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quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

TEMPORADA DE VERÃO, COPACABANA.1


Véspera de natal.

Chego cedo na casa dos pais, almoço com eles, depois do almoço a indispensável sesta. 

Depois de alguns minutos, acordo sem entender direito.  No quarto ao lado, aos berros, meu pai chama por minha mãe.  Ela, da sala, lhe responde, pachorrentamente, o que me indicava não haver nada de anormal na aparente emergência: “ – O que há? O que você quer?”  Recebeu de volta outra pergunta: “- O que você está fazendo?” Vem deitar!” “Vou, mas primeiro vou acabar de ver o filme de Maria e José. Ela passou três meses fora e chega grávida, ele não está gostando nada disso.  Acho que ela vai ser apedrejada. Você não quer ver? Vem ver o apedrejamento”  A conversa é, das palavras à entonação com que são ditas, mais o que exalam de absoluto à vontade na certeza do que o outro está pensando, um resumo de quase 70 anos de vida em comum.  No que obviamente devem se incluir as lições de catecismo, o beabá da história da sagrada família e outras informações do almanaque religioso que minha mãe, como boa filha de italiano, tem de cor e salteado.  Meu pai responde, de dentro de sua picardia, que se aguça, a depender da ocasião,  pelo Alzheimer contraído há não muito tempo: “- Vou ver nada, eu não!  Ela não é apedrejada. Se Maria  foi apedrejada, foi com pedras de gelo.”

Do quarto ao lado, começo a rir. Foi-se a sesta. Acabou num quase Monty Python.

Foto de Ivo Korytowski

Falei em catecismo... meus pais moram hoje na Barão de Ipanema  em frente à igreja de São Paulo Apóstolo, a qual, vista de cima,  me ocorre que  deveria ser chamada de basílica de São Paulo Apóstolo por  conta de sua cúpula redonda. Só que diferente do que eu pensava, isso parece não ser o bastante para que uma igreja seja chamada basílica  Enfim... os que são católicos   que se entendam.  Anexo à São Paulo Apóstolo  fica o colégio Guido de Fontgalland. Colégio pequeno, particular, ensino religioso.  Olho pela janela do apartamento de minha mãe e lembro que os mais antigos resquícios de catolicismo em mim, todos muito débeis em termos de reverência respeitosa, ligam-se àquela igreja e àquela escola.  Que mal freqüentei.  A ambos. Espaços com os quais não estabeleci a mínima proximidade afetiva.  Provável mesmo que,  até muito pelo contrário, quero-os afetivamente distantes.

Ali eu fui reprovado pela primeira vez em catecismo. Tenho medo de me confundir aqui ao escrever, já que parece que existe – ou existia – um colégio da própria igreja.  Mas não quero que esses detalhes me travem, sigo.



 

 Penso que tive duas experiências marcantes na minha relação com o catolicismo e ambas só fizeram afastar-me dele.  Houve uma anterior a este desastrado catecismo, mas conto esta primeiro: matriculado numa turma onde também estavam alguns colegas de escola (eu estava na 2ª. ou na 3ª. série), a professora era nada menos que assustadora: uma negra imensa de óculos de lentes escuras, uma voz trovejante, encorpada,  que ela emitia sempre  com muita intensidade.  Não bastasse, ainda brandia  uma régua, a exemplo daqueles mestres que vemos  em gravuras de livros antigos.  Leio  “assustadora” e “negra” e nem de longe enxergo qualquer laivo de racismo no que escrevi.  O “negro” do assustador não se liga ao fato de a professora ser uma pessoa negra, estou certo disso.  Claro que ela o era.  Mas vem  do fato de que,  lembro agora,  as vezes em que fui à malfadada aula – penso que talvez tenha ido a duas, três, não mais do que isso – a professora trajava sempre uns vestidos de tecido escuro,  pesados – e me ocorre também  que eu às vezes a via fora dali, no dia-a-dia do bairro  e sempre a via assim trajada. E mais do que isso, eu a associei desde logo, e ainda agora, também por conta de uns óculos puxados para fora,  à montanha demoníaca que aparece em  “Uma noite no Monte Calvo”, de Mussorgski, no Fantasia de Disney, filme que vivia passando nos cinemas de Copa e que lembro de ter assistido várias vezes, mesmo muito antes  do advento dos vídeos caseiros.  No filme, o belíssimo poema sinfônico de Mussorgski faz um medley com a “Ave Maria” de Schubert, as trevas demoníacas sendo banidas pela luminosidade celestial, o tormentoso de Mussorgski trocado pela impressionante placidez de Schubert, o cortejo de fantasmas,  pela procissão.  Quem viu o desenho de Disney sabe.


 

 

Mas o que ficou de aterrorizante dessa minha primeira experiência catecúmena frustrada foi de início ouvir o que a professora falava com enorme prazer, que sua voz aterradora chegava a tornar quase palpável: dizia ela sobre os atributos divinos, antegozando o êxtase do terror que devia saber que semeava na garotada,  que a onipotência, a onisciência e a onipresença de Deus significavam especialmente que  “Deus vê e sabe de tudo que você faz e pensa” , acrescentando com cada vez  mais ênfase  o  Não há onde alguém possa fugir da presença de Deus, nem mesmo antes de nascer!” ... alguns anos depois vim a me divertir com a coincidência desse mesmo medo pânico na canção de Raul Seixas, “Para Nóia”: “Deus vê sempre tudo o que cê faz/mas eu não via Deus... achava assombração...”

