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sábado, 7 de setembro de 2013

RUBEM BRAGA DUAS VEZES



A Mariana Quadros, linda, amada e sólida fortaleza ética



CONVERSA DE COMPRA DE PASSARINHO

          Entro na venda para comprar uns anzóis e o velho está me atendendo quando chega um menino da roça, com um burro e dois balaios de lenha. Fica ali, parado, esperando. O velho parece que não o vê, mas afinal olha as achas com desprezo e pergunta: “Quanto?” O menino hesita, coçando o calcanhar de um pé com o dedo de outro. “Quarenta”. O homem da venda não responde, vira a cara. Aperta mais os olhos miúdos para separar os anzóis pequenos que eu pedi. Eu me interesso pelo coleiro do brejo que está cantando. O velho:

          – Esse coleiro é especial. Eu tinha aqui um gaturamo que era uma beleza, mas morreu ontem; é um bicho que morre à toa.

           Um pescador de bigodes brancos chega-se ao balcão, murmura alguma coisa: o velho lhe serve cachaça, recebe, dá troco, volta-se para mim: “- O senhor quer chumbo também?” Compro uma chumbada, alguns metros de linha. Subitamente ele se dirige ao menino da lenha:

           – Quer vinte e cinco? Pode botar lá dentro.

           O menino abaixa a cabeça, calado. Pergunto:

           – Quanto é o coleiro?

           – Ah, esse não tenho para venda, não…

           Sei que o velho esta mentindo; ele seria incapaz de ter um coleiro se não fosse para venda; miserável como é, não iria gastar alpiste e farelo em troca de cantorias. Eu me desinteresso. Peço uma cachaça. Puxo o dinheiro para pagar minhas compras. O menino murmura: “- O senhor dá trinta…?” O velho cala-se, minha nota na mão.

          – Quanto é que o senhor dá pelo coleiro?

          Fico calado algum tempo. Ele insiste: “- O senhor diga…” Viro a cachaça, fico apreciando o coleiro.

          – Se não quer vinte e cinco vá embora, menino.

          Sem responder, o menino cede. Carrega as achas de lenha para os fundos, recebe o dinheiro, monta no burro, vai-se. Foi no mato cortar pau, rachou cem achas, carregou o burro, trotou léguas até chegar aqui, levou 25 cruzeiros. Tenho vontade de vingá-lo:

          – Passarinho dá muito trabalho…

          O velho atende outro freguês, lentamente.

          – O senhor querendo dar quinhentos cruzeiros, é seu.

          Por trás dele o pescador de bigodes brancos me fez sinal para não comprar. Finjo espanto: “- Quinhentos cruzeiros?”

          – Ainda a semana passada eu rejeitei seiscentos por ele. Esse coleiro é muito especial.

          Completamente escravo do homem, o coleirinho põe-se a cantar, mostrando sua especialidade. Faço uma pergunta sorna: “- Foi o senhor quem pegou ele?” O homem responde: “- Não tenho tempo para pegar passarinho.”

          Sei disso. Foi um menino descalço, como aquele da lenha. Quanto terá recebido esse menino desconhecido, por aquele coleiro especial?

          – No Rio eu compro um papa-capim mais barato…

          – Mas isso não é papa-capim. Se o senhor conhece passarinho, o senhor está vendo que coleiro é esse.

          – Mas quinhentos cruzeiros?

          – Quanto é que o senhor oferece?

           Acendo um cigarro. Peço mais uma cachacinha. Deixo que ele atenda um freguês que compra bananas. Fico mexendo com o pedaço de chumbo. Afinal digo com voz fria, seca: “- Dou duzentos pelo coleiro, cinquenta pela gaiola.”

           O velho faz um ar de absoluto desprezo. Peço meu troco, ele me dá. Quando vê que vou saindo mesmo, tem um gesto de desprendimento: “Por trezentos cruzeiros o senhor leva tudo.”

           Ponho minhas coisas no bolso. Pergunto onde é que fica a casa de Simeão pescador, um zarolho. Converso um pouco com o pescador de bigodes brancos, me despeço.

           – O senhor não leva o coleiro?

