sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

JOSÉ CARLOS CAPINAM

INQUISITORIAL

I
Cúmplices da comoção moderna,
Galhofamos no teatro e no cinema
Ante o III Reich.

Galhofamos do desencontro
Entre discurso e realidade.

(Mas a perda do sincrônico
Se dá por nossa memória
Ou pelo             dedo de Chaplin.

Ao tempo real, eram ambos coerentes:
Discurso e realidade.)

II
Quando um soldado capenga
Surgir em cena,
Não compreenda, e se compreender,
Não ria – porque não estamos
Ante um soldado nem ante o III Reich.

Quando um tanque se precipitar
Da ponte,
Não cante, e se cantar,
Não dance – porque não estamos
Ante a firmeza do tanque e a verdadeira ponte.

E quando um gueto se sublevar
E for morto heroicamente,
Não comente, e se comentar,
Não glorifique – porque não houve heróis,
Só houve homens no III Reich.

E, ademais, não se diga
Indigno o III Reich.
Porque não houve indignidades,
Só houve o tempo.
O tempo não tem adjetivos: é ou foi e faz-se.

III
Agora, amadureço a questão.

Nós prontamente solidários com a memória
(Compromisso sem perigos)
E o desespero irreparável dos mortos,
Se àquele tempo presentes e vivos,

Como veríamos o III Reich?

IV
(Para responder, não te transfiras
A cômodo, como agora,
Busca adquirir a cidadania alemã
E depois, estável, responde:

Ao curso de fuzis e verdades da época
– considerando o risco de tua estabilidade –
Operário ou proprietário da Mercedes Benz,

O que farias no III Reich?)

V
Em nós o tempo é o mais humano,
E hoje de homem não temos senão o tempo ganho,
Fração de um tempo maior
Que a vagar se compõe, tão árduo.

Por isso pergunto:
Em todos os tribunais passados,
Que lado ocuparíamos

Pois que somos mas não somos ante o tempo
E também seus acidentes
Históricos e geográficos,
As estações a carência e os meses?

Se ainda fosse abril,
O que faríamos sendo em tempo do III Reich?

VI
Agora que estimamos
A incerteza
Ante o III Reich;

Agora que estimamos
Menos perigosa
A participação da memória

E muito menos eficaz;
Pergunto: tu, ante o presente,
Como te defines ao que será passado?

Há urgência de resposta, antes que a noite chegue.

Carregarás fardos para evitar
(Repara que o rio corre e a noite vem como onda)
Ou deixarás que apenas sejamos o tempo
E irreparável memória?

VII
Como existir e ser ante o III Reich
E qualquer um outro tempo de inquisição?

Diante escolha dada sem senões:
Vida ou absolutamente nada,
O nada mais roído,
O nada mais raspado,
Sem pontes ou rios, sem rios, sem pontes
Às fugas e navegações?

Ao dizermos sim, estamos com eles.
Não, e nos perderiam de tudo, mesmo de nossa intimidade,
E, na praça,
Sorririam de nossa solidão, nossa extrema solidão, nossa solidão na morte,
Conseqüência deste caminho de contradição.

(Quando semelhante escolha
Nos vierem pedir,
Que coisa diremos
Se só temos a vida,
A necessidade de preservá-la
E a compulsão de defini-la?

O que agir, se o que agimos
Nos define a vida
E a consciência
Desta mesma vida
Ante seus momentos
E ela mesma ainda?)

Ah, como louvamos o tempo
Que nos põe distantes,
Só importando em memória
A nossa escolha e saída.

VIII
(Como nenhum roteiro são
As navegações do barco,

Não há previsões que possam conceber o que seja
Anterior ao seu ato.

Qual a determinação da cidade
E do caminho ideal de abordagem

Não evitam a pedra
Calmaria e tempestade.

Portanto, ainda mais se complica a questão
Do que ser ante o III Reich.)

IX
Nada a perguntar
Se esquemática, fatal e somente

Judeu fosse judeu
E operário, operário.

E não como são:
Eles e, inclusive, o III Reich.

(Ao existir nos pomos, às vezes,
Cúmplices da contradição.

De outra forma, nada seria dramático,
A simples previsão do roteiro salvaria o barco.)

X
Pois, sendo judeu ou operário
O que fazer ante o III Reich?