Mas por aquela época aquilo não me divertiu, horrorizou-me. Ainda mais quando o Marco Antonio, um menino que era da minha turma na escola e era como se dizia “muito levado”, aprontou alguma durante a temível lição, certamente entre um mandamento  e outro,  que fez com que a professora partisse irada para cima dele, de  régua em punho, com o propósito mesmo de alcança-lo, e o alcançaria,   e sei lá o que faria com o pobre moleque, se não fosse a existência de um  tablado onde ela ministrava suas aterradoras lições – tablado que a deixava ainda mais alta, mais corpulenta, mais ameaçadora - , o qual  fez com que ela pisasse em falso ao descê-lo, tentasse ainda se segurar mas em vão numa carteira próxima, e viesse se desequilibrando, catando cavaco até desabar estrondosamente no chão, o terrível monstro do Monte Calvo ali, prostrado a nossos pés infantis, tudo sem deixar em nenhum momento de bradar “Capeta, menino dos infernos!” e repetindo, repetindo, repetindo a frase, mesmo derreada no chão.   Engraçado é que da cena lembro só mesmo desse enorme desabar e da frase que o monstro repetia.  Não sei se é honesto dizer que Marco Antonio foi tomado de pânico e correu porta afora, ou se isso já é por conta de uma necessidade minha de saber os desdobramentos da narrativa.  Essa veracidade não sou capaz de assegurar.  Não tenho mais a mínima lembrança de nenhum outro pormenor relativo ao catecismo. Sei que, também sem saber detalhes das circunstâncias, ao final do curso fui declarado ainda não apto para a primeira comunhão – sei que nunca fui capaz de decorar aquele decálogo perverso  de interdições.  O que foi um alívio, já que outro pânico que me infundiram foi com relação ao fato de que a hóstia representa o corpo de Cristo e que se partir na boca na hora da comunhão terá sido um pecado muito sério, que Cristo ficaria  triste e ferido, eu chegava a imaginar minha boca com o gosto do sangue do Filho de Deus, horror dos horrores!  Mas a demonstração pragmática que Deus dera de sua onisciência e onipotência ao derrubar a temida professora tinha sido eloqüente demais para que eu não passasse desde então a viver arrumando pretexto para justificadamente  me esconder sempre dele.  Digo, Dele. Brrrrrrrrrr.

 


Falei antes que esse episódio não tinha sido a minha primeira experiência marcante a me afastar do catolicismo (penso mesmo que das religiões em geral, certamente pelo menos as monoteístas) . Nem sequer o fato de ter sido reprovado em catecismo o  foi, já que  houve ainda outra reprovação, na verdade um abandono do curso em prol do sagrado exercício da pelada, que eu até já contei aquihttp://robertobozzetti.blogspot.com.br/2011/02/em-torno-d-missa-de-behr-e-de-mim.html

 

Mas a experiência anterior a que me refiro, acho mesmo que até mais decisiva, se deu com o livro Marcelino pão e vinho.
 
 
Foi o primeiro livro que li, aos 6 anos.  Eu só fui para a escola com 7 anos, entrei direto na segunda série, fui alfabetizado em casa por meu irmão – acho que ele nem sabe o quanto lhe sou ternamente grato até hoje por isso.  Escrito por José Maria Sánchez Silva, publicado pela primeira vez nos primeiros anos  da ditadura franquista (para quem não sabe, um dos esteios de Franco era a igreja católica), é a estória de um menino órfão que é adotado por monges franciscanos, passando a viver no mosteiro com eles.  Apesar de ser alegre e muito inquieto, entre mil peripécias  Marcelino vai bater num sótão, onde a entrada lhe era expressamente proibida, e lá se depara com uma escultura de um Senhor morto (espanhol... brrrrrrr!) , com o qual passa a conversar constantemente – e secretamente, visto que lhe era interdito – e acaba revelando a Cristo que seu maior sonho era encontrar-se com a mãe, desejo irrealizável a não ser que ele, claro,  morresse.  Claro que é o que acaba ocorrendo, após uma enfermidade contraída.  Posso estar me equivocando quanto a um detalhe ou outro, não importa.  Em linhas gerais, é isso.   Sei que nos anos 1950 foi feito o filme, de enorme sucesso de público, mas dele não tenho lembrança alguma. O que me lembro é a imagem, construída em letra escrita, do Cristo descendo de sua cruz e levando a alma do menino consigo.  E dos monges, após, prostrados, ante o pequeno corpo morto.
 Como o título desta postagem indica, me proponho nesta série a contar em quatro ou cinco momentos algo de minhas memórias copacabanenses, e alguém pode estar se perguntando que diabos Marcelino  tem a ver com Copacabana.  Não é apenas pelo fato de ser memória de infância e  de eu ter vivido a infância em Copa, mas aqui no caso de Marcelino tem ainda e principalmente  o seguinte: o sótão onde o menino ia conversar com o Cristo crucificado era identificado por mim ao quarto de guardados que havia na minha casa em Copacabana.  Era um quarto pequeno, atulhado de esboços de quadros (“bozzetti” em italiano significa exatamente isso) de meu avô, um personagem admirável,  pintor acadêmico,  e que havia deixado de pintar por ter ficado cego (tenho pouquíssimas lembranças de meu avô ainda enxergando).  Ali ficavam guardadas também uma porção de ferramentas, muitas, que meu avô, mesmo depois de cego ainda utilizava, além de quinquilharia de toda ordem, bisnagas de tinta, espátulas diversas, cavalete, mil tralhas.  Pois bem: entre os amontoamentos do pequeno cubículo havia uma escultura de gesso de um Cristo crucificado, feita por ele o avô. Entre o sótão que o pequeno Marcelino freqüentava às escondidas dos monges e o quarto de guardados de nossa casa deu-se uma relação por assim dizer ficcional, que fez a ponte identitária que acabou por tornar a minha leitura produtiva.  E ao mesmo tempo apontou na direção de um necessário afastamento para evitar uma  relação vicária com o escrito.  E seu resultado mais efetivo foi o de ter me aproximado para sempre da literatura e ter me afastado para sempre do catolicismo.

A leitura do terrível livrinho espanhol acho que me pavimentou o bloqueio para a não-aceitação dos ensinamentos da catequese católica, e em sentido mais amplo, cristã, para sempre. E, mais fundo, o que tudo isso tem de Copacabana, não sei bem, mas certamente essas reminiscências têm a ver com uma Copacabana interna a mim.


O Cristo do espanho Juan Manuel Miñarro
 

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

NA MEMÓRIA: AS LEITURAS, A ESCRITA, ALGUMAS DECEPÇÕES







Minhas duas primeiras experiências com criação de textos na escola não foram lá muito afortunadas.  Quero dizer, as duas que a lembrança reteve. Não me traumatizaram em absoluto, não mesmo, mas também não sei muito bem o que me fizeram, nem exatamente o que pensar delas – a não ser que foram deploráveis, é claro.  Quem sabe agora, se eu me puser a escrever sobre, eu acabe descobrindo.

