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quinta-feira, 28 de setembro de 2017

ALBERTO CAEIRO: POEMA VIII DE O GUARDADOR DE REBANHOS



Num meio-dia de fim de primavera
     Tive um sonho como uma fotografia.
     Vi Jesus Cristo descer à terra.
     Veio pela encosta de um monte
     Tornado outra vez menino,
     A correr e a rolar-se pela erva
     E a arrancar flores para as deitar fora
     E a rir de modo a ouvir-se de longe.

     Tinha fugido do céu.
     Era nosso demais para fingir
     De segunda pessoa da Trindade.
     No céu era tudo falso, tudo em desacordo
     Com flores e árvores e pedras.
     No céu tinha que estar sempre sério
     E de vez em quando de se tornar outra vez homem
     E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
     Com uma coroa toda à roda de espinhos
     E os pés espetados por um prego com cabeça,
     E até com um trapo à roda da cintura
     Como os pretos nas ilustrações.
     Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
     Como as outras crianças.
     O seu pai era duas pessoas
     Um velho chamado José, que era carpinteiro,
     E que não era pai dele;
     E o outro pai era uma pomba estúpida,
     A única pomba feia do mundo
     Porque não era do mundo nem era pomba.
     E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.


     Não era mulher: era uma mala
     Em que ele tinha vindo do céu.
     E queriam que ele, que só nascera da mãe,
     E nunca tivera pai para amar com respeito,
     Pregasse a bondade e a justiça!


     Um dia que Deus estava a dormir
     E o Espírito Santo andava a voar,
     Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
     Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
     Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
     Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
     E deixou-o pregado na cruz que há no céu
     E serve de modelo às outras.
     Depois fugiu para o sol
     E desceu pelo primeiro raio que apanhou.

     Hoje vive na minha aldeia comigo.
     É uma criança bonita de riso e natural.  
     Limpa o nariz ao braço direito, 
     Chapinha nas poças de água,
     Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.  
     Atira pedras aos burros,
     Rouba a fruta dos pomares
     E foge a chorar e a gritar dos cães.
     E, porque sabe que elas não gostam
     E que toda a gente acha graça,
     Corre atrás das raparigas pelas estradas
     Que vão em ranchos pela estradas
     com as bilhas às cabeças
     E levanta-lhes as saias.

     A mim ensinou-me tudo.
     Ensinou-me a olhar para as cousas.
     Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
     Mostra-me como as pedras são engraçadas 
     Quando a gente as tem na mão
     E olha devagar para elas.

     Diz-me muito mal de Deus.
     Diz que ele é um velho estúpido e doente,
     Sempre a escarrar no chão
     E a dizer indecências.
     A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
     E o Espírito Santo coça-se com o bico
     E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
     Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
     Diz-me que Deus não percebe nada
     Das coisas que criou —
     "Se é que ele as criou, do que duvido" —
     "Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória, 
     Mas os seres não cantam nada.
     Se cantassem seriam cantores.
     Os seres existem e mais nada,
     E por isso se chamam seres."
     E depois, cansados de dizer mal de Deus,
     O Menino Jesus adormece nos meus braços
     e eu levo-o ao colo para casa.
     .............................................................................
     Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
     Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
     Ele é o humano que é natural,
     Ele é o divino que sorri e que brinca.
     E por isso é que eu sei com toda a certeza
     Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

   

  E a criança tão humana que é divina
     É esta minha quotidiana vida de poeta,
     E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
     E que o meu mínimo olhar
     Me enche de sensação,
     E o mais pequeno som, seja do que for,
     Parece falar comigo.
     A Criança Nova que habita onde vivo
     Dá-me uma mão a mim
     E a outra a tudo que existe
     E assim vamos os três pelo caminho que houver,
     Saltando e cantando e rindo
     E gozando o nosso segredo comum
     Que é o de saber por toda a parte
     Que não há mistério no mundo
     E que tudo vale a pena.

     A Criança Eterna acompanha-me sempre.
     A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
     O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
     São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

     Damo-nos tão bem um com o outro
     Na companhia de tudo
     Que nunca pensamos um no outro,
     Mas vivemos juntos e dois
     Com um acordo íntimo
     Como a mão direita e a esquerda.

     Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
     No degrau da porta de casa,
     Graves como convém a um deus e a um poeta,
     E como se cada pedra
     Fosse todo um universo
     E fosse por isso um grande perigo para ela
     Deixá-la cair no chão.

     Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
     E ele sorri, porque tudo é incrível.
     Ri dos reis e dos que não são reis,
     E tem pena de ouvir falar das guerras,
     E dos comércios, e dos navios
     Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
     Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
     Que uma flor tem ao florescer
     E que anda com a luz do sol
     A variar os montes e os vales,
     E a fazer doer nos olhos os muros caiados.

     Depois ele adormece e eu deito-o.
     Levo-o ao colo para dentro de casa
     E deito-o, despindo-o lentamente
     E como seguindo um ritual muito limpo
     E todo materno até ele estar nu.
     Ele dorme dentro da minha alma
     E às vezes acorda de noite
     E brinca com os meus sonhos.
     Vira uns de pernas para o ar,
     Põe uns em cima dos outros
     E bate as palmas sozinho
     Sorrindo para o meu sono.
     ......................................................................
     Quando eu morrer, filhinho,
     Seja eu a criança, o mais pequeno.
     Pega-me tu ao colo
     E leva-me para dentro da tua casa.
     Despe o meu ser cansado e humano
     E deita-me na tua cama.
     E conta-me histórias, caso eu acorde,
     Para eu tornar a adormecer.
     E dá-me sonhos teus para eu brincar
     Até que nasça qualquer dia
     Que tu sabes qual é.
     .....................................................................
     Esta é a história do meu Menino Jesus.
     Por que razão que se perceba
     Não há de ser ela mais verdadeira
     Que tudo quanto os filósofos pensam
     E tudo quanto as religiões ensinam?



Fernando Pessoa.  Obra poética.  Rio de Janeiro: Aguilar, 1965


Todas as crianças desta postagem foram pintadas por Giulio Del Torre (Itália, 1856-1932)

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

RICARDO REIS

ODE 343


Não a Ti, Cristo, odeio ou menos prezo
                                   Que aos outros deuses que te precederam    
         Na memória dos homens.
Nem mais nem menos és, mas outro deus.

No Panteão faltavas.  Pois que vieste,
No Panteão o teu lugar ocupa,
Mas cuida não procures
Usurpar o que aos outros é devido.

Teu vulto triste e comovido sobre
A 'steril dor da humanidade antiga
Sim, nova pulcritude
Trouxe ao antigo Panteão incerto.

Mas que os teus crentes te não ergam sobre
Outros, antigos deuses que dataram
Por filhos de Saturno
De mais perto da origem igual das coisas.

E melhores memórias recolheram
Do primitivo caos e da Noite
Onde os deuses não são
Mais que as estrelas súbditas do Fado.

Tu não és mais que um deus a mais no eterno
Não a ti, mas aos teus, odeio, Cristo.
Panteão que preside
À nossa vida incerta.

Nem maior nem menor que os novos deuses,
Tua sombria forma dolorida
Trouxe algo que faltava
Ao número dos divos.

Por isso reina a par de outros no Olimpo,
Ou pela triste terra se quiseres
Vai enxugar o pranto
Dos humanos que sofrem.

Não venham, porém, 'stultos teus cultores
Em teu nome vedar o eterno culto
Das presenças maiores
Ou parceiras da tua.

A esses, sim, do âmago eu odeio
Do crente peito, e a esses eu não sigo,
Supersticiosos leigos
Na ciência dos deuses.

Ah, aumentai, não combatendo nunca.
Enriquecei o Olimpo, aos deuses dando
Cada vez maior força
P'lo número maior.

Basta os males que o Fado as Parcas fez
Por seu intuito natural fazerem
Nós homens nos façamos
Unidos pelos deuses.






Fernando Pessoa. Obra poética.  Rio:  Aguilar, 1965. 

domingo, 3 de julho de 2016

ALBERTO CAEIRO: DO GUARDADOR DE REBANHOS


III

Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.

Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas cousas,
É o de quem olha para árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos...
 
Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como que anda no campo
É triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarros...

 

 

XLIV

 

Acordo de noite subitamente,
E o meu relógio ocupa a noite toda.
Não sinto a Natureza lá fora.
O meu quarto é uma cousa escura com paredes vagamente brancas.
Lá fora há um sossego como se nada existisse.
Só o relógio prossegue o seu ruído,
E esta pequena cousa de engrenagens que  está em cima da minha mesa
Abafa toda a existência da terra e do céu...
Quase que me perco a pensar o que isto significa,
Mas estaco, e sinto-me a sorrir na noite com os cantos da boca,
Porque a única coisa que meu relógio simboliza ou significa
Enchendo com a sua pequenez a noite enorme
É a curiosa sensação de encher a noite enorme
Com a sua pequenez...
 
