização do cotidiano e do comportamento).  Afinal, no admirável trabalho poético do letrista Capinan, a complexidade de uma letra como a de “Ponteio” está tão distante do protesto mais simplório de suas “similares nordestinas” quanto  revela muito mais afinidade com a tropicalista “Soy loco por ti, América” (o mergulho meio às cegas, "desembestado" num mundo de forças indomáveis, ante o qual o homem periga sempre ficar um tanto à deriva).    “Inquisitorial” (tanto o excepcional poema quanto o livro)  possivelmente desempenhou para seu criador,  e quem sabe para a postura política tropicalista,  esse papel depurador das armadilhas fáceis do discurso demagógico. 



quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

ERA 1973, ERA GILBERTO GIL

(1a. parte)


Fiquei sabendo graças à postagem do meu amigo Marcelo Méndez no seu ótimohttp://www.pastilhascoloridas.com/2011/12/albuns-classicos-gilberto-gil-ao-vivo.html

de alguns fatos que envolveram esse quase mítico show de Gilberto Gil para os estudantes da Politécnica da USP em maio de 1973.  Então, antes de mais nada, cabe dizer que para  o mínimo de informação que os mais novos precisem sobre as circunstâncias imediatas do show e o contexto da época, recomendo a leitura do ótimo texto do Marcelo ali mesmo no link.  O repertório completo do show vai aqui:

1.       ORIENTE  (Gil)
2.       CHICLETE COM BANANA (Gordurinha – Almira Castilho)
3.       MINHA NEGA NA JANELA (Germano Mathias)
4.       SENHOR DELEGADO (Germano Mathias)
5.       EU QUERO UM SAMBA(Haroldo Barbosa – Janet de Almeida)
6.       MEIO DE CAMPO (Gil)
7.       CÁLICE (Gil – Chico Buarque)
8.       O SONHO ACABOU (Gil)
9.       LADEIRA DA PREGUIÇA  (Gil)
10.   EXPRESSO 2222 (Gil)
11.   PROCISSÃO (Gil)
12.   DOMINGO NO PARQUE  (Gil)
13.   UMEBOSHI(Gil)
14.   OBJETO SIM OBJETO NÃO  (Gil)
15.   ELE E EU  (Gil)
16.   DUPLO SENTIDO (Gil)
17.   CIDADE DO SALVADOR  (Gil)
18.   IANSÃ (Gil – Caetano Veloso)
19.   SÓ QUERO UM XODÓ (Dominguinhos – Anastácia)
20.   EDITH COOPER (Gil)
21.   BACK IN BAHIA  (Gil)
22.   FILHOS DE GANDHI  (Gil)
23.   PRECISO APRENDER A SÓ SER  (Gil)
24.   CÁLICE  (Gil – Chico)