           Seria inútil explicar-lhe que um coleiro do brejo não tem preço. Que o coleiro do brejo é, ou devia ser, um pequeno animal sagrado e livre, como aquele menino da lenha, como aquele burrinho magro e triste do menino. Que daqui a uns anos quando ele, o velho, estiver rachando lenha no inferno, o burrinho, menino e o coleiro vão entrar no Céu – trotando, assobiando e cantando de pura alegria.

 

In: Quadrante. RJ: Editora do Autor. 1962.
 
 
 

 

 
           Penso sinceramente que depois de um tal texto, qualquer adendo é completamente dispensável.  Mas não me furto a dois dedos de observações um tanto vadias, tendo sempre como guia as palavras muito claras que Davi Arrigucci Jr. escreveu certa vez a respeito da prosa de Braga: “Rubem Braga é um autor de acesso fácil e imediato para quem o lê,  mas extraordinariamente difícil para quem quer falar criticamente do que leu.  Nessa naturalidade complexa lembra ainda muito um poeta que quase sempre ele lembra no trato do cotidiano, da carne concreta e dos estados fugidios do espírito, das coisas comuns e humildes, mas espinhosas de se dizer literariamente: Manuel Bandeira.”  Arrigucci ainda observa que não se trata apenas – embora efetivamente se trate também – de escritores pertencentes a uma mesma família, de parentesco entre tons e temas.  Trata-se de que “o velho Braga não só é um poeta lírico, ainda que seja um dos maiores que surgiram aqui.  Que a sua andadura de prosa não nos engane.  Ele é essencialmente lírico.”
            Nesse sentido, esta  crônica aí em cima é perfeita, o silêncio final do narrador – dizer o quê diante da absoluta falta de compaixão e solidariedade, diante da indiferença pela sorte alheia, tão familiar em nosso cotidiano, tão concreta e perceptível o tempo todo em cada fração de segundo nas atitudes mais cotidianas? O lirismo de Braga, aliado ao profundo e claro senso ético de sua escrita – e aqui ela sempre me remete ao antilírico Graciliano – parece não envelhecer.  É de se arriscar mesmo dizer que não envelhecerá. 
Complemento esta postagem com um dos poucos textos que Rubem Braga publicou  em versos, seu poema mais conhecido, “Ode aos calhordas”.  A calhordice de que trata o velho Rubem não se restringe a uma suposta elite econômica, como talvez fosse cômodo, apressado e equivocado ler: a gosma gelatinosa e fétida que genialmente emana de seu poema nos faz lembrar que invade a tudo, se não tratarmos de construir uma sociedade e um mundo capazes de eticamente recusar o status quo calhorda.  Mas não vou ficar aqui nestes resmungos que, de resto, remetem muito mais a um estado de espírito um tanto pessimista e sombrio em que me vejo envolvido.  Melhor mesmo é ler o grande Rubem.  Que, sempre que se fizer necessário,  voltará a freqüentar este blog.


 
 
ODE AOS CALHORDAS
 Os calhordas são casados com damas gordas
Que às vezes se entregam à benemerência:
As damas dos calhordas chamam-se calhôrdas
E cumprem seu dever com muita eficiência

Os filhos dos calhordas vivem muito bem
E fazem tolices que são perdoadas.
Quanto aos calhordas pessoalmente porém
Não fazem tolices — nunca fazem nada.

Quando um calhorda se dirige a mim
Sinto no seu olho certa complacência.
Ele acha que o pobre e o remediado
Devem procurar viver com decência.

Os calhordas às vezes ficam resfriados
E essa notícia logo vem nos jornais:
"O Sr. Calhorda acha-se acamado
E as lamentações da Pátria são gerais."

Os calhordas não morrem — não morrem jamais
Reservam o bronze para futuros bustos
Que outros calhordas da nova geração
Hão de inaugurar em meio de arbustos.

O calhorda diz: "Eu pessoalmente
Acho que as coisas não vão indo bem
Pois há muita gente má e despeitada
Que não está contente com aquilo que tem."

Os calhordas recebem muitos telegramas
E manifestações de alegres escolares
Que por este meio vão se acalhordando
E amanhã serão calhordas exemplares.