Se pretensa vinculação mais ampla, de homem,
Te impede de responder

Com vinculação real de raça ou classe,
Onde não se é bom ou mau homem,

Mas mau negociante ou bom operário,
Lembra-te do acordo de ato e consciência que possui o III Reich.

Então, como te farias um homem
Ante o III Reich?

(Isto não é tão simples como aplaudir ou chorar,
Comprometido com Chaplin.)

XI
Tenho medo da imaginação
E de todas as travessias
Onde me possa superar a correnteza do rio.
Sinto medo de mim solto às divagações,
Onde não me determino.
(Mas que faria se já não fosse outono
E já não estivesse na outra margem do rio?)

Dou graças aos que passaram
E submergiram.  Bendigo os que se comprometeram
Com o erro, para que eu não tivesse
De vacilar quanto ao lugar de vau
Para atravessar este rio
Da existência, tão largo, tão humano e extensamente largo,

E arrancar o fruto do outro lado.

XII
Não quis dizer que a tudo justifica o tempo:
Fora, fazê-lo, assaz temerário.
Nem tentei um poema para desesperar:
Diverge o intento.  Quero dizer que o tempo não reflui
E inexiste chance de se provar a resposta
Do que seríamos ante o III Reich, mãos de SS ou meras mãos de inocente,
Participação mais grave que a dos que fizeram por bom senso
Ou interesse indefensável.

Escrevi para então,
Aos que dizem não posso, tenho limitações,
Posso ser posto de lado, à margem de direitos e comodidades,
Ou aos que têm dúvida de que a mudança é ótima.
Escrevi aos lúcidos, aos que mais rápido entendem o símbolo
E outra qualquer linguagem, aos que, entretanto, calam.
Acuso este bom senso de salvar-se
Roubando balsas ao barco
Que se tomou para viagem.

Mas tenho certeza de que, se apenas
Esses existissem, ainda amargaríamos o III Reich,
Como fruto constante
Na boca:

Fruto que não se come nem se joga fora.

Escrevo e sei que a todo tempo houve outros,
Com estes aprendo e me comovo,
E mesmo que soçobre o barco num relativo naufrágio,
Me mantenho atento às perseguições do porto.

In: José Carlos Capinan.  Inquisitorial.  2 ed. Civilização Brasileira, 1995.


