quarta-feira, 30 de maio de 2012

RILKE: DIA DE OUTONO

DIA DE OUTONO

Senhor: é mais que tempo.  O verão foi muito intenso.
Lança a tua sombra sobre os relógios de sol
e por sobre as pradarias desata os teus ventos.

Ordena às últimas frutas que fiquem maduras;
Dá-lhes ainda mais uns dois dias de calor,
leva-as à completude e não deixes de pôr
no vinho pesado sua última doçura.

Quem não tem casa, não a irá mais construir.
Quem está sozinho, vai ficá-lo ainda mais.
Insone, há de ler, escrever cartas torrenciais
e correr as aleias num inquieto ir e vir
enquanto o vento carrega as folhas outonais.

                                           Tradução de José Paulo Paes

HERBSTTAG

Herr, es ist Zeit. Der Sommer war sehr groß.
Leg deinen Schatten auf die Sonnenuhren,
und auf den Fluren lass die Winde los.

Befiehl den letzten Früchten, voll zu sein;
gib ihnen noch zwei südlichere Tage,
dränge sie zur Vollendung hin, und jage
die letzte Süße in den schweren Wein.

Wer jetzt kein Haus hat, baut sich keines mehr.
Wer jetzt allein ist, wird es lange bleiben,
wird wachen, lesen, lange Briefe schreiben
und wird in den Alleen hin und her
unruhig wandern, wenn die Blätter treiben


In: Rainer Maria Rilke – poemas.  Tradução e introdução de José Paulo Paes.  Companhia das Letras, 2012.

domingo, 27 de maio de 2012

D. H. LAWRENCE


 

A INDECÊNCIA PODE SER SAUDÁVEL


A indecência pode ser normal, saudável;
na verdade, um pouco de indecência é necessário em toda vida
para a manter normal, saudável.

E um pouco de putaria pode ser normal, saudável.
Na verdade um pouco de putaria é necessário em toda  vida
para a manter normal, saudável.

Mesmo a sodomia pode ser normal, saudável,
Desde que haja troca de sentimento verdadeiro.

Mas se alguma delas for para o cérebro, aí se torna perniciosa:
a indecência no cérebro se torna obscena, viciosa,
a putaria no cérebro se torna sifilítica
e a sodomia no cérebro se torna uma missão,
tudo, vício, missão, insanamente mórbido.

Do mesmo modo,  a castidade na hora própria é normal e bonita.
Mas a castidade no cérebro é vício, é perversão.
E a rígida supressão de toda e qualquer indecência, putaria e relações assim
leva direto a furiosa insanidade.
E a quinta geração de puritanos, se não for obscenamente depravada,
é idiota.  Por isso, você tem de escolher.
  
                                                        
                                                          
BAWDY CAN BE SANE


Bawdy can be sane and wholesome,
in fact a little bawdy is necessary in every life
to keep it sane and wholesome.

And a little whoring can be sane and wholesome.
In fact a little whoring is necessary in every life
to keep it sane and wholesome.

Even sodomy can be sane and wholesome
granted there is an exchange of genuine feeling.

But get any of them on the brain, and they become pernicious:
bawdy on the brain becomes obscenity, vicious.
Whoring on the brain becomes really syphilitic
and sodomy on the brain becomes a mission,
all the lot of them, vice, missions, etc., insanely unhealthy.

In the same way, chastity in its hour is sweet and wholesome.
But chastity on the brain is a vice, a perversion.
And rigid suppression of all bawdy, whoring or other such commerce
is a straight way to raving insanity.
The fifth generation of puritans, when it isn't obscenely profligate,
is idiot. so you've got to choose.

 
                   Tradução de José Paulo Paes
           

Poesia erótica em tradução.  Seleção, tradução, introdução e notas de José Paulo Paes. Companhia das Letras, 1990.