Os calhordas sorriem ao Banco e ao Poder
E são recebidos pelas Embaixadas.
Gostam muito de missas de ação de graças
E às sextas-feiras comem peixadas.


                                                               1953

 
In: BRAGA, Rubem. Livro de versos. Ilustrações de  Jaguar e Scliar. Rio de Janeiro: Record, 1993.
 


 

domingo, 1 de abril de 2012

A BUCHADA DE CARNEIRO DE BRAGA E O VATAPÁ DE CAYMMI NA ENTRADA DO OUTONO

            Mário Faustino desdenhava da crônica e dos poetas que ele admirava e cuja admiração parecia decrescer a cada vez que ele lembrava que andavam se entregando ao exercício da crônica jornalística.  No fundo – e no raso – isso me parece um equívoco, mas quem sou eu  pra discutir com Mário Faustino, poeta e agitador cultural de minha muita admiração, que se fosse vivo ainda estaria por aí com 80 e poucos anos e teria muito provavelmente construído uma obra basilar de nossa poesia e da nossa crítica – a exemplo do que fizeram os concretistas seus amigos e também eles alvo de algumas  discordâncias quanto às questões de poética.  Aliás, o que teria sido da relação entre eles, não tivesse Faustino morrido naquele acidente aéreo em 1962?
                Suposições, conjeturas, tergiversações.  Assumo  aqui, agora e frequentemente,  um certo tom  de crônica, eu que desde ontem ando lendo e relendo Rubem Braga por dever de ofício.  Braga cronista fez para mim nas nossas letras aquilo que de mais próximo tivemos dos poemas em prosa baudelaireanos, o que é uma coisa a se investigar com mais profundidade,  talvez.   Mas há crônicas de Braga que são textos definitivos, daqueles peremptos, aqueles que atravessarão os tempos – e creio que de ninguém mais, além de Braga, pelo menos em quantidade.  Não sei se é o caso desta crônica que posto aqui hoje, e que não posto exatamente por estas razões em torno das quais fico remanchando.
                Posto porque nunca a tinha lido –  que eu lembre, pelo menos –, porque ela é magnífica, e porque é uma homenagem à altura daquele que considero um dos dois pratos mais espetaculares da cozinha brasileira.  Razão pela qual a postagem é complementada pelo outro prato que merece a mesma honra: o vatapá.  E que recebeu tratamento à altura do gênio Dorival Caymmi, tão genial que se você tiver alguma prática e boa intuição culinária dá pra fazer um vatapá seguindo o que diz a letra.   Rubem Braga e Dorival Caymmi eram, ainda por cima, amicíssimos, o que faz desta postagem um convite à alegria nesta entrada de outono.
                Há diversos vídeos de “Vatapá” no youtube, vários ótimos.  Fiquei entre postar este com os filhos do patriarca e um com João Bosco, acompanhado de Jamil Joanes e Vitor Biglione. Mas homenagear o clã acabou dando a diretriz, além do que o arranjo muito jobiniano de Dori (pena  os demais músicos não serem identificados) me convenceu de vez, trazendo à lembrança também os sons de Tom.
                Em tempo: pode parecer que falar em buchada de carneiro em pleno Domingo de Ramos, que abre a semana da páscoa, seria uma provocação anti-católica.  Nem pensei nisso, a não ser agora.  Mas a idéia de uma implicância – ainda que gratuita – também não me desagrada de todo.  