Torquato Neto, Caetano e Capinan, c. 1966
 
               Em outubro de 1967, pouco antes de receber o prêmio dividido com Edu Lobo pela vitória da parceria dos dois, “Ponteio”, no III Festival de Música popular da TV Record, Capinan, o autor da letra, recebeu a notícia do assassinato de Ernesto Che Guevara nas selvas bolivianas, ocorrido alguns dias antes.  Nos bastidores do festival (considerado o mais importante de todos os festivais de canção, e sobre o qual aliás foi feito o ótimo documentário Uma noite em 67, disponível em DVD), Capinan escreveu a letra de “Soy loco por ti, América” e a entregou a Gilberto Gil, que no mesmo evento obteria o segundo lugar com “Domingo no parque”.  Essa história foi contada pelo próprio Capinan em uma entrevista, e penso ser suficiente para demonstrar a importância da obra deste poeta e letrista de canções no panorama da cultura brasileira dos últimos 40 e pouco anos.
            José Carlos Capinan é não apenas o estupendo letrista de “Ponteio” e “Soy loco por ti, América”, com parceiros que naquele momento estavam começando a se distanciar um do outro em suas propostas no panorama da MPB:  o tropicalista Gil (que na célebre foto de capa do disco Tropicália ou Panis et circensis, segura a foto de Capinan em bem comportada roupa de formatura) e o não-tropicalista Edu.  Capinan já vinha compondo e ainda comporia  outras magníficas canções com Edu e Gil, além de tê-lo feito ainda com muitos outros:  “Clarice”, por exemplo, com Caetano;  com Jards Macalé várias, entre elas  “Movimento dos barcos”, http://robertobozzetti.blogspot.com/2011/02/movimento-dos-barcos-jards-macale.html
além do escândalo de “Gotham City” em 1969; com João Bosco compôs aquele que talvez tenha sido seu maior sucesso de massa, “Papel maché”; com Paulinho da Viola, seu compadre, a extraordinária “Mais que a lei da gravidade” e muitas outras.  Isso para citar apenas de passagem outro parceiros como Sueli Costa, Xangai, Geraldo Azevedo, Fagner, Francis Hime e outros e outros, resultando num total que deve andar perto de 200 letras compostas.
            A complexidade e a excelência deste poeta letrista ficam claras quando se pensa no arco de criadores tão diferentes e nas propostas tão diversas que sua lírica atingiu – quando a letra é de Capinan é possível ver que sua assinatura confere uma marca própria no interior da obra de seu parceiro: isso impede, é óbvio, que se possa falar em “ecletismo”.  Mas hoje quero abordar o poema postado acima,   “Inquisitorial”.  “Inquisitorial” poema e  Inquisitorial livro.
            O livro Inquisitorial teve sua primeira edição, em pequena tiragem e, reza a lenda, circulação quase clandestina, em 1964. Há pouco tempo eu soube que a editora Civilização Brasileira o reeditara em 1995 e o adquiri.  Leio-o devagar, como exige esta poesia densa, incrivelmente densa e complexa, embora clara, de uma clareza que às vezes confunde, pelo esforço de depuração testemunhado em cada verso.  Em um poema, diz Capinan: “Mentira que o poema sublime/O medo e o sofrimento./O poema é trabalhado, dói, o poema é amargo.” O leitor é testemunha; o poeta é o exigente artífice dessa depuração e clareza.
O grande diferencial entre a primeira edição e a de 95 é sem dúvida a introdução de José Guilherme Merquior: o ensaio “Capinan e a nova lírica”, escrito em “Paris, abril de 1968”, e que Merquior houvera incluído em um de seus primeiros livros, o excelente Astúcia da mimese (por sinal que a obra de Merquior, vasta e valiosa,  está para ser toda relançada, com organização de João Cezar de Castro Rocha). Para esta 2ª. edição, a viúva de Merquior liberou a publicação do texto, conforme consta em agradecimento editorial.
            Li o poema “Inquisitorial” pela primeira vez nos idos de 1970 e poucos, incluído num volume de “poesia participante”  também da Civilização Brasileira, chamado Poesia viva. Eu não conhecia ainda o estudo de Merquior, nem universitário eu era.  Também naquela época, caso o tivesse lido, não o teria entendido, dadas as referências que o costuram e a complexidade com que o brilhante raciocínio do estudioso as articula.  Por falar nisso, está ali, nesse texto,  uma das mais importantes sínteses da poesia brasileira do século 20, que se torna mais impressionante ainda quando se considera a pouca distância temporal com que fora escrito.  Vim a ler o ensaio depois, já num período avançado do curso (por sinal, é desejável que se volte a ler a obra de Merquior nos cursos de letras, vinte anos após sua morte). Mas há muito de notável em que um poeta nitidamente alinhado à esquerda tenha chamado a atenção de Merquior, identificado sempre pela esquerda mais tacanha como um desprezível direitista.  Afinal, o que teria Capinan, militante comunista até os anos 70 (ou seja, atravessando a época mais violenta da repressão policial-militar), para atrair Merquior, que gostava de se definir como “social-democrata em política e anarquista em cultura”, além “liberal em economia”, e o levar a escrever o célebre ensaio – note-se: às vésperas do “maio de 68” em plena Paris?  As razões para isso são duas e nenhuma delas é desprezível: a qualidade da poesia política de Inquisitorial é altíssima (Merquior exclui dessa avaliação a terceira parte do volume, que seriam os primeiros poemas de Capinan); a segunda razão é que a honestidade intelectual de Merquior é exemplo raro no Brasil. Ao longo de toda sua vida, que se interrompeu quando ele não tinha ainda 50 anos, se não erro, Merquior foi um polemista feroz, escudado numa profunda inteligência e em assombrosa erudição: mas soube como poucos reconhecer o valor daqueles que muito diferente dele pensavam.