*

            A primeira que eu  lembro foi de quando eu estava na segunda série.  Depois de  corrigidas a  professora falou das melhores redações, fez aqueles elogios e tal e – olhando para mim, com ar meio maternal,  meio zombeteiro –  entrou de elogiar o que eu tinha escrito, disse que a minha  poderia ter sido  a melhor redação de todas, era a que estava mais bem redigida, sem nenhum “erro” exceto... a flagrante inverossimilhança!
            É certo que ela não falou a expressão, mas é do que se tratava.  Senão, veja-se: a gente tinha que escrever uma istorinha (é, de lá pra cá, eu acho que desaprendi ortografia...), envolvendo um gatinho levado que ia roubar umas postas de peixe na geladeira.  Claro que  era obrigatório um final  de moral edificante que dissesse assim “não foi preciso castigá-lo, pois ele já teve o castigo merecido!...” Pois bem, desenvolvi o tema, lembro perfeitamente de não ter tido a menor dificuldade em preencher o número mínimo de linhas (o que parecia ser sempre a grande tortura da maioria dos colegas), e fiz uma narrativazinha na qual eu contava que depois de ter pego com sucesso a primeira posta, o pobre gatinho deixou cair o prato que estava na geladeira,  já que... a segunda posta o havia mordido! Com o susto, tudo caiu ao chão, tudo se quebrou, o gatinho escapuliu e ninguém pensou em castigá-lo porque “ele já teve o castigo merecido”. 
            Ouvi que os colegas riam ao meu redor, e na mesma hora desconfiei de que havia algo de errado com a palavra “posta”, que eu  tinha escrito  sem ter noção precisa do que seria.  De fato, quando a professora, sempre rindo muito, explicou que era impossível que um uma posta de peixe mordesse o gatinho, é que fui entender que diabos era “posta”, palavra que nunca ouvira, não se usava na minha casa, onde, aliás, comia-se muito pouco peixe.  Lembro que tentei argumentar – eu também acabei rindo um riso amarelo – que eu achava que “posta de peixe” era uma porção de peixes num recipiente  esperando para serem limpos, como eu via minha avó fazer com as sardinhas antes de fritar. Um desses peixes, quem sabe, poderia ainda estar vivo, “nas vascas da morte” (não, a expressão também não me ocorreu, nem poderia)  Mas não me fiz entender.  O certo é que nada disso não me doeu não, tirando o desapontamento de poder ter feito algo perfeito, mas ter tido uma falha que acabara pondo  tudo a perder.  Me lembro que a trapalhada me chamou desde logo a atenção para a importância dos dicionários, tanto que ainda hoje me é muito nítido  que a primeira coisa que fiz ao chegar em casa foi abrir um e procurar lá a malfadada palavra.






*
          
             Uma segunda experiência  me foi bem mais desgostosa do que essa.  Já era na série seguinte, no começo do ano letivo.  Sei  que tínhamos de fazer aquela manjadíssima redação  sobre as férias, e eu entabulei  uma narrativa de um passeio através de uma trilha na mata, na qual dois irmãos se embrenhavam, descobrindo uma porção de coisas novas.  Morador então de Copacabana, onde também ficava a escola, que lá está até hoje, a Dr. Cócio Barcelos,  na esquina da Av. Copacabana com a Barão de Ipanema, meus pais estavam em vias de construir  esta casinha aqui no brejo onde acabei vindo morar depois de tantos anos, e vínhamos muito para cá, hospedávamo-nos na casa de um parente, enquanto eles tentavam fechar negócio.  Lembro que eu começava então a andar por esses matos e que num dia daquelas férias  andei muito e muito, até a noite começar a cair.  Lembro até hoje com nitidez que o local que me inspirara era então uma picada mato adentro, hoje transformada numa rua aqui perto de mim. Enfim. Ficcionalizei algumas dessas coisas e terminei minha redação com um dos irmãos falando para o outro: “Vamos voltar,  porque as primeiras estrelas já brilham no  céu...” com reticências e tudo.
            Pra quê! Elogios à minha singela estorinha até que vieram, mas o principal estava na pergunta da professora: “Muito interessante o final, mas: de onde você  copiou?”  Gozado que eu tenho a impressão, estou certo que a tive mesmo ao escrevê-la,  que a frase teria o seu tanto de artificiosa e entraria ali como um efeito especial.  Mas a certeza que eu tinha disso me enchia de orgulho, por ter conseguido encaixar de forma tão justa uma frase que me parecia tão bonita, ao final de um passeio de um dia que findava, as estrelas indicando que anoitecia.  A ideia grosseira de que eu a “copiara” me chocou.  Tenho a nítida certeza: eu fiquei desconcertado, flagrado num delito que não cometera.  Defender-me disso, como é difícil!  Não adiantou dizer que “de lugar nenhum”, a professora elogiava e, na mesma medida, pra não perder a mão “pedagógica”, me censurava.  Não lembro quanto tempo levei para desistir de me defender.  Lembro com muita clareza que fiquei puto.  Não humilhado, mas com raiva do que me parecia ser alguma coisa descabida.  Não pensei nestes termos, mas era provável que sim, que eu tivesse lido aquela frase em algum lugar, eu lia muito, o imaginário daquele texto estaria certamente impregnado de A ilha perdida, da Senhora Leandro Dupré, de Coração, talvez mesmo de Cazuza, de Viriato Correia, dos livros de Lobato, quem sabe mesmo de Pinóquio. Era minha maneira de dialogar com minha rede de leitura (repito: claro,  não formulei nesses termos).  Talvez ainda a tivesse ouvido  num filme, o que seria menos esperável, pois eu não ia tanto a cinema assim, dependia de meus pais me levarem, e televisão talvez ainda nem tivéssemos em casa – era primeira metade da década de 60.
            Não lembro sequer se comentei o assunto em casa, acho que não. De qualquer forma, o  que no caso das postas ferozes de peixe fora um oportuno corretivo – se bem que zombeteiro – , se transformava aqui,  nessa  desconfiança que lançava a pecha de fraude sobre o que fora um esforço de poetizar o relato já de si ficcionalizado, num estranho cerceamento ao exercício da leitura em seu livre trânsito para se transformar em escrita .  Mas penso estar seguro do que digo: essas coisas creio que não chegaram nunca a me doer em excesso.  E assim como minha atenção aos dicionários foi despertada por aquele primeiro caso, talvez este segundo tenha me chamado atenção para a desnecessidade de se “poetizarem” textos que podem perfeitamente dizerem o que dizem  sem serem adornados, enfeitados.  Uma lição cabralina, eu diria, no torniquete da repressão magisterial.  Talvez eu force um tanto a barra aqui, procurando sentido para o que provavelmente   não tenha, mas acho que sempre desconfiei de linguagem adornada, lantejoulada.  Seja como for, decorrente disso ou não, é certo que desconfio sempre,  quando identifico “poetizações”,  se não da honestidade de quem escreve (como um plagiário criminoso), daquilo mesmo que está escrito.