                       

quinta-feira, 24 de maio de 2012

CAVALEIRO BEN


Cavaleiro cavaleiro cavaleiro cavaleiro
doce almuadem suburbano genial selênico
cavaleiro chichisbéu cavaleiro lunático
cavaleiro tuareg
terráqueo
guitarreiro epitalâmico habitué dos gineceus
seresteiro das lajes modinheiro dos haréns
ereto opiniático sobranceiro erótico fálico protetor
nos flagelos terremotos incêndios e inundações
ditirâmbico dos himeneus
cavaleiro genitálico cavaleiro jorge cavaleiro
imaculado cavaleiro sem aríete muezim
do Rebouças do Santa Bárbara do Velho
do Novo do Sá Freire Alvim e do Tempo
sem começo e sem fim sua voz dentro e fora
do buzu do obus do ouvido da boca da flor
da rosa de ouro do mengo do metrô domingo
domingas domingou linda toda de branco
opus infinitum opus incertum opus inumerável alquimia
de piquenique na quinta no maraca na saara no zoo
queremos guerra e rum paz e arroz uísque com cerveja
minete com amor e outras mumunhas mais
até amanhã até depois principalmente até demais
entrópico sentimental crédulo festeiro hermético simpático
simpático cavaleiro despótico cavaleiro
epifânico
cavaleiro
cavaleiro cavaleiro cavaleiro cavaleiro
jor

Roberto Bozzetti. Firma irreconhecível. Oficina Raquel, 2009. 

domingo, 20 de maio de 2012

AH, UM SONETO... DE RILKE


MORGUE

Ali jazem em ordem como se
à espera de algum ato tardio
que os pudesse ligar entre si e
reconciliá-los com aquele frio;

tudo está por enquanto inacabado.
Por que, dentro dos bolso, um cartão
Com o nome de cada?  O ar de enfado
nas suas bocas, foi esforço vão

tentar lavá-lo: só ficou patente.
Mais áspera, a barba ainda nos rostos:
o zelador da morgue tem seus gostos;

nem os de boca aberta lhe dão náuseas.
Com olhos revirados sob as pálpebras,
os mortos veem-se agora interiormente.
                                                                                                                               
                        tradução de José Paulo Paes

in: Rainer Maria Rilke: poemas.  Tradução e introdução José Paulo Paes. Companhia das Letras, 2012.           
         


sexta-feira, 18 de maio de 2012

PAULO HENRIQUES BRITTO







CIRCULAR

Neste mesmo instante, em algum lugar,
alguém está pensando a mesma coisa
que você estava prestes a dizer.
Pois é.  Esta não é a primeira vez.

Originalidade não tem vez
neste mundo, nem tempo, nem lugar.
O que você fizer não muda coisa
alguma. Perda de tempo dizer

o que quer que você tenha a dizer.
Mesmo parecendo que desta vez
algo de importante vai ter lugar,
não caia nessa: é sempre a mesma coisa.

Sim.  Tanto faz dizer coisa com coisa
ou simplesmente se contradizer.
Melhor calar-se para sempre, em vez
de ficar o tempo todo a alugar

todo mundo, sem sair do lugar,
dizendo sempre, sempre, a mesma coisa
que nunca foi necessário dizer.
Como faz este poema.  Talvez.

In: Formas do nada.  Companhia das Letras, 2012.

domingo, 13 de maio de 2012

DOIS POEMAS DE WISLAWA SZYMBORSKA







 A MULHER DE LOT

Dizem que olhei para trás de curiosa.
Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de prata.
Por distração – amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio na esperança de Deus ter mudado de ideia.
Nossas duas filhas já sumiam para lá do cimo do morro.
Senti em mim a velhice.  O afastamento.
A futilidade da errância.  Sonolência.
Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão.
Olhei para trás por receio de onde pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
Já não eram bons nem maus – simplesmente tudo que vivia
serpenteava ou pulava em pânico consorte.
Olhei para trás de solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi só quando um vento bateu,
despenteou meu cabelo e levantou meu vestido.
Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma
e caíam na risada, uma vez, outra vez.
Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.
Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para trás.
Não, não.  Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escuridão não caiu do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivesem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade.