            Voltando a Capinan, o fato é que desde então poucos poemas de marcado vinco social ou político me impressionaram como “Inquisitorial” (na antologia em que o conheci, em meio a outros, seu destaque para mim era incontestável); creio mesmo que na literatura brasileira ele só encontra paralelo no “Nosso tempo”, de Drummond. E é, como no poema do mestre itabirano, um texto atravessado pela urgência do “tempo presente”; só que eu arriscaria a dizer que Capinan o faz atravessado pelo caráter dramático não exatamente (ou não apenas) do tempo – “o tempo não tem adjetivos: é ou foi e faz-se”, ele nos alerta –  mas do homem que vive seu tempo:  em Drummond,  no “tempo de partido/tempo de homens partidos” a tomada de posição é clara, quase que imediata; em Capinan, se a tomada de posição – “do que ser ante o III Reich” – também é clara,  ela vem somente após um lento, doloroso, percuciente desenrolar de observações que visam a remover o principal obstáculo da questão: o logro produzido pela cumplicidade da memória/história  com o mito,  personificado para e pela  nossa “comoção moderna” na figura do “Great Dictator” de Chaplin.  Esse obstáculo precisa ser removido para que o poema ao se fazer político não transija com o rigor da exigência de uma tomada de posição ética, irredutível ao brilho fácil dos clichês demagógicos.   No jovem Capinan parece nítida a lição de Brecht.
O poema ”Inquisitorial” leva o leitor ao desconforto, ao incômodo;  no entanto, parece-me também  implacável em seu poder de sedução pelas imagens, como na parte II, em que nos socorremos de nosso acervo de imagens cinematográficas na memória e somos quase que flagrados a endossar acriticamente o discurso do vencedor, por cruéis e repulsivos que tenham sido, no caso, o discurso e a prática do derrotado.  O poema se flagra, flagra o poeta e seus leitores ante o momento histórico brasileiro também: “Se ainda fosse abril/o que faríamos sendo em tempo do III Reich?” (...) “Mas que faria se já não fosse outono/e já não estivesse na outra margem do rio?”.  Sabemos  o quanto foram conturbados em termos político-institucionais os anos da primeira metade da década de 60 no Brasil, o quanto mesmo em seu todo a própria década foi intensa em torno da politização dos debates e das exigências de ação política.  O que torna ainda mais admirável a queda-de-braço de Capinan com as exigências éticas que em última análise se impõe e impõe à sua poesia: através do caminho que passa pelo leitor, que a este enlaça e ao poeta, a exigência ética assume uma dimensão que é verdadeiramente ontológica, indissociável da prática da poesia: “Escrevi aos lúcidos, aos que mais rápido entendem o símbolo/e outra qualquer linguagem, ao que, entretanto, calam./Acuso este bom senso de salvar-se/roubando balsas ao barco/que se tomou para viagem.” Ao dizer desta forma na última parte de seu poema, quero dizer, ao passar do discurso argumentativo ao imagístico, pela intermediação e explicitação do símbolo, Capinan mantém teso o arco de não acumpliciar-se com o conforto da memória, que nos leva a todos a “aplaudir ou chorar/comprometido com Chaplin.”  Mas que não se confunde quanto à posição política que sabe valer: afinal, como está em “Compreensão do bem”, o último poema do livro: “Em si, como todas as coisas, o bem não existe:/pelo mal se define e contradiz”.  
Essa poética do mais acerado rigor radica-se ainda, Merquior bem o detecta em seu ensaio, numa profunda compreensão da lição dos mestres modernistas brasileiros (mas não somente).  Eu diria que sobretudo da lição de João Cabral, se bem que ao lançar mão de estilemas que no poema “Inquisitorial”  despistam aqueles mais óbvios do mestre pernambucano, tal procedimento sutiliza o que poderia ser facilmente “denunciado” como “influência”.   O jovem Capinan em seus 22 ou 23 anos  (impressionante a junção de juventude e talento dessa geração e dessa turma, é só pensar, por exemplo nos companheiros de MPB) soube driblar também mais esse possível inconveniente, quer este fosse tomado como sendo da ordem do  “pastiche” ou da “diluição”. 
E assim, temos que a importância de Capinan está não apenas em que com ele a poesia de caráter abertamente político mostrou-se equipada para enfrentar os perigos do discurso panfletário, demagógico, do bom-mocismo bem intencionado em que tantas vezes cai a verborragia “política”  (heranças possíveis ainda do nosso condoreirismo), mas também que essa espinha dorsal do rigor e das exigências da lucidez certamente compuseram muito da diferença entre a politização da “canção de protesto” e a da canção tropicalista e pós-tropicalista (na qual a virulência crítica acabaria por se somar a uma politização do cotidiano e do comportamento).  Afinal, no admirável trabalho poético do letrista Capinan, a complexidade de uma letra como a de “Ponteio” está tão distante do protesto mais simplório de suas “similares nordestinas” quanto  revela muito mais afinidade com a tropicalista “Soy loco por ti, América” (o mergulho meio às cegas, "desembestado" num mundo de forças indomáveis, ante o qual o homem periga sempre ficar um tanto à deriva).    “Inquisitorial” (tanto o excepcional poema quanto o livro)  possivelmente desempenhou para seu criador,  e quem sabe para a postura política tropicalista,  esse papel depurador das armadilhas fáceis do discurso demagógico. 



quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

SOBRE POESIA...

Antonio Cícero:  É para ser fiel à poesia em si que o verdadeiro poeta se insubordina não somente contra a poesia convencional, mas contra o olhar ou a apreensão convencional da poesia.  Esse olhar, que é o olhar do falso poeta e do filisteu, pretende ser natural e não convencional, assim como pretende serem naturais as formas convencionais da poesia e naturais  os lugares em que convencionalmente espera encontrá-la, entre as amenidades da vida.  Contra essa concepção domesticada da poesia, o verdadeiro poeta se impõe uma tarefa dupla: por um lado, revelar a poesia em estado essencial e selvagem e, por outro, desmantelar as convenções que a elidem ou domesticam.  Essa decisão se radicalizou em alguns poetas da virada do século XIX para o XX, quando surgiram as vanguardas.
                                                                                                                      (In: Finalidades sem fim)





José Miguel Wisnik: Não é o tema que faz a poesia, pois todo assunto pode resvalar para a bobagem, o sentimentalismo e o clichê. O que faz a poesia é antes o rigor interno que não admite concessões aos discursos prontos — prontos para se apropriar de tudo o que é dito. Um poeta pode ser reconhecido por um único verso, pois uma palavra fora, uma palavra em falso, uma palavra falsa, põem abaixo o edifício todo. O poeta, nesse sentido, opera com todo o espectro das menores refrações semânticas e sonoras das palavras, fazendo com elas cálculos mentais e emocionais de alta complexidade.  (“Szymborska” in O Globo, 11/02/2012)



 ...e sobre vida literária:

Mário Faustino: Vida literária, emulação, reuniões sérias, leitura da poesia inédita, troca de experiências, debates, nada disso temos.  Quando se conversa sobre um poema, o que mais sai, em geral, é o “tá bom”, o “muito ruim”, o “uma beleza”.  Em lugar disso tudo, há o fenômeno amizade, o mesmo que se verifica em nossa administração, em nossa política: meu amigo escreve bem, meu inimigo escreve mal.  Você é um bom rapaz, simpático, não irrita a gente?  Seu poema está ótimo.  É um sujeito pedante, perigoso, lê mesmo os livros, é franco, implicante? Seu poema é, quando muito, “erudito”, “bem escrito”, mas não é poesia.
Mas afinal, dirá o leitor honesto, de que precisa a poesia brasileira? precisa de dinheiro.  De uma estrutura econômica estável como alicerce.  Precisa que o Brasil seja rico e autoconfiante e independente em todos os sentidos.  Precisa de universidades, enciclopédias, dicionários, editoras, cultura humanística, museus, bibliotecas, público inteligente, críticos de verdade, agitação, coragem.
                                                                               (in: De Anchieta aos concretos)











 

sábado, 18 de fevereiro de 2012

PABLO NERUDA


ODA AL GATO

Los animales fueron
imperfectos,
largos de cola, tristes
de cabeza.
Poco a poco se fueron
componiendo,
haciéndose paisaje,
adquiriendo lunares, gracia, vuelo.
El gato,
sólo el gato
apareció completo
y orgulloso:
nació completamente terminado,
camina sólo y sabe lo que quiere.

El hombre quiere ser pescado y pájaro
la serpiente quisiera tener alas,
el perro es un león desorientado,
el ingeniero quiere ser poeta,
la mosca estudia para golondrina,
el poeta trata de imitar la mosca,
pero el gato
quiere ser sólo gato
y todo gato es gato
desde bigote a cola,
desde presentimiento a rata viva,
desde la noche hasta sus ojos de oro.