*


          Talvez cumpra dizer que  a própria experiência de leitura, digo: do texto literário mesmo, sempre teve para mim o seu tanto de deceptivo, e não exatamente no sentido de que fala Barthes. E sim deceptivo porque manco, porque a enorme gama de prazer que sempre experimentei ao ler foi via de regra acompanhada de uma dimensão de dor, de medo, de raiva, de frustração, de sentimento de recusa, o que tinha a ver com a própria obra lida.  O primeiro livro que li, aos seis anos, Marcelino pão e vinho, uma tenebrosa estorinha infantil de grande sucesso na  época da ditadura franquista, fazendo jus a toda a morbidez do mais escuro da alma espanhola, para mim foi emblemático do que muito tempo depois formulei assim: o primeiro livro lido me aproximou para sempre da literatura e me afastou para sempre do catolicismo. A essa dimensão dúplice, a que falta plenitude (acho mesmo que louvo essa falta)  é o que eu chamo um certo caráter  “manco”. Outros exemplos: pouco depois de Marcelino  li o Pinóquio de Collodi, não aquela versão adocicada do filme da Disney (que até hoje me parece insuportável), e não só senti medo concretamente em inúmeras passagens (como não temer aquele mundo de salteadores, vigaristas, como o gato cego e a raposa? e a terra para onde os meninos fugiam no meio da noite e onde acabavam transformados em burricos?  e a “bondosa fada” morta pela decepção que Pinóquio lhe causara?), bem como não consegui me conformar que ele tivesse que passar por todas as privações e humilhações por que passou para se tornar “um menino”, em vez de continuar singular na sua inteireza de boneco de madeira, podendo reincidir sempre em suas diabruras.  Em Robinson Crusoe, na versão adaptada por Lobato (a integral só vim a ler muito depois)  nunca me pareceu muito aceitável que Robinson  deixasse a ilha para tornar à civilização, no que me parecia – e também a ele, afinal, que saíra espontaneamente para se fazer  marujo – a existência desenxabida de antes.   E assim sucessivamente, eu diria. Nesse sentido, acho que só a maçã cravada entre as costelas de Gregor Samsa fez com que eu perdesse o sentimento deceptivo para perceber – aceder ao, diria o jargão – o caráter em última análise simbólico do texto literário.  Mas aí eu já tinha 15 anos. Penso que aqui já seria o deceptivo de Barthes.


*


           Mas houve um caso diferente que marcou num breve tempo etc: acho que agora eu já estava no 3o.  ano ginasial, o correspondente hoje à 7ª. série. Foi um ano terrível, o da minha primeira reprovação na vida escolar (houve outra, já no ensino médio), no qual o meu único triunfo foi um prêmio em  redação.  Não tenho a menor ideia de qual era o tema, lembro que ganhei uma alentada antologia de textos em verso e prosa – não, não era a do Fausto Barreto e Carlos de Laet , embora fosse volumosa – que muito me gratificou e da qual muito me servi em minhas descobertas, encantamentos e, claro,  recusas literárias.  O professor era um homem de meia idade, que para nós, alunos, parecia velhíssimo, chamava-se José Orindes, ou era esse o nome  que eu conseguia decifrar.  Ele fez um simpaticíssimo discurso ao meu texto e a mim, e disse que talvez fosse esperável que ele me desse de prêmio o livro mais lido e comentado do momento, o best-seller de José Mauro de Vasconcelos, Meu pé de laranja lima.  Fez uma pausa e disse que ele tinha lido e achava  que a qualidade não fazia jus à fama. Chegou a ser quase apupado pelos meus colegas  que tinham lido o livrinho;  eu, que também o tinha lido e achado sem graça, muito piegas – embora me agradasse a ambientação no bairro de Bangu, que era um esplêndido time de futebol naquela época, pelo qual meu irmão torcia – adorei ver que era possível um professor contrariar  tão decisiva e claramente a opinião geral de uma turma, ainda mais de pré-adolescentes folgados e barulhentos, como deviam ser os de uma escola pública em  Copacabana.  E mais, que dissesse, rindo e contemporizando, o parêntese e  as palavras finais do discurso-elogio que me proferia: “Está bom, gente, é só uma opinião pessoal.  De qualquer maneira, acho que será mais proveitoso o livro que estou dando, porque são vários textos de muitos autores diferentes.” O acerto do velho professor foi decisivo.