Nota Pessoal 1: Posso dizer que eu venho daquelas eras, já que em 1973 eu tinha 17 anos, estava no ensino médio, e procurava acompanhar com interesse o que ia pelo Brasil e pelo mundo. Talvez eu fosse até um pouco além da média, numa época em que a circulação de informações, com a censura oficial nas redações dos jornais, era dificultada sob qualquer pretexto pela ditadura Médici.  No plano mais corriqueiro  do cotidiano corriam soltas as ameaças ostensivas ou veladas (por exemplo, a constante presença ou ameaça de presença  de agentes disfarçados de alunos nas faculdades). Seja como for, eu era o que se dizia um “jovem bem informado”.  Assim, por exemplo, mesmo morando no Rio, fiquei sabendo que tinha acontecido esse show de Gil em São Paulo (lembrem-se que falo de um tempo pré-pré-pré-internet e parem de se espantar com o conceito de “bem informado”!) e que tinha dado o que falar.  Mas o grosso da coisa, o tutano, a substância e a sustança do que rolou ali eu ignorava quase que completamente.  Entre as coisas que eu ignorava, e ignorava até ler o texto do Marcelo outro dia, está o fato de que o show foi acertado entre Gil e os estudantes como forma de protesto contra a morte sob tortura, pela repressão do governo militar, de  Alexandre Vannuchi Leme, que estudava Geologia lá mesmo na USP.  Na época ouviram-se rumores sobre essa morte, uma daquelas que se conseguia a custo muito alto individuar em termos de um nome (pelo menos isso!) a ser pranteado, e  uma das razões por que se conseguiu dar alguma visibilidade a esse assassinato foi a missa oficiada pelo corajoso arcebispo de São Paulo,  Dom Evaristo Arns,  na Catedral da Sé para 5.000 pessoas. Teria sido esta  a primeira manifestação pública de protesto contra a ditadura dos militares a ter alguma repercussão naqueles aterrorizantes tempos em que se vivia sob o tacão tacanho do  AI-5.   Outra coisa que eu ignorava  é que o episódio serviu como ponto de partida para que o jornalista Caio Túlio Costa escrevesse Cale-se (Ed. A Girafa, 2003), ao que parece uma espécie de depoimento de quem viveu de perto os acontecimentos.  Não conheço até o presente momento o livro de Caio, que  estudava na USP na época.
Adendo: outra apresentação de Gil para estudantes que se tornou célebre foi no Colégio Equipe (também em SP) em 1977, em contexto até um tanto parecido – só que na volta das passeatas, quando começa a engrossar pra valer (lembro que se chegou à  Lei de Anistia em 1979) a insatisfação da sociedade civil com a ditadura.  Digo célebre porque a repercussão foi bastante polêmica na imprensa, num momento em que as acusações de “alienação” contra Gil (e Caetano, diga-se) atingiram um alto grau de estridência.  Será que não haveria por aí uma fita desse show no Equipe?
Fim da Nota Pessoal 1.


Voltando ao “noticiário”: ao baixar os CDs e ouvir o  show (dada a precariedade dessas produções na época, é surpreendente a boa qualidade do som) creio ser perceptível haver uma evidente, ora mais explícita ora mais velada, tensão na relação de Gil com a platéia. Na verdade, naquele momento o próprio Gilberto Gil parecia lidar com um feixe de questões, se não dilacerantes, que pelo menos teriam o poder de ser uma espécie de motor de suas inquietações, de onde ele parecia retirar estímulos mesmo para criar. Musicalmente, Gil está, em 1973, ainda muito longe de conseguir “dissolver” sua “aura clara” no transe coletivo das grandes celebrações tribais-pop que nortearão sua pegada e sua carreira artística na década de 80. Vendo de hoje, conhecendo bem a trajetória cumprida por ele ao longo de todos esses anos,  os indícios que ele trilharia decididamente esse caminho talvez possam parecer claros esporadicamente: por exemplo, quando ele considera a possibilidade dessas grandes celebrações,  ao final, na apresentação de “Filhos de Ghandi” (volto ao assunto mais pra frente). Mas naquele momento tratava-se sobretudo de percorrer os caminhos do experimentalismo:  Gil não era mais o representante da intervenção tropicalista de cinco anos antes; há muito deixara também de ser, e isso desde o tropicalismo, o cantor de protesto (”Roda”, “Viramundo”, “Procissão”); nem mesmo prosseguia com suas canções crispadas do imediato pós-tropicalismo e primeiros anos de exílio (“Cérebro eletrônico”, “Mini-mistério”, “Língua do P”).  Naquele momento ele está exercendo com ampla liberdade a experimentação de formas, entendida enquanto prática de exercícios criativos com vistas a expandir as possibilidades da composição e da performance em cena, no sentido de seu desenvolvimento no canto e na execução instrumental. E mais:  Gil mostra-se interessado, chegado havia um ano e pouco de seu exílio londrino, em estabelecer ali na USP uma espécie de clareira para reflexão com os estudantes, ainda que o preço a pagar seja por vezes certo desconforto, um quê de confronto, sem prejuízo no entanto do gesto amoroso com a plateia. 

