domingo, 27 de abril de 2014

JOSÉ PAULO PAES



DO MECENATO

 Ele vive
Como um leão de circo.

De manhã , alguém
Deixa sobre o chão
Da jaula, ainda suja
De excremento e sonhos,
O prato de ração.
Nesse instante, ele pensa
(Breve espaço sem grades)
Um mundo mais justo,
Onde o pão não custe
Essa cabeça baixa,
Esse rubor ao insulto,
Esse olhar melancólico
A todas as escadas.
 
De dia, ele corre
O picadeiro com
A juba irritada
E urra como bicho
E vocifera, mas
Um chicote o traz
De volta à realidade.
Então, submisso,
Ele rola a bola,
Ele pula o arco,
Ele sob o degrau
Sob o olhar ferino
Da culta platéia,
Que no riso se vinga
Desse leão frustrado
Que há em todos nós.
 
De noite, ele volta
À rua de sempre,
À lua de sempre,
Ao sono de sempre
Sob cobertores
E dorme, no consolo
De que, neste mundo,
Apesar de tudo
Há sempre mais leões
Do que domadores.
 

            José Paulo Paes.  Poesia completa.  SP: Companhia das Letras, 2008.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

MARADONA É MELHOR DO QUE PELÉ?


MARADONA É MELHOR DO QUE PELÉ


 

 

 Sim, ele dirá que caiu que decaiu que fraudou ele que já invocara a mão de Deus que ao tripudiar  sobre os restos do Império Britânico não o fizera em vão como se fosse a junta patética de monstrengos glauberianos medalhados, ele lembrará ainda aos lombardos e piemonteses a existência e a condição de stranieri dos stranieri ao sul de Nápoles, diremos todos indignados depois de tanto tempo – traídos! – ao  sabermos que ele também nos fraudara aos  nos fazer cair decair sobre os restos do tricampeonato outra vez adiado pois ele hereticamente antibiblicamente tinha nos dado de beber a água que passarinho não bebe a água que atleta não bebe a água que nos narcotizou,  enquanto defraudado de um ombro como um mau ator ele nos fez voltar  para casa e foi o que se, sim e ele jamais deixará de dizer  que sim que nos abraçou olimpicamente fraterno que nos fez beber que nos derrotou que nos fez cair decair e nos fraudou e sim e ele sorriu e dirá e continuará a dizer que sim que sim que fez mais,  que bebeu que viveu que jogou o jogo que teve nas mãos a vida que suou e sorveu e cheirou e que comprou e que vendeu e que será fiel a Fidel

  Não, ele não dirá que foi por que quis que foi por que ele veio do mesmo nada social e mulato feioso trazia em si o desgosto de sê-lo e que por isso escolheu o castelo e uma princesa de grande boca meia tigela oca   e pernas infinitas entronizada por algum tempo e incensada pelos onans da vez e não dirá que quis o que quis e que quis e não,  ele não dirá que mais uma vez foi não um destampatório mas sim o desejo possivelmente saciado anteriormente no relativo segredo das celebridades viris inúmeras vezes de ter na boca e no rabo quente consistência de carne rija por que quis por que quer por que ninguém tem nada a ver com isso, que ele sim caiu decaiu, ele que fizera chorar mães italianas e brasileiras e se ergueu e reergueu e não defraudou e poderia ter dito que todas as naus do Egeu eram por direito suas e poderiam ter sido enquanto lhe durasse o delírio a fortuna a mídia a carreira, mas o mulato feioso pensa que chegou tão longe que pecou que é sua a vez e a hora de fingir falar em nome de todas as crianças que um dia poderão ter seus tênis suas chuteiras seus contratos suas boconas de princesas brancas e dirá que  pretende continuar fiel

 



O Rei Pelé - Rubens Gerchman, 1997
 
              
 
                    NÃO, MARADONA NÃO É MELHOR DO QUE PELÉ
 
 
 
                                   ... afinal Pelé é o nome de uma forma.
 
 
 
 
Roberto Bozzetti.  Firma irreconhecível.  Rio: Oficina Raquel, 2009.



NELSON ASCHER


TENTATIVA E ERRO

 
Tentei hoje e ninguém
mais sabe nem adianta
dizer quanto por quantos
caminhos diferentes
 
chegar ao compromisso
em tempo e não deu certo
tentei deus sabe e caso
não saiba já perdi
 
também a conta quanto
com quantas rezas bravas
lembrar o que ontem mesmo
lembrava e não deu certo

tentei mas professor
nenhum nem quis saber
quanto nem quantas vezes
passar com dez com nove

 e meio ou pelo menos
com cinco e não deu certo
tentei quem sabe quanto
em quantos infinitos

lugares encontrar
as chaves que quarenta
anos atrás pus sobre
a mesa e não deu certo

prometo que amanhã
tão cedo quanto for
possível vou de quantos
nem sei modos tentar

ainda tentar não só
ressuscitar os mortos
como acordar além
do mais cedo amanhã.

  

                        Nelson Ascher.  Parte alguma. SP: Companhia das Letras, 2005

 

 

segunda-feira, 14 de abril de 2014

SAMBA DE VERÃO

Ilustração de Talarico



Acúmulo de cúmulos
de impossíveis risíveis
poderes de podridão
risos e alegrias corrosivas
ácidos tóxicos
bueiro de gente de
bueiro de esgoto
sobre todos nós há
esse cu enorme sentado
paroxismo pletórico
baixando os níveis
de água: mágoa
de meu sarcasmo,
dizem eu me defendo:
nada.  Asmático e só
em breve fantasmático,
dó quem há de ter
de mim, sem custo
custódio, sem trono
sem guarda,  que eu
arda rei no inferno
quente como verão
no Rio.


quinta-feira, 10 de abril de 2014

AH, UM SONETO... MAIS UM DE GLAUCO MATTOSO


 

SONETO CACOÉPICO

 
É má cacofonia heróico brado,
que faz o nosso hino ser por cada
macaco no seu galho de piada
motivo, mito presto profanado.