No hay unidad
como él,
no tiene
la luna ni la flor
tal contextura:
es una sola cosa
como el sol o el topacio,
y la elástica línea en su contorno
firme y sutil es como
la línea de la proa de una nave.
Sus ojos amarillos
dejaron una sola
ranura
para echar las monedas de la noche.

Oh pequeño
emperador sin orbe,
conquistador sin patria,
mínimo tigre de salón, nupcial
sultán del cielo
de las tejas eróticas,
el viento del amor
en la intemperie
reclamas
cuando pasas
y posas
cuatro pies delicados
en el suelo,
oliendo,
desconfiando
de todo lo terrestre,
porque todo
es inmundo
para el inmaculado pie del gato.

Oh fiera independiente
de la casa, arrogante
vestigio de la noche,
perezoso, gimnástico
y ajeno,
profundísimo gato,
policía secreta
de las habitaciones,
insignia
de un
desaparecido terciopelo,
seguramente no hay
enigma
en tu manera,
tal vez no eres misterio,
todo mundo te sabe y perteneces
al habitante menos misterioso,
tal vez todos lo creen,
todos se creen dueños,
propietarios, tíos,
de gatos, compañeros,
colegas,
discípulos o amigos
de su gato.

Yo no.
Yo no subscribo.
Yo no conozco al gato.
Todo lo sé, la vida y su archipiélago,
el mar y la ciudad incalculable,
la botánica,
el gineceo con sus extravíos,
el por y el menos de la matemática,
los embudos volcánicos del mundo,
la cáscara irreal del cocodrilo,
la bondad ignorada del bombero,
el atavismo azul del sacerdote,
pero no puedo descifrar un gato.
Mi razón resbaló en su indiferencia,
sus ojos tienen números de oro.

In: Pablo Neruda. Antologia poética, 1973.

                                                                      

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

AH, UM SONETO... DE AUGUSTO DOS ANJOS


O CAIXÃO FANTÁSTICO

Célere ia o caixão, e, nele, inclusas,
Cinzas, caixas cranianas, cartilagens
Oriundas, como os sonhos dos selvagens,
De aberratórias abstrações abstrusas!

Nesse caixão iam talvez as Musas,
Talvez meu Pai! Hoffmânnicas visagens
Enchiam meu encéfalo de imagens
As mais contraditórias e confusas!

A energia monística do Mundo,
À meia-noite, penetrava fundo
No meu fenomenal cérebro cheio...

Era tarde! Fazia muito frio.
Na rua apenas o caixão sombrio
Ia continuando o seu passeio!

In: Toda a poesia de Augusto do Anjos.  Paz e Terra, 1978.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

ALVARENGA PEIXOTO

A D. BÁRBARA HELIODORA
SUA ESPOSA

REMETIDA DO CÁRCERE DA ILHA DAS COBRAS

Bárbara, bela,
Do Norte estrela,
Que o meu destino
Sabes guiar,
De ti ausente
Triste somente
As horas passo
A suspirar.

Por entre as penhas
De incultas brenhas
Cansa-me a vista
De te buscar;
Porém não vejo
Mais que o desejo,
Sem esperança
De te encontrar.

Eu bem queria
A noite e o dia
Sempre contigo
Poder passar;
Mas orgulhosa
Sorte invejosa
Desta fortuna
Me quer privar.

Tu, entre os braços,
Ternos abraços
Da filha amada
Podes gozar;
Priva-me a estrela
De ti e dela,
Busca dous modos
De me matar!


In: Sergio B. de Holanda. Antologia de poetas brasileiros da fase colonial. Ed. Perspectiva, 1979.


sábado, 11 de fevereiro de 2012

DOMINGOS PELLEGRINI JR.


"Boi do povo", fotografia de Carlos Ribeiro 


O BOI

O boi cala a marretada, e estrebucha.
Então ali, na antecâmara da morte
nos miolos explode um clarão forte
de inteligência e dor – o boi pensa e bufa.

O nariz entupido de sustos vermelhos
dos outros bois antes dependurados,
o boi se eletrocuta de medo;
o medo é verde, o boi expele medo.

Enquanto rola e lhe engancham a pata
tonto, vê dentro da cabeça zebuína
um filme colorido de hemorragias,
açougues, estatísticas e pastos.