Foto colhida em lucyinthesky.wordpress.

         Confira-se: na primeira fala dele, ao se perguntar (fazendo o triângulo com a plateia, claro) sobre as razões de sua presença ali, Gil parte da consideração das expectativas daquela plateia. Essas expectativas eram imensas, posso assegurar – eu não estava no show, mas fazia parte das platéias da época – e em geral se vinculavam a uma ansiedade, a uma carência no sentido de se esperar que o compositor (não apenas Gil) dissesse as verdades que o estado repressivo geral impedia que fossem ditas, ainda mais num show pensado com um sentido de protesto contra a morte de Vannuchi Leme.  Os artistas acabavam por canalizar esses anseios generalizados, e na medida em que os atendessem, o que frequentemente acontecia, pois, dado o sufoco geral,  era um anseio do artista também, acabavam por promover talvez mais descarga catártica do que reflexão propriamente dita. Porque os anseios eram muito mais pelo passado que esses artistas traziam  do que por suas aventuras presentes. Gil parece estar bem consciente disso ao dizer em sua primeira fala: “Não era um negócio marcado, estereotipado na minha cabeça o tipo de relação que podia haver entre o fato de estar aqui cantando,  e como pensar nisso e planejar isso (...) dentro daquilo que é mais atual, exercitável, dentro do meu repertório...”
Assim, o experimentalismo de Gil nesse período (e o registro do show é precioso quanto a isso também) deve ser entendido – é assim que eu o entendo –   como o caminho  em direção ao que sempre fora o sonho nada secreto dos tropicalistas: encontrar a fórmula (ainda que provocativa e naquele momento às voltas com a herança das vanguardas e neovanguardas) para se fazer uma canção de qualidade estética e que ao mesmo tempo tivesse apelo pop, sem deixar de dialogar com a tradição da música brasileira.  Afinal, não custa lembrar que  até então Gil só conhecera um grande sucesso de massa:  o samba “Aquele abraço”, lançado ao deixar o Brasil rumo ao exílio londrino – e muito desse sucesso se devera  ao fato de que “Aquele abraço” parecia um retorno arrependido à “verdadeira tradição do samba” (o segundo sucesso de massa de sua carreira está apresentado no show, é o xote “Só quero um xodó”, de Dominguinhos, canção que por sinal ocupava o lado B do disco onde fora lançada – mas no momento do show ela ainda não tinha “estourado”).  Na trajetória do autor de “Oriente”, essas tensões todas – especialmente na década de 70 – compõem  muito da substância mesmo do que ele produz.  E não apenas do que produz como compositor, cancionista: do que ele apresenta em shows, do que decide gravar e do que expõe no trato cotidiano das apresentações, entrevistas e depoimentos em geral. As tensões, os impasses  e a resolução dessas tensões muitas  vezes vieram estampadas em seus discos, shows e declarações públicas, como se houvesse um freqüente exercício de exposição e de risco, que não poucas vezes levantou a suspeita de um calculismo oportunista na qual se deleitam seus detratores.  Em nenhum outro de seus pares geracionais isso é colocado de forma tão decisiva, nem mesmo em Caetano.  Do meu ponto de vista, isso define a visada ao mesmo tempo generosa e ambiciosa do artista Gilberto Gil.  Assim, se as questões daquele momento pareciam cruciais, mais se ressalta a sensação assimétrica de uma tensão partindo da platéia em direção à postura distensa, muito à vontade, de Gil, tão à vontade que o contraste salta à vista: naquele momento, o distanciamento assumido por aquele baiano orientalizado pop macrobiótico que posso imaginar no palco também apinhado por receber os excedentes da platéia abarrotada, aquela figura serena (isso é audível) ali no centro daquele feixe de tensões parece assumir a imagem  sobretudo da sabedoria.  Quase oracular.  Não apenas quanto à sua carreira, mas a todo o desenvolvimento posterior de nossa canção popular.