*
           Muito mais estranho... aliás, acho que muito mais estranho do que a maioria das coisas que passei na vida, foi o 2º. lugar  que tirei num concurso de âmbito estadual, quando  eu estava cursandoo  4o. Ginasial – agora no Colégio Pedro Bruno, em Paquetá – num concurso que tinha por tema a ideia de “conciliar”... neste caso o estranho é a impressão que eu tenho de que  à medida que a história  se desenrolava as coisas iam ficando mais obscuras, incompreensíveis, sem sentido e, tentando olhar de hoje, não tenho quase que nenhuma nitidez sobre os fatos e os não-fatos que cercaram esse episódio.   Foi um prêmio estadual, quero dizer, no âmbito da secretaria de educação, mas tenho a impressão de que de alguma maneira havia um vínculo qualquer com o ministério da justiça.  O ano era 1971, ditadura Médici.  Lembro que o diretor da escola de Paquetá foi comigo e com meu pai à solenidade de premiação,  e os dois, que eram amigos e tinham veleidades de esquerda, riam meio contristados e meio divertidos, falando no Gaminha,  que o “Gaminha vai estar lá”.   Nem de longe eu entendia o que seria aquilo de Gaminha, até porque – penso hoje – talvez eles não quisessem talvez me decepcionar ante a magnitude do prêmio a mim atribuído.  Lembro que na hora da solenidade fiquei aliviado por não ter ganho o primeiro lugar, caso em que eu teria de ter feito um discurso e tê-lo lido.  Lembro que os três melhores trabalhos foram lidos por um locutor oficial,  e que  procurei prestar atenção em especial no primeiro colocado, para entender no que ele seria melhor do que o meu.  Percebi de cara a diferença: o primeiro lugar era mais lúcido quanto ao real sentido do prêmio e da proposta que o movera.  Não apenas tinha uma estrutura dissertativa propriamente dita – o meu não passava de anotações soltas, um tanto líricas  e fragmentárias em torno da palavra “conciliar” – como caprichava ao falar da  real necessidade de construir uma nação em torno de um ideal de conciliação.  Quer dizer – mas isso não ficou claro para mim logo de imediato, ficou apenas a sensação de que eu não tinha entendido tão bem a proposta – o concurso buscava sem dúvida fazer com que a garotada, a juventude, eu, nós, embarcássemos na retórica oficial do poder ditatorial, que travava uma luta sanguinária longe do alcance da opinião pública contra a resistência armada (a repressão chamava de  “terroristas” e pregava fotos dos rostos de procurados em locais de grande circulação) e não estava aí para brincadeira: modestamente, eu poderia dar a minha contribuição entre os corações e mentes cooptados, era o que estava impresso de fundo, mas não estava escrito com todas as letras. 
            Agora, o que disso tudo era claro para mim na hora em que eu lá estava, num salão de repartição pública  em um prédio no centro do Rio?   (Não, não era no Palácio Capanema, o que reforça a minha impressão de hoje de que o prêmio tinha alguma conexão com o ministério da justiça da ditadura).   Nada me era claro.  O que me fez pensar nessas coisas todas foi só o nome “Gaminha” e o sussurro que entreouvi – do meu pai? de seu amigo,  o meu diretor? – que ele estaria lá e que ele era o ministro da justiça. Foi isso que acabou a posteriori rebobinando  esses acontecimentos que tento ordenar.  Gaminha era o sinistramente carinhoso apelido de Gama e Silva, ex-reitor da USP, onde fizera carreira dedurando colegas professores,  e que chegara a ministro da justiça, tido e havido por muitos como a mão que redigiu o AI-5.  Sim, lá havia um senhor idoso que parecia presidir a cerimônia e ouvia eu o murmúrio de que era o Gaminha, mas não creio que fosse ele mesmo, embora de fato estivesse no papel de a principal autoridade ali.  Vou ao Google agora,  pesquiso retratos da figura e não, não me acende em nada a lembrança. Além do que, também me informa o Google, o ministro da justiça da ditadura no período Médici era Buzaid. 
Repugna-me escrever esses nomes aqui.  O que não era claro então, mas me inquietava ao perceber essas conversas veladas, essa solenidade pomposa (o autor da redação que ficou em primeiro não apenas teve que ler um discurso especial para a ocasião, como ainda vestiu ridículas luvas brancas para assumir seu papel, o que aumentava meu alívio quanto ao de que me livrara), essa coisa estranha de retórica grandiloquente citando a toda hora a conciliação e o papel das forças armadas e o destino grandioso da pátria?  Refeita a pergunta pela embocadura negativa, a resposta é a mesma: nada me era claro. Eu era leitor de jornal, era leitor do Pasquim, há pelo menos uns dois anos eu tinha cada vez maior interesse pelas coisas ao meu redor, as visíveis e as ocultas, algumas perguntas já naquela época tinham ficado sem resposta para mim, agora lembro delas e me são dolorosas, misturam-se com o que eu já ouvira o diretor da escola mencionar mais  de uma vez sobre uma querida professora de português que eu tivera em Paquetá, uma morena doce e de feições que me  lembravam  Nara Leão e que abandonara as turmas  às pressas, ela gostava tanto de mim e do que eu escrevia, certa vez captei uma conversa que já bastante tempo depois me levou a concluir que seu marido estava na clandestinidade e tinha sido preso ou morto, me lembro que falavam agitados o professor de educação física que era muito seu amigo, ela e o diretor da escola, isso na ponte de embarque na Praça Quinze, e ela não entrou na barca, voltou acompanhada não lembro de quem, e nunca mais a vi, nunca mais ela retomou seu lugar, chamava-se Maria Helena.  Algumas vezes ainda, no tempo que passei na escola em Paquetá perguntei uma ou duas vezes por ela, nunca obtive nenhuma resposta conclusiva.  Em parte agora, em parte então,  tento juntar sem sucesso essas duas partes, tentava achar algum sentido em estar ali naquela cerimônia que tinha o seu de grotesco, falando – a troco do quê? – em conciliar, conciliação, penso que tive a intuição certa e não deixo agora de sentir um certo orgulho por ter feito um texto tão fragmentário, tão descosturado e que certamente por seus traços “poéticos” (mas copiados de quem?)  conseguira ir tão longe na premiação, esses acontecimentos agora que relato aqui continuam desconexos mas fazem seu sentido, mais do que o aparentemente pacato cotidiano que vivíamos naqueles anos, TV e mais TV, as redes de supermercado cada vez mais invasivas, o hábito de não se poder falar nada às claras, cachorros mortos nas ruas, policiais vigiando, o sol batendo nas frutas, sangrando etc.






quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

MURILO MENDES

Tela de Heitor dos Prazeres

ISIDORO DA FLAUTA
Nasci coisando, nasci com a música.  Recordo-me perfeitamente ao ouvir nosso Orfeu  número 1, Isidoro, flauteando na casa de meu pai, de Titiá e de Sinhá Leonor, tendo eu três anos de idade; Mamãe Zezé pianolando e cantando, mais tarde soube, árias de Porpora e Caldara.
Um homem de ouvido afeito cedo à visitação da música não suporta o mesmo normal desafinamento, quanto mais o cliquetis de espadas e ruído de bombas.
*
Isidoro da flauta é, por acaso, preto.  Fino; música é com ele; Isidoro flauteia a vida inteira; seu canto menor aplaca por instantes ódio, inveja, libidinagens,alguns trovões.  Que idade tem Isidoro? É intemporal, como tantos da sua resistente raça.  Não pacifista, antes pacífico.
*
Cheira a domingo, é a flauta de Isidoro da flauta que se aproxima, uma pequena festa levantada no eco, jasmins-do-cabo orvalhando, o vácuo expulso, a evaporação da mágua, um sub-céu incorporado à curva do meu ouvido; segundo Rimbaud, um vento de diamantes.
*
No princípio quero pegar o som.  Isidoro passa-me a flauta, é preta com uns enfeites prateados, reviro-a de todo jeito, Isidoro cadê o som, responde: o som está escondido na minha boca e no oco da flauta mas eu aperto ele com as mãos; Isidoro ri, sadio, parece que tem 64 dentes, branquíssimos.  Isidoro cadê o som? Isidoro sem dúvida está mordendo o som.  Corro para lá e para cá, vejo um começo de incêndio no morro do Imperador, julgo que o morro acendeu um fósforo.  Cadê o som? Isidoro querendo me sossegar diz que o som correu para apagar o fogo mas vorta já.
*
Ninguém isola Isidoro da Silva da sua flauta.  Não se diz mais: Isidoro, ou o preto Isidoro, se diz hoje e sempre Isidoro da flauta.
*
Lá das profundas da noite – rua perpendicular ao meu ouvido – vem a serenata andando, e eu com mãos acesas para pegá-la.  Flauta, cavaquinho, violão.  Não sei quem está no cavaquinho e no violão, só sei que Isidoro da flauta está na flauta. Ouço os pés da serenata chegando.  Param de fronte ao número 467 onde mora dona Lucinda, viúva de porte majestoso, com seis filhas.  A serenata será para todas, inclusive a viúva?  Para as meninas garanto.  Eu gosto da quinta, Marília, sonsa, atirada, sorriso moreno, que me aplica os olhos castanho-amarelados; a viúva costuma me dar beliscões, mas de simpatia.  A serenata, passos vazios, afastou-se, reviro-me no travesseiro, nunca verei de perto o som, nem o tocarei.  Por outro lado, segundo Gil Vicente, já vejo cousas que não vêm nem vão.  Não ouço mais o tiquetaque do relógio, penso, na certa foi dormir.  O ouvido se me abruma; faz frio, tenho os dentes descobertos.

            In: Murilo Mendes.  A idade do serrote. Sabiá, 1968

No meu exemplar do livro há um bilhete escrito por meu pai, que foi presente dele.  Transcrevo-o: “Na compra da Idade do serrote, comprei um cabo e muitas lâminas de serrote pros muitos parentes militares cerrarem fileiras. Papai. 19/XI/88 (É o da Bandeira)”  E anotado bem lá em cima: Elizart livros – R. Larga 63
Murilo Mendes por Talarico

sexta-feira, 20 de julho de 2012

AQUELA BUNDA ERA DA ROSSANA PODESTÀ!!