O gancho sobe e os pensamentos do boi
ficam suspensos; e em vômito, convulsão,
lembra vacinas e capim colonião,
veterinários, riachos, tudo que viu e foi.

Então foi para isso que me picotaram
com injeções de hormônio feminino:
uma arroba de gordura clandestina
na balança do lucro me ganharam.

Então foi para isso que nasci: comer
e engordar meus dias com rações
cercado pelo olhar doente dos peões
e entre colegas de dor viajar e morrer.

Uma lâmina lhe abre na barbela
os segredos sebentos do pescoço
e o boi se vê no prato dos almoços
e nas bocas desiguais das panelas.

Lingüiças, mocotó, pentes, botões.
Carne.  Osso. Quilo.  Até miudamente grama.
O boi sente um orgulho que derrama
desse músculo incansável, coração.

Um braço rápido lhe enterra a  faca
na gruta do pescoço, o boi percebe:
quanto mais sai o sangue, mais leve
o pensamento fica, as visões fracas.

Mas ainda vê o seu antigo dono
riscando contas numa caderneta:
a arroba, sal, ração, capim, caneta;
com tanto lucro o boi sente sono.

No cheiro de banha, vapor das buchadas,
o boi lembra seu melhor dia de vida:
quando varou a cerca, ruminou ervilhas
da roça vizinha, feijão recém plantado.

E desmaia pensando em vitaminas:
proteínas sou, preço serei, produto
nacional e bruto  para os navios do mundo,
bandeiras de dólar, fome de rapina.

A motosserra vai serrando os chifres
mas o boi ainda pensa: meus rins
virarão patê; meus miolos enfim
mais nada pensarão como salsicha.

A pata livre escoiceia incompreendida
e o boi vê, numa última visão,
jantando dívidas, mascando coração,
a família brasileira reunida.

O boi sente cócegas longínquas:
estão esfolando – o couro malhado
irá para o destino de ser pisado;
para as panelas pobres irá a língua.

Boi, boi, boi – pensa o boi na esfola
boi virarei filé entre florões;
acém perdido na sopa de milhões.
Por que não nasci democrática cebola?

Boi, boi, boi da cara preta...
o boi ouve ecos de cirandas;
dedica sua carne a todas as crianças
e morre sem sangue; ruminando
se cumprirão ou não seu testamento.

                               In: Inéditos n. 2, julho-agosto 1976, Belo Horizonte.

Salvo desatenção maior de minha parte ou excessivo alheamento do mundo, não vejo quase circular entre os escritores brasileiros surgidos na década de 70 o nome deste paranaense nascido em 1949 em Londrina, onde vive há muito anos, como me informa o Google.  Talvez o fato de estar fora do velho eixo Rio-São Paulo ainda conte, mais do que se costuma pensar.  Talvez Pellegrini Jr. Tenha mesmo se retirado da vida literária ou se faça menos presente do que nos anos 70/80...
Não importa.  Entre o que escreveu de muito bom eu alinho esse poema publicado numa revista, Inéditos,  dedicada principalmente a novos na década de 70, editada em Belo Horizonte.  “O boi”, com seu andamento  pesadão, baseado nos versos de 10 a 12 sílabas, com abundância de palavras polissílabas, é uma reflexão irônica sobre o animal sacrificial por excelência (Mário de Andrade dizia ser o boi o símbolo maior do Brasil) em contexto utilitário, tensionando esplendidamente pela ironia um lirismo de humor um tanto sardônico com um discurso triunfalista de nação-potência (algo próximo ao triunfalismo da década do milagre, que vemos repetido em boa medida hoje na retórica oficial).
           A maneira ainda muito aguda com que o poeta transita de uma captação micro do detalhe referencial  (“A pata livre escoiceia incompreendida...”) para uma percepção  macro do quadro social (veja-se como passa na mesma estrofe para “e o boi vê, numa última visão,/jantando dívidas, mascando coração,/a família brasileira reunida”)  filia o poema a uma linhagem que tem uma de suas pedras-de-toque na valorização do “senso do real” de que falava Zola, aproximando-se tanto da apreensão realista de um Cesário Verde quanto, entre nós,  do genial “irrealismo” de Augusto dos Anjos.