 

 

Fernando Pessoa. Obra poética.  RJ: Aguilar, 1963

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

FERNANDO PESSOA


O MENINO DA SUA MÃE

 

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas traspassado
– Duas, de lado a lado –
Jaz morto, e arrefece.


Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

 
Tão jovem! Que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
“O menino da sua mãe.”

 
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
É boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

 
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo...
 

Lá longe, em casa, há a prece:
“Que volte cedo, e bem!”
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.

 


 

In: Fernando Pessoa. Obra poética.  RJ: Aguilar, 1965.

sábado, 9 de março de 2013

FERNANDO PESSOA

A OUTRA
Amamos sempre no que temos
O que não temos quando amamos.
O barco pára, largo os remos
E, um a outro, as mãos nos damos.
A quem dou as mãos?
À Outra.

Teus beijos são de mel de boca,
São os que sempre pensei dar,
E agora a minha boca toca
A boca que eu sonhei beijar.
De quem é a boca?
Da Outra.

Os remos já caíram na água,
O barco faz o que a água quer.
Meus braços vingam minha mágoa
No abraço que enfim podem ter.
Quem abraço?
A Outra.

Bem sei, és bela, és quem desejei...
Não deixe a vida que eu deseje
Mais que o que pode ser teu beijo
E poder ser eu que te beije.
Beijo, e em quem penso?
Na Outra.

Os remos vão perdidos já,
O barco vai não sei para onde.
Que fresco o teu sorriso está,
Ah, meu amor, e o que ele esconde!
Que é do sorriso
Da Outra?

Ah, talvez, mortos ambos nós,
Num outro rio sem lugar
Em outro barco outra vez sós
Possamos nós recomeçar
Que talvez sejas
A Outra.

Mas não, nem onde essa paisagem
É sob eterna luz eterna
Te acharei mais que alguém na viagem
Que amei com ansiedade terna
Por ser parecida
Com a Outra.

Ah, por ora, idos remo e rumo,
Dá-me as mãos, a boca, o teu ser.
Façamos desta hora um resumo
Do que não poderemos ter.
Nesta hora, a única,
Sê a Outra.
Les amants, Magritte

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

FERNANDO PESSOA


Vitral de Almada Negreiros



HORA ABSURDA

O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas...
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...

Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...
Minha ideia de ti é um cadáver que o mar traz à praia... e entanto
Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...

Abre todas as portas e que o vento varra a ideia
Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões...
Minha alma é uma caverna enchida p’la maré cheia,
E a minha ideia de te sonhar uma caravana de histriões...

Chove ouro baço, mas não no lá-fora... É em mim... Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única estrela...

Hoje o céu é pesado como a ideia de nunca chegar a um porto...
A chuva miúda é vazia... A Hora sabe a ter sido...
Não haver qualquer coisa como os leitos para as naus!... Absorto...
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...

Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro,
Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,
E a minha bondade inversa não é boa nem má...

Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos...
Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas...
Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas...
E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos...

Ah, como esta hora é velha!... E todas as naus partiram!
Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam
Do Longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram
Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...

O palácio está em ruínas... Dói ver no parque o abandono
Da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada
E sente saudade de si ante aquele lugar-outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...

A doida partiu todos os candelabros glabros,
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas...
E a minha alma é aquela luz que não haverá mais nos candelabros..
E que querem ao lago aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?...

Por que me aflijo e me enfermo?... Deitam-se nuas ao luar
Todas as ninfas... Veio o sol e já tinham partido...
O teu silêncio que me embala é a ideia de naufragar
E a ideia de a tua voz soar a lira de um Apolo fingido...

Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora...
As próprias sombras estão mais tristes... Ainda
Há rastros de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora
Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...

Todos os ocasos fumdiram-se na minha alma...
As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios...
Secou em teu olhar a ideia de te julgares calma,
E eu ver isso em ti é um porto sem navios...

Ergueram-se a um tempo todos os remos... Pelo ouro das searas
Passou uma saudade de não serem o mar... Em frente
Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras...
Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...

Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol!
Todas as princesas sentiram o seio oprimido...
Da última janela do castelo só um girassol
Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...

Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!...
Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?...
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula...
Por que não há de ser o Norte o Sul?... O que está descoberto?...

E eu deliro... De repente pauso no que penso... Fito-te
E o teu silêncio é uma cegueira minha... Fito-te e sonho...
Há coisas rubras e cobras no modo como medito-te,
E a tua ideia sabe à lembrança de  um sabor de medonho...