Acabo de descobrir que o meu primeiro alumbramento (consultar Manuel Bandeira, se for o caso) cinematográfico, a primeira bunda, a primeira visão entre os reflexos de folhagem n’água, as refrações, o chiaroscuro contrastante  da luz a 24 quadros, naquele corpo roliço na exata dimensão,  e flutuante-rolante em meio líquido e na imaginação palpável do que se via era... Rossana Podestà!
Vagabundeando pela internet mais do que deveria,  nesta madrugada gélida e vadia aqui no brejo, namorando imagens de filmes e atrizes, eis que relembro  de uma estória,  verídica a mais não poder, de que andei me lembrando e contando recentemente a alguns amigos e amigas: a estória do meu primeiro nu cinematográfico.
Devia ser por volta de 1966 ou 67, no Grêmio Social Esportivo aqui do local, nome muito engraçado, pela pompa, de  uma construção inacreditavelmente precária e tosca que foi demolida não tem mais do que três anos. Sábados à noite era sessão de cinema, às 8.  Apenas um projetor, os filmes em quatro rolos eram interrompidos para a troca – momento em que a rapaziada aproveitava para fazer uma social.  Ali eu vi inúmeros filmes “históricos” italianos, uns épicos fuleiríssimos, aventuras de Sansão, Maciste, Golias, nomes que  acabavam rendendo apelidos,  distribuídos pela molequeira entre uns poucos agraciados – aqueles mais fortes de corpo ou mais valentes.  Vi também “O assalto ao trem pagador”, o ótimo filme de Roberto Farias, particularmente emocionante para todos nós, por ter cenas filmadas na subida desta serra – onde se dera efetivamente o assalto, factual – logo depois da estação de Japeri, antes de chegar a Mário Belo. Lembro que foi provavelmente o filme recebido com maior entusiasmo por todos nós, moleques (aqui não existe o termo “garotos” nem “meninos”) –,  o que me ajudou desde muito cedo a não nutrir nenhum tipo de preconceito contra o “cinema nacional”, essa expressão que assume ares terrivelmente pejorativos, quando é (ou era...) dita  com esgar de canto de boca por uma classe média urbana de zona sul carioca que era o meu “outro lado”, aquele de onde eu procedia.  Vi também no Grêmio Social Esportivo meu primeiro filme de terror, com uma cena em que um rosto aparecia desfigurado e que me valeu um susto medonho – que um amigo tratou de tentar dissipar, mostrando-me como era fácil de ser obtido o efeito com uma simples vela acesa sob o rosto (a câmera pegando o rosto também de baixo). Era um troço, o tal filme,  chamado “Raptus – o diabólico Dr. Hitchcok”, do qual o único vestígio que me ficou foi esse susto, por muito tempo, apesar dos esforços contrários do meu amigo para dissolvê-lo. 
Mas nada se compara à emoção do alumbramento em “A escrava de Roma”.  Pelos googles da vida leio tratar-se de um dos “épicos” (Sergio Leone, um dos meus mais amados diretores, começou dirigindo alguns desses épicos, foi a sua escola) italianos, um filme de 1961 – e leio mais: que Podestà havia já vivido   Helena de Tróia, num filme homônimo de Robert Wise, uns cinco anos antes, tendo sido também Nausicaa numa produção chamada “Ulisses”. Mas em “A escrava de Roma”... não, não lembro de absolutamente nada no filme,  a não ser A cena.  Ela (presumo que fosse a escrava) retira-se para banhar-se num rio, protegida por um guardião, que ficará de vigia.  A cena é manjadíssima em atmosfera barata de filmes de segunda, claro.  Devia rolar algum clima entre Rossana e seu guardião, claro também, mas não sou capaz de assegurar (e denegrir a imagem da deusa). Sei que  ela dirigia a ele algumas palavras, de dentro d’águia, virada para a câmera, acho que dava um sorriso e... virava-se de costas quase à flor da água, para nós, espectadores – de súbita respiração interrompida – ,   e ensaiava  umas braçadas!  o. O. O oO. O Ó OH, o OOOOOOOOOOOOHHHH o OOOOH sem limite sem trégua sem nada sem fim, a bunda ali quase à flor da água,  e ela nos oferece aquele dorso, aquele dorso, o dorso. Indescritível o que se passou então? Não, não é a palavra.  Indelével, sim. Gritos. E palmas. E urras. E assovios. Muitos. Mas muitos sobretudo risos de prazer. Muitos. E assovios urras palmas e gritos muitos gritos e gritos.  Coisa de torcida, de geral, de domingo.  Com quantos ali eu compartilhava aquele alumbramento? Certamente com muitos, e com os da minha idade, pouco mais pouco menos, certamente com todos. Ah, sim, o som ficou: cadeiras batiam no chão, freneticamente.  Explico: as cadeiras eram soltas, ficavam amontoadas num canto da “sala de projeção” e, ao entrarmos íamos lá e cada um pegava a sua e a punha onde bem escolhesse. Veio daí, acho, meu hábito me sentar na cadeira de frente para as costas dela.  Mas eu dizia: as cadeiras batiam no chão, movidas pelo nosso entusiasmo de possessos. Sou capaz mesmo de assegurar  que uma ou duas voaram no auge da nossa empolgação. Uma ou duas. Ou três, talvez. Não mais.  Talvez fosse mais aconselhável assegurar que todas as cadeiras voaram.  Seria falsamente hiperbólico, uma pobre licença realista, a passar quase despercebida.  Tolice, literatice.  A hipérbole foi interior:   Alumbramento, que por definição é indelével.
Lembro que saíamos do cinema lá pelas 10 e pouco,  e saíamos mimetizando as cenas vistas há pouco. Lutas de espada, duelos de revólver (engraçado que não lembro de nenhum faroeste marcante que tenha visto ali), frases, exclamações, golpes de pés e mãos recém aprendidos eram comuns.  Tais exercícios eram importantes também por duas razões: nas noites de inverno, era uma maneira de espantar o frio medonho; além disso, na época,  quase não havia luz na estrada (terminava uns 200 metros antes da minha casa), sendo, portanto, como o assovio, uma prática altamente recomendável para  espantar o medo.  Não lembro da algazarra na saída de “A escrava de Roma”.  O que será que levávamos daquele filme, tão impactante para nós, além da necessidade de espantar o frio e o medo? 
O professor moribundo do soberbo “As invasões bárbaras” de Arcand lembra-se de seu alumbramento com Inès Orsini, atriz que em filme marcante de sua infância,  representando Santa Maria Goretti,  a certa altura levanta a saia dentro d’água e mostra as canelas. O professor diz que verteu rios de esperma por conta dessa visão.  Não, eu não verti rios de esperma por Rossana Podestà.  Na ocasião eu tinha 10 ou 11 anos, era cedo ainda.  Mas a visão ficou. Não consegui, buscando pela internet,  o “still” daquela cena, nem sequer nenhum “still” de “A escrava de Roma”,   mas a visão ficou. 



domingo, 3 de abril de 2011

NA MEMÓRIA: ADEMIR DA GUIA

para o Marcelo Mendez
            Quando resolvi escrever sobre Ademir da Guia fui aos googles da vida para precisar alguns dados, esclarecer outros. Então descobri que o craque faz 69 anos  neste de 3 de abril.  O texto rascunhado ganha forma definitiva e é postado para celebrar a data.