Galhofo quando grafo “deputado”,
um réu por cuja mãe a pátria brada
e cuja nota tem que amar melada
a puta que a recebe de ordenado.

Por ti gela meu pinto, e por ti são
meus bagos esmagados qual sardinha,
ó língua de tão baixo palavrão!

Dos cacos que cuspi, calou Caminha.
A mim toca, contudo, uma questão:
Se já Camões fez caca em “Alma minha”...

 

In: Glauco Mattoso.  Tratado de versificação. SP: Annablume, 2010.

 

 


 

segunda-feira, 7 de abril de 2014

PABLO NERUDA NO PASQUIM



O GRANDE URINADOR

O grande urinador era amarelo
e o jorro que caiu
era uma chuva de bronze
sobre as cúpulas das igrejas,
sobre os tetos dos automóveis,
sobre as fábricas e os cemitérios,
sobre a multidão e seus jardins.
 
Quem era e onde estava?

Era uma densidade, líquido espesso
o que caía como de um cavalo
e assustados transeuntes
sem guarda-chuvas
interrogavam o céu
enquanto as avenidas se alagavam
e por debaixo de suas portas
entravam as urinas incansáveis
que iam enchendo açudes,
corrompendo pisos de mármore,
tapetes e escadas.
 
O que quer dizer isto?

Sou um simples e pálido poeta
e não vim para decifrar enigmas
nem propor guarda-chuvas especiais.
Até logo! Saúdo e me retiro
para um país onde não me façam perguntas.

 

                        Tradução de Olga Savary
In:O Pasquim n. 300.  29/03 a 04/04/1975

 

            Folheando aqui uns exemplares do legendário jornal carioca O PASQUIM, primeira grande trincheira sistemática de resistência  na imprensa ao período mais negro da ditadura instaurada com o golpe de 64, deparo-me, em seu número 300,  com uma matéria de Moacyr Werneck de Castro, falando de sua convivência com  Pablo Neruda.  A matéria traz ainda esse poema que aqui posto, com a anotação de que seria um dos dois últimos poemas escritos por ele..  Não consegui localizar o original em espanhol, para postá-lo aqui junto com a tradução,  como costumo fazer. 

            Bom me deparar com este poeta em meio às tantas páginas amareladas desses não muitos números do PASQUIM que tenho comigo encadernados.  Bom por vários motivos, entre eles o de lembrar, nesses dias em que as rememorações do funesto período de ditadura encontram-se à flor da pele, assim como timidamente se renovam as nossas esperanças cívicas quase vãs de que efetivamente se punam aqueles que tanto violaram as prerrogativas básicas da vida democrática e civilizada, lembrar o nome de um poeta de tão alta poesia e de exemplar presença contra os desmandos da terrivelmente assassina instaurada em sua pátria, o Chile, num golpe de estado poucos dias antes de sua morte – cujas circunstâncias, aliás, integram um processo de revisão pela justiça daquele país, uma vez que crescem os indícios de que Neruda – que  era amigo pessoal de Salvador Allende, o presidente socialista deposto e assassinado no golpe – tenha sido ele próprio também de fato assassinado pela ditadura de Pinochet, e não morrido por conta de um câncer na próstata, como sustentava a versão oficial.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

FONTOURA XAVIER


CARVALHO JUNIOR

 

Um instante, coveiro! o morto é meu amigo,
E como vês cheguei para dizer-lhe adeus;
Depois podes levá-Io, a Satanás, contigo,
Que sei que não pretende a salvação de Deus.

Eu descuidei-me, sim; nós dávamo-nos muito
Há meses abracei-o e nunca mais o vi...
Alguém, quem quer que seja! aproveitou o intuito,
Matou-o em minha ausência e trouxe-o para aqui.

Vim despedir-me dele... (Escuta-me, primeiro.
Tu deves conhecer os mortos que aqui somes;
Muitas vêzes Hamleto - a dúvida, coveiro,
Visita este lugar interrogando nomes.

Estuda esta cabeça, o príncipe há de vê-Ia;
Repara bem, é loura, esplêndida, à Van-Dick!
Pois bem, gasta a mortalha, então roída a tela,
Não tomes Baudelaire por um jogral - Yorick!)

Vim despedir-me, pois! A morte já começa
A martelar caixões na porta dos ateus!...
Sentido, batalhões! caiu uma cabeça...
Que importa uma vitória às legiões de Deus?...

 

 

Fontoura Xavier.  Opalas (edição definitiva,muito aumentada). Lisboa: Livraria Editora Viúva Tavares Cardoso, 1905.


          A respeito desse poema, Antonio Candido em seu ensaio “Os primeiros baudelairianos” observa que Fontoura Xavier “em 1879  recitou no enterro  de Carvalho Júnior um poema cheio de audácia satanista e ateísmo (admirado e traduzido por Rubén Darío), (...) cujo efeito se pode imaginar, naquela circunstância e naquele meio provinciano.”  (in: A educação pela noite.  Ática, 1987)