Para que não ter por ti desprezo?  Por que não perdê-lo?...
Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é um leque –
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...

Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos...
Murcharam mais flores do que as que havia no jardim...
O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...

Alguém vai entrar pela porta... Sente-se o ar sorrir...
Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem...
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há de vir,
O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...

É preciso destruir o propósito de todas as pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,
Endireitar à força a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...

Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã – como nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...

Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...
Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...
A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,
E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito...

Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...
Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!...
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia batismal,
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema – Vitória!

O que é que me tortura?... Se até a tua face calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...
Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...
Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...

Fernando Pessoa.  Obra poética.


Retrato de Fernando Pessoa por Almada Negreiros



quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

ÁLVARO DE CAMPOS

ANIVERSÁRIO

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui – ai, meu Deus! – o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Ponto grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas – doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado –
As tias velhas, os primos diferentes e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos..



In: Fernando Pessoa, Obra poética. Nova Aguilar, 1965.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Das odes de RICARDO REIS



Ouvi  contar que outrora, quando a Pérsia
Tinha não sei qual guerra,
Quando a invasão ardia na Cidade
E as mulheres gritavam,
Dois jogadores de xadrez jogavam
O seu jogo contínuo.

À sombra de ampla árvore fitavam
O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus
Momentos mais folgados,
Quando havia movido a pedra, e agora
Esperava o adversário,
Um púcaro com vinho refrescava
Sobriamente a sua sede.

Ardiam casas, saqueadas eram
As arcas e as paredes,
Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos,
Traspassadas de lanças, as crianças
Eram sangue nas ruas...
Mas onde estavam, perto da cidade,
E longe do seu ruído,
Os jogadores de xadrez jogavam
O jogo de xadrez.

Inda que nas mensagens do ermo vento
Lhes viessem os gritos,
E, ao refletir, soubessem desde a alma
Que por certo as mulheres
E as tenras filhas violadas eram
Nessa distância próxima,
Inda que, no momento que o pensavam,
Uma sombra ligeira
Lhes passasse na fronte alheada e vaga,
Breve seus olhos calmos
Volviam com atenta confiança
Ao tabuleiro velho.

Quando o rei de marfim está em perigo,
Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças?
Quando a torre não cobre
A retirada da rainha branca,
O saque pouco importa.
Quando a mão confiada leva o xeque
Ao rei do adversário,
Pouco pesa na alma que lá longe
Estejam morrendo filhos.

Mesmo que, de repente, sobre o muro
Surja a sanhuda face
Dum guerreiro invasor, e breve deva
Em sangue ali cair
O jogador solene de xadrez,
O momento antes desse
(É ainda dado ao cálculo dum lance
Pra a efeito horas depois)
É ainda entregue ao jogo predileto
Dos grandes indif’rentes.

Caiam cidades, caiam povos, cesse
A liberdade e a vida,
Os haveres tranqüilos e avitos
Ardem e que se arranquem,
Mas quando a guerra os jogos interrompa,
Esteja o rei sem xeque,
E o de marfim peão mais avançado
Pronto a comprar a torre.

Meus irmãos em amarmos Epicuro
E o entendermos mais
De acordo com nós-próprios que com ele,
Aprendamos na história
Dos calmos jogadores de xadrez
Como passar a vida.

Tudo o que é sério pouco nos importe,
O grave pouco pese,
O natural impulso dos instintos
Que ceda ao inútil gozo
(Sob a sombra tranqüila do arvoredo)
De jogar um bom jogo.

O que levamos desta vida inútil
Tanto vale se é
A glória, a fama, o amor, a ciência, a vida,
Como se fosse apenas
A memória de um jogo bem jogado
E uma partida ganha
A um jogador melhor.

A glória pesa como um fardo rico,
A fama como a febre,
O amor cansa, porque é a sério e busca,
A ciência nunca encontra,
E a vida passa e dói porque o conhece...
O jogo do xadrez
Prende a alma toda, mas, perdido, pouco
Pesa, pois não é nada.

Ah! Sob as sombras que sem qu’rer nos amam,
Com um púcaro de vinho
Ao lado, e atentos só à inútil faina
Do jogo de xadrez
Mesmo que o jogo seja apenas sonho
E não haja parceiro,
Imitemos os persas desta história,
E, enquanto lá fora,
Ou perto ou longe, a guerra, a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença.

                        Ricardo Reis
                        (in: Fernando Pessoa: Obra poética. Aguilar, 1965)