Falei em “Oriente”, e foi justo com ela que o show foi aberto – e   para mim este é o melhor registro dessa extraordinária canção, superior mesmo à do disco Expresso 2222,  e por isso resolvi postá-lo aqui: podemos ouvir que depois de apresentá-la na íntegra com a letra, Gil começa uma longa improvisação em voz e violão, como era comum  que fizesse na época  e  é perceptível em vários outros momentos do show, incorporando,  num arremedo de gemedeira de cantador nordestino, outros versos (“esse canto é o mesmo lamento mesmo sofrimento nas terras malditas do nordeste e da Arábia Saudita...”) que se colam a um canto que explora os limites do tonal,  lembrando ao mesmo tempo o  que parece ser a vocalização de um muezim.  De repente ouvimos: “Ih, para com isso, rapaz! Vem você com esse negócio de nham-nham-nham, fica tirando essa chinfra ai de oriente, nós tamos no Brasil rapá...” e a voz de Gil ganha uma inflexão que se poderia dizer policialesca, a acusar o cantor de não cantar coisas brasileiras,  de não cantar “aquela da novela”, de querer, sendo baiano, ficar tirando onda de oriental (“... então vai pra Índia, entendeu? Isso aqui é lugar de produtividaaade!”).  A performance vocal, extraordinariamente inventiva, torna-se mesmo intimidatória, e a canção, uma espécie de baião permeado de cromatismos e de sonoridades mouras, é cantada mais uma vez na íntegra e chega ao seu final depois de quase 9 minutos, pontuada por um violão ágil que mantém a base de baião e explora os limites do dedilhado numa extensão raras vezes vista até então na música brasileira.  Ao final de “Oriente”, conversando com a platéia, Gil assim se refere ao que se passou: “É sempre importante a gente falar com o alter-ego, né?” Poderia perfeitamente ser uma conversa com o super-ego.  A voz outra que de dentro interrompe Gil está levantando as tensões remanescentes da aventura tropicalista (“por que é que não canta coisa nossa, um sambinha?”), aventura para sempre incorporada ao seu trabalho, bem como as tensões diante do viés contracultural orientalista com que Gil travou contato em Londres para daí não mais se afastar, e, o que parece mais fundo, não à toa ele escolhe para abrir sua apresentação para uma platéia de estudantes uma canção cuja letra é um chamado para o livre-arbítrio, com todas as suas responsabilidades, um chamado para o abrir-se para o mundo, ir à nascente das coisas, exercer o poder de decisão entre o “cair fora” das expectativas criadas na estufa familiar (“ir pro Japão/num cargueiro do Lloyd  lavando o porão”) ou romper com elas, ou ainda, fazer uma possível conjunção de todas essas opções: “determine, rapaz, onde vai ser seu curso de pós-graduação”. Uma pós-graduação na vida, uma pós-graduação feita por ele próprio após a graduação no protesto e na tropicália, ou seja, no básico das discussões em tela no Brasil naquele momento.  Agora, o salto será maior, mas levaremos ainda alguns anos para saber. Em certo sentido, melhor, em muitos sentidos, Gilberto Gil é um desses artistas que antecipam nesse momento o que o Brasil virá a ser.   Leia-se a estupenda letra:

Se oriente, rapaz
pela constelação do Cruzeiro do Sul
se oriente, rapaz
pela constatação de que a aranha
vive do que tece
vê se não se esquece
pela simples razão de que tudo merece
consideração
considere, rapaz
a possibilidade de ir pro Japão
num cargueiro do LLoyd lavando o porão
pela curiosidade de ver
onde o sol se esconde
vê se compreende
pela simples razão de que tudo depende
de determinação
determine, rapaz
onde vai ser seu curso de pós-graduação
se oriente, rapaz
pela rotação da Terra em torno do Sol
sorridente, rapaz
pela continuidade do sonho de Adão.