BUCHADA DE CARNEIRO
               Um dia, quando este mundo for realmente cristão, eu acho que ninguém terá coragem de matar um carneiro. Até que já devia ser pecado matar carneirinho. Tem tanto pecado na religião que a gente por dentro mesmo, não acha, não sente que é pecado - e matar um carneiro, ato bárbaro, contra um bichinho tão inocente, a balir, a chorar, é considerado coisa honesta! Entretanto desejar a mulher do próximo é pecado. Vamos que seja pecado avançar na mulher do próximo, telefonar com más intenções para a mulher do próximo, dançar muito apertado com a mulher do próximo - mas cobiçar, meu Deus, não devia ser pecado, porque muitas vezes é somente castigo e aflição; eu que o diga!
              Mas voltemos ao carneirinho; e contemos que tio Estácio carregou o bicho dentro da camioneta horas e horas, o tempo todo ele chorando, como se adivinhasse o fim da viagem. Tio Estácio até chegou a botar um esparadrapo tapando a boca do bichinho para ele não se lamuriar mais, porque os balidos feriam a consciência, cortavam o coração dos algozes. Mas de esparadrapo na boca o carneinho ficou tão infeliz chorando para dentro, tão desgraçado, que tio Estácio tirou o esparadrapo. E durante horas continuou aquela triste lamentação. Foi de noite que eles chegaram ao sítio. Um camarada queria amarrar o carneirinho lá fora, onde ele pudesse comer capim, tio Estácio achou que era perigoso, tem muita cobra; “aliás, ponderou, como ele vai morrer amanhã, não convém que coma hoje; assim dá menos trabalho para limpar". Vejam que bom coração é o tio Estácio!
               No dia seguinte, ao romper da alva, deu-se a execução, feita com requintes de técnica. Oh, se alguma senhora me lê, pare por aqui; eu sou um repórter fiel e tenho de contar tudo. A verdade é que não assisti ao ato nefando; tio Estácio também não; o carrasco foi Argemiro; o local afastado da casa-grande. Ficamos tomando refresco de maracujá para acalmar os nervos, procurando não pensar no que estava acontecendo naquele momento. Juro que eu ainda tinha uma vaga esperança, um sonho louco de que o crime não se concretizasse, o carneirinho talvez pudesse fugir, ou talvez na hora o braço de Argemiro tombasse...
             Mas aconteceu:  uma paulada rija na cabeça e depois o bichinho, ainda vivo, foi sangrado.
             É horrível pensar nisso. Vamos encerrar o assunto. Na verdade não houve mais nada. Apenas D. Irene passou o dia inteiro muito ocupada, dirigindo o serviço de duas negras,  e ela mesma trabalhando como doida.
             No dia seguinte todo mundo acordou com um ar estranho, Lula e Juca disseram que nem queriam tomar café, Mário e Manuel chegaram de longe, havia alguma coisa no ar. Pelas duas ou três horas da tarde essa coisa que estava no ar aterrissou na mesa.
             Lá em cima eu falei de religião. Pois se há alguma coisa que pode ar uma idéia de céu, de bem-aventurança, de gostosura plena - é buchada. Intestinos e vísceras mil, sangue em sarapatel, tudo se confunde junto ao pirão, esse fabuloso pirão em que a gente sente a alma celestial do carneirinho. Devo dizer que os miolos foram comidos dentro do crânio, com toda a dignidade; e aquela parte em que o carneiro prova que não é ovelha foi petiscada frita - uma delícia. Comemos, comemos, comemos, comemos; e cada vírgula quer dizer pelo menos uma cachacinha, e o ponto e vírgula pelo menos duas. O ponto final foi um grande sono de rede. E se vocês além de tudo ainda querem saber o moral história, direi baixinho, envergonhado e contrafeito, mas confessarei: o crime compensa.

                                                                           Fevereiro, 1955

In: A cidade e a roça, 2 ed. Editora do Autor, 1961.


VATAPÁ
Dorival Caymmi
( vídeo de 1984, com Danilo e Dori Caymmi)

Quem quiser vatapá, ô
Que procure fazer
Primeiro o fubá
Depois o dendê
Procure uma nêga baiana, ô
Que saiba mexer
Que saiba mexer
Que saiba mexer
Procure uma nêga baiana, ô
Que saiba mexer
Que saiba mexer
Que saiba mexer
Bota castanha de caju
Um bocadinho mais
Pimenta malagueta
Um bocadinho mais
Bota castanha de caju
Um bocadinho mais
Pimenta malagueta
Um bocadinho mais
Amendoim, camarão, rala um coco
Na hora de machucar
Sal com gengibre e cebola, iaiá
Na hora de temperar
Não para de mexer, ô
Que é pra não embolar
Panela no fogo
Não deixa queimar
Com qualquer dez mil réis e uma nêga ô
Se faz um vatapá
Se faz um vatapá
Que bom vatapá