PRIMEIRA FOTO DE HITLER

E quem é essa gracinha de tiptop?
É Adolfinho, filho do casal Hitler!
Será que vai se tornar um doutor em direito?
Ou um tenor da ópera de Viena?
De quem é essa mãozinha, essa orelhinha, esse olhinho, esse narizinho?
De quem é essa barriguinha cheia de leite, ainda não se sabe:
de um tipógrafo, padre, médico, mercador?
Quais caminhos percorrerão estas pernocas, quais?
Irão para o jardinzinho, a escola, o escritório, o casório
com a filha do prefeito?

Anjinho, pimpolho, docinho de coco, raiozinho de sol,
quando chegou ao mundo um ano atrás,
não faltaram sinais na terra nem no céu:
gerânios na janela, um sol primaveril,
a música de um realejo no portão,
votos de bom augúrio envoltos em papel crepom rosa,
pouco antes do parto, o sonho profético da mãe:
sonhar com uma pomba - sinal de boas-novas,
se for pega - vem uma visita muito esperada.
Toc, toc, quem é, é o coração do Adolfinho que bate.
Fralda, babador, chupeta, chocalho,
o menino, com a graça de Deus e bate na madeira, é sadio,
parecido com os pais, com um gatinho no cesto,
com os bebês de todos os outros álbuns de família.
Não, não vai chorar agora,
o fotógrafo atrás do pano preto vai fazer um clique.

Ateliê Klinger, Grabenstrasse Braunau,
e Braunau é uma cidade pequena mas respeitável,
firmas sólidas, vizinhos honestos,
cheiro de massa de pão e de sabão cinzento.
Não se ouve o ladrar dos cães nem os passos do destino.
Um professor de história afrouxa o colarinho
e boceja sobre os cadernos.

            Tradução de Regina Przybycien

Wislawa Szymborska.  Poemas.  Companhia das Letras, 2011.

           
         Atordoado. Acho que a palavra define bem como fiquei ao travar contato, não faz nem um ano, com a poesia dessa polonesa, ganhadora do Nobel em 1996, morta no começo deste 2012,  aos 90 anos.  Me deparei  numa livraria com os poemas de Szymborska traduzidos por Regina Przybycien,  e desde então  não me canso de lê-los e de neles descobrir sempre algo que me atordoa.
Tinha tomado aqui a firme decisão de escolher apenas um poema como representativo do que eu gostaria que os leitores deste blog conhecessem ao travar contato com  Szymborska.  Não consegui.  Foi difícil deixar de publicar quatro de uma vez.  Acabei me fixando em apenas dois:   “A mulher de Lot” toma a si, com sucesso, a jubilosa tarefa de tirar de cima das mulheres o epíteto bíblico nada lisonjeiro da desobediente curiosidade feminina a ser punida pela crueldade divina. As razões por que ela teria olhado para trás não incluem a incontinente bisbilhotice gratuita, nem demonstram necessariamente que seu espírito ainda estaria ligado em pecado a Sodoma (as duas interpretações mais freqüentes, quero crer, do mito bíblico pelos cristãos), mas são desfiadas com uma naturalidade impressionante de hipóteses – todas – plausíveis e algumas terríveis: o verso 11, neste particular me lembra, por sua desolação, o terrível escrito do pórtico do Inferno em Dante.  Já “Primeira foto de Hitler” reúne os elementos magistrais de sua poesia, com um inequívoco, porque explícito, acréscimo de humor cruel da mais alta potência.
Creio que o atordoante nessa poesia  vem muito de sua dicção coloquial (lógico que confio aqui às cegas na competência da tradução – que já li ser de fato muito boa) e de portar um não-sei-quê do olhar de uma pessoa comum, que só não o fosse por se obrigar a exercitar um olhar insensato sobre o mundo.  Não sei se me faço entender.  Acho que não. Não importa.  Importa ler Wislawa Szymborska.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

ERNST JANDL


BRINDE

e se o beijar
ela irá então beijar
também uísque

e se não o beijar
ele irá então beber
mesmo sem beijo.

TOAST

und wenn sie ihn küsst
dann wird sie eben
auch whiskey küssen

und wenn sie ihn nicht küsst
dann wird er eben
ohne kuss trinken.

            Tradução de José Paulo Paes

 
In: José Paulo Paes. Gaveta de tradutor: versões de poesia. 1996.