Gil no exílio londrino, 1971
Vinte anos depois, no belo Gilberto Gil: todas as letras, organizado por Carlos Rennó para a Companhia das Letras (1992), o compositor assim se refere a essa canção:

            “O fato de eu ter feito o projeto da família, a faculdade, de ter recusado uma pós-graduação na Universidade Michigan, nos Estados Unidos, para assumir o trabalho na Gessy lever e ficar em São Paulo, perto de Caetano, de Bethânia, de Gal, do projeto pessoal, a música; e de o trabalho na Gessy lever ter sido uma espécie de pós-graduação também, assim c Omo a situação do exílio tinha para mim um significado de pós-graduação.  Por tudo isso, ‘Oriente’ é a música minha que eu considero mais pessoal e auto-solidária, mais solitária.  Não sou eu em relação a uma mulher ou a uma cidade: sou eu em relação a mim mesmo, a um momento de vida.”

Nota Pessoal 2:
            Em 1971, virando já para 72,  aconteceu o celebérrimo show Gal – Fa-tal – no Teatro Thereza Raquel no Shopping da Siqueira Campos, em Copacabana.  Ficou uns 15 ou 20 dias em cartaz, depois teve uma interrupção, de um mês, talvez, e voltou (acho que já em 72) para uma segunda temporada curta.  Sim, meninos, eu vi.  Nas duas vezes.  Acontece que quando retornou, Gal apresentou se não me engano três canções enviadas de Londres por aqueles dias por Gil e Caetano, que se encontravam por lá, exilados.  Uma dessas canções era “Oriente”, que Gal interpretou acompanhada ao violão por Pepeu Gomes (que substituíra Lanny Gordin, o guitarrista da primeira temnporada) . Lembro de ter saído do teatro completamente atordoado pela beleza da canção. É uma das minhas canções favoritas de Gil. Existe CD com os dois LPs que originalmente foram lançados com a gravação ao vivo do show.  É uma pena mas não há o registro de “Oriente” entre as canções  de Gal - Fa-tal - (o jeito é vocês acreditarem em mim).
Fim da Nota Pessoal 2.