Nunca vi ao vivo um jogo do Palmeiras, nem quando acompanhava de perto, na adolescência, futebol.  Dos grandes times de São Paulo acho que foi o único que nunca vi, num daqueles Rio-São Paulo/Robertão.  Tenho absoluta certeza de que o Palmeiras não vi – o Corinthians eu tenho alguma dúvida – porque jamais esqueceria se tivesse visto ao vivo Ademir da Guia. Por nunca tê-lo visto ao vivo, nos meus retalhos de memória Ademir da Guia é mais cinza do que verde. Quando a cor chegou à TV no Brasil, o craque já estava na reta final de carreira.  O verde vestindo Ademir só nas capas da Revista do Esporte.
            O interesse pelo futebol nasceu com a TV comprada pela família em 65, acho, e além de Pelé dois nomes de jogadores dos anos 60 ficaram para sempre fixados, junto a suas imagens fugidias mas resplandecentes, em meu encanto pelo futebol que jogavam e que me impressionava: Paulo Borges, um endiabrado ponta-direita do Bangu, velocíssimo, habilíssimo, goleador mortal naquele grande time (sim, o Bangu era grande nos anos 60!)  vice em 64, 65 e 67, campeão em 66. Paulo Borges que acabou sendo comprado pelo Corinthians em 68, e que em seu primeiro jogo ajudaria o Timão a quebrar um “tabu” de 13 anos (acho) sem vitórias sobre o Santos, inclusive com gol seu. Mas hoje aqui não é Paulo Borges nem Pelé.
            Ademir da Guia: graças a ele fui aprender o significado da palavra “sarará”. Aquela figura mulata de pele clara, cabelo pixaim louro, era uma dissonância na paisagem humana habitual: eu via negros, mulatos de todos os tons – como se diz no Brasil – pardos em geral, brancos, louros, brunos, e não só no futebol.  A dissonância também estava nas passadas largas do craque singular: Ademir parecia de fato uma figura em câmera lenta, o corpo dando constantemente a impressão de que flutuava, não sei bem, uma espécie de movimento um pouco acima do chão, de quem pisa na ponta dos pés.  Certamente havia momentos em que esse ralenti, como se diz em cinema, era posto de lado e o craque tornava-se mais agudo, certamente havia, durante os 90 minutos de uma partida, os momentos que lhe exigiam isso.  Mas eu não lembro absolutamente desses momentos.  Seja como for, Ademir da Guia não era absolutamente praticante de um futebol lento: a rapidez estava nas soluções que encontrava, no passe preciso e certeiro no tempo certo.  Acho que foi Gerson que cunhou a frase “no futebol quem corre é a bola, não o jogador”.  Se não foi, tem tudo a ver. Gerson praticava um futebol “parado”, como Ademir era “lento” (as aspas explicam tudo).
            Não vi ainda o filme que foi feito sobe Ademir, Um craque chamado Divino, parece que em 2006.  De vez em quando vejo alguns retalhes de lances do Palmeiras em flashes antigos na TV. Às vezes aparece esse Ademir mais incisivo, obrigado pelas circunstâncias do jogo a um movimento mais súbito, mais deselegante.  Minha memória não gosta muito disso.  E não tem maior mistério, pois a memória do que foi efetivamente visto é parte pequena do que pensamos nos lembrar do que vimos.  Ao que foi visto se juntam os outros elementos da espessura do tempo ao fabricar a memória. Na verdade, no meu caso, a memória vem sempre impregnada pela poesia, por uma espécie de vivência do literário.  E aí lembro também de maneira muito forte a funda impressão causada em mim pelo poema de João Cabral de Melo Neto, “Ademir da Guia”, que li quando saiu Museu de tudo, em 1975, e que é na minha avaliação o melhor poema sobre futebol escrito no Brasil (o fato de serem poucos não lhe tira em nada o mérito).  Ademir ainda se encontrava em atividade quando o livro foi publicado, e andava em baixa em certos círculos (burros) do futebol, uma vez que Zagalo o barrara na Copa de 1974 – o pretexto: “Ademir era lento!” –, quer dizer, já era seu momento crepuscular.  Meu afã de acompanhar futebol também se encontrava a essa altura em declínio.  Mas meu interesse pela poesia era crescente.  Daí que penso que as imagens da câmera lenta de Ademir se fixaram reforçados por esse poema extraordinário, que explica a lentidão por um ângulo insuspeito, visível apenas a um grande poeta, executado apenas por um craque de exceção.  Posto-o aqui:
Ademir da Guia
Ademir impõe com seu jogo
o ritmo do chumbo (e o peso),
da lesma, da câmera lenta,
do homem dentro do pesadelo.

Ritmo líquido se infiltrando
no adversário, grosso, de dentro,
impondo-lhe o que ele deseja,
mandando nele, apodrecendo-o.

Ritmo morno, de andar na areia,
de água doente de alagados,
entorpecendo e então atando
o mais irrequieto adversário.

            Assim, posso dizer que é das borradas imagens da TV em preto&branco e do preto das palavras no branco do papel de João Cabral que se nutre sobretudo minha imagem do craque Ademir da Guia. Ao redor, o mundo dos amantes do futebol, dos que sabem vê-lo com os olhos de quem busca o prazer que o bom futebol proporciona, sempre confirmou as imagens fugidias do craque que tanto marcou minha infância e adolescência. 

"os demônios soltos e o anjo em suspensão"



         Quando resolvi que eu iria escrever este texto, procurei lembrar, para efeito de contraposição, de outros grandes jogadores de meio-campo da época.  E tomei um susto ao ver que quase ia me esquecendo de Rivelino, ídolo corintiano, herói tricolor e também herói do tri no México em 70.  Impressionante craque também, no entanto não deixou nenhuma imagem maior na minha memória – ou melhor, até deixou, mas de sua irascibilidade dentro do campo. Lembrei que José Miguel Wisnik fazia um interessante contraponto entre os dois craques em seu maravilhoso Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São palavras precisas e preciosas:
            “Rivelino e Ademir eram algo assim como o ímpeto e o continuum, a combustão e o banho turco, os demônios soltos e o anjo em suspensão. Tudo isso sem um termo comum à vista, a não ser o fato de ocuparem, mais uma vez, a mesma posição, e de serem craques. (...) Mas Ademir da Guia é uma carta cifrada, não decodificada pelo futebol brasileiro do seu tempo, como se ele concentrasse em si, sozinho, numa espécie de “fundo de garantia”, a capacidade que o futebol brasileiro em geral ia perdendo no lapso indefinido daquele período: a capacidade coletiva de reter a bola, de imprimir o ritmo ao jogo, comprimindo-o e distendendo-o – como faz João Gilberto com o canto.”
            No que toca exclusivamente a Ademir – sem falar que o paralelo com Rivelino é um espanto de perfeição – a capacidade destacada de comprimir e estender o jogo me leva a pensar em Paulo Henrique Ganso. A figura futebolística de Ademir talvez não encontre paralelo em sua solitária genialidade.  Ou talvez seja apenas a minha memória que não o admita.  Mas confesso que ao longo de todos esses anos às vezes me alegrava ao me deparar com algum jogador que pudesse reencarnar as maiores qualidade do craque palmeirense.  Cheguei a pensar vê-las em Sócrates, mas na filigrana dos detalhes eles se diferenciavam muito.  Depois no irmão deste, Raí, mas este foi um projeto de esplendor muito rápido que logo se malogrou. Pensei ver algo ainda em Giovane, do Santos, talvez mesmo o mais próximo, mas... agora penso no genial Ganso.  Se me parece claro, muito claro que Ganso veio para entrar de vez na galeria dos grandes gênios do futebol no meio-campo, é sobretudo pela capacidade de estender e comprimir, diástole e sístole.  Mas Ganso é um outro capítulo, que começa a ser escrito, o paralelo fica como incógnita.  Ademir da Guia brilha sozinho e glorioso na memória de quem gosta de futebol.