            Tão estimulantes quanto as canções e a performance são os inúmeros momentos em que Gil conversa com a plateia, o que acontece entre uma canção e outra.  São extremamente reveladores dessa tensão que venho tentando captar aqui. A audição do show gravado, por mais atenta, sempre perde o que não se consegue ouvir, assim como perde às vezes a fala do que a plateia diz.  Mas a gente  percebe diversas vezes, pelo descabido de certas risadas, o seguinte: a plateia suspeita constantemente de que Gil está sendo irônico, as pessoas querem captar o que estaria, como se dizia na época, “nas entrelinhas”, e ninguém quer passar recibo de desinformado ou “alienado”. Isso virou uma verdadeira mania, que acabou ficando em grande medida colado a muitos artistas e canções da época (quem nunca ouviu dizer que “Abacateiro, acataremos teu ato...” de “Refazenda” seria uma mensagem cifrada anti-forças armadas? Eu inclusive já até li essa bobagem. E outras do mesmo nível).  Então surgem situações inusitadas – a mim causam certo desconforto, aliás, sempre me causaram – como quando Gil após cantar “Minha nega na janela”, do repertório do sambista paulistano Germano Mathias, um samba que pinta uma desavença doméstica em tom racista e sexista (será impensável ouvi-la cantada hoje?) ao dizer tratar-se de “a cristalização mais clara e radiante do pensamento popular”, ouvem-se risos.  E há outras ocasiões ainda mais claras do que esta, reveladoras de uma curiosa falta de sintonia Gil-plateia.  Mas não se trata de nada que venha a comprometer o resultado geral do que se ouve, nada que prejudique a busca de interação própria de uma apresentação desse tipo (ao contrário do que muitas vezes acontecia nas apresentações tropicalistas e parece ter acontecido no show já mencionado no colégio Equipe, em 77).  Sobre isso voltarei mais tarde também.
            Seria surpreendente que Gil atendesse à voz intimidatória do “alter-ego” (ou do superego) no meio de “Oriente” e passasse a cantar sambas?  Porque ele canta numa enfiada sete sambas (depois de anunciar que cantaria cinco) seus e alheios, “porque samba é um negócio muito da gente...” Na verdade isso só surpreenderia os que nada tivessem entendido e nada estariam entendendo do que Gil propunha e propusera até ali em sua carreira.  Nunca esteve no horizonte dos tropicalistas a “negação” ou o “assassinato” do samba, como se pensou e às vezes ainda se pensa.  Nem poderia, não faria sentido, se tomarmos o samba como uma forma.  A discussão tropicalista e pós-tropicalista propôs, isso sim, repensar o universo ideológico ligado à compreensão do samba, o que é coisa muito diferente de querer seu desaparecimento. E o que se ouve nesse show, nessa sequência de sambas, é um “performer” muito mais desenvolto como instrumentista do que quando fora para Londres, alguém que afinal de contas houve por bem honrar o samba, evoluindo como instrumentista.  Sobre esse desenvolvimento, assim Gil havia se pronunciado numa entrevista de 1972:
            “Eu me lembro do dia em que resolvi mexer os dedos  pra desenvolver, lá em Londres,  a guitarra.  No primeiro dia do ano de 1970 (...) eu comecei a fazer escala. Fiquei até as três fazendo escala, e naquele dia eu decidi que ia soltar meus dedos.  Sabe? Porque já tava cheio daquela... não agüentava mais aquela coisa presa, de ficar fazendo acorde.  Resolvi que ia tocar, solar alguma coisa na guitarra.  E assumir um pouco aquela coisa de solista, de músico pop.”
            Veja-se que é bem o processo tropicalista, informado aqui pela postura experimental.  Pôr em tela as questões relativas à música brasileira (entre elas a técnica de execução) chegando por um aprendizado e uma solução não convencionados dentro da tradição.  Acontece que isso já estava no Gil de início de carreira, pré-tropicalista, num depoimento de Torquato Neto na contracapa do primeiro LP: “Há muitas maneiras de se fazer música brasileira: Gilberto Gil prefere todas.”  A frase acabou ficando célebre por conta da intuição quase profética que a ilumina. Assim, se o violão de Gil já era o mais suingado de sua geração quando eles despontam (à parte o de Jorge Ben, que é outro caminho), agora ele se ultrapassara. A “libertação dos dedos” para tocar guitarra enriqueceu de vez a técnica violonística do Gil.  E isso é muito visível na apresentação dos sambas.
            Recomendo quando da audição do show, aos que forem baixar o CD, atenção especial sob esse aspecto a “O sonho acabou”, mas gostaria de fechar a primeira parte deste texto, com um samba composto por aqueles dias,  “Ladeira da Preguiça”.  A extrema agilidade na divisão, a melodia surpreendente, além das anotações – muito peculiares à poética de Gil – ao seu universo e ao seu espaço familiar, tudo faz com que este seja um dos meus preferidos em sua vasta obra.  Dia desses retomo este texto, mas por ora deixo a letra e o áudio:




 LADEIRA DA PREGUIÇA

Essa ladeira
que ladeira é essa?
Essa é a ladeira da Preguiça

Preguiça que eu tive sempre
de escrever para a família
e de mandar contar pra casa
que esse mundo é uma maravilha
e pra saber se a menina já conta as estrelas
e sabe a segunda cartilha
e pra saber se o menino já canta cantigas
e já não bota mais a mão na barguilha
e pra falar do mundo falo uma besteira
Formentera é uma ilha
onde se chega de barco, mãe
que nem lá
na ilha do Medo
que nem lá
na ilha do Frade
que nem lá
na ilha de Maré
Salina das Margaridas

Essa ladeira
que ladeira é essa?
Essa é a ladeira da Preguiça

Ela é de hoje
Ela é desde quando
se amarrava cachorro com linguiça