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quarta-feira, 13 de agosto de 2014

WISŁWAWA SZYMBORSKA




RECITAL DA AUTORA

 

Musa, não ser um boxeador é literalmente não existir.
Nos recusaste a multidão ululante.
Uma dúzia de pessoas na sala,
já é hora de começar a fala.
Metade veio porque está chovendo,
o resto é parente.  Ó Musa.

As mulheres adorariam desmaiar nesta noite outonal,
e vão, mas só ao assistir uma luta colossal.
Só lá as cenas dantescas.
E o ascenso aos céus.  Ó Musa.

Não ser boxeador, ser poeta,
estar condenado a duras florbelas,
por falta de musculatura mostrar ao mundo
a futura leitura escolar – na melhor das hipóteses –
Ó Musa.  Ó Pégaso,
anjo eqüestre.

Na primeira fila um velhinho sonha docemente
que a finada esposa ressuscitou e
assa para ele um bolo com passas.
Com fogo, mas não alto, para o bolo não queimar,
começamos a leitura.  Ó Musa.
 

                                               Tradução de Regina Przybycien

 

Wislawa Szymborska.  Poemas.  SP: Companhia das Letras, 2011.

domingo, 13 de maio de 2012

DOIS POEMAS DE WISLAWA SZYMBORSKA







 A MULHER DE LOT

Dizem que olhei para trás de curiosa.
Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de prata.
Por distração – amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio na esperança de Deus ter mudado de ideia.
Nossas duas filhas já sumiam para lá do cimo do morro.
Senti em mim a velhice.  O afastamento.
A futilidade da errância.  Sonolência.
Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão.
Olhei para trás por receio de onde pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
Já não eram bons nem maus – simplesmente tudo que vivia
serpenteava ou pulava em pânico consorte.
Olhei para trás de solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi só quando um vento bateu,
despenteou meu cabelo e levantou meu vestido.
Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma
e caíam na risada, uma vez, outra vez.
Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.
Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para trás.
Não, não.  Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escuridão não caiu do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivesem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade.



PRIMEIRA FOTO DE HITLER

E quem é essa gracinha de tiptop?
É Adolfinho, filho do casal Hitler!
Será que vai se tornar um doutor em direito?
Ou um tenor da ópera de Viena?
De quem é essa mãozinha, essa orelhinha, esse olhinho, esse narizinho?
De quem é essa barriguinha cheia de leite, ainda não se sabe:
de um tipógrafo, padre, médico, mercador?
Quais caminhos percorrerão estas pernocas, quais?
Irão para o jardinzinho, a escola, o escritório, o casório
com a filha do prefeito?

Anjinho, pimpolho, docinho de coco, raiozinho de sol,
quando chegou ao mundo um ano atrás,
não faltaram sinais na terra nem no céu:
gerânios na janela, um sol primaveril,
a música de um realejo no portão,
votos de bom augúrio envoltos em papel crepom rosa,
pouco antes do parto, o sonho profético da mãe:
sonhar com uma pomba - sinal de boas-novas,
se for pega - vem uma visita muito esperada.
Toc, toc, quem é, é o coração do Adolfinho que bate.
Fralda, babador, chupeta, chocalho,
o menino, com a graça de Deus e bate na madeira, é sadio,
parecido com os pais, com um gatinho no cesto,
com os bebês de todos os outros álbuns de família.
Não, não vai chorar agora,
o fotógrafo atrás do pano preto vai fazer um clique.

Ateliê Klinger, Grabenstrasse Braunau,
e Braunau é uma cidade pequena mas respeitável,
firmas sólidas, vizinhos honestos,
cheiro de massa de pão e de sabão cinzento.
Não se ouve o ladrar dos cães nem os passos do destino.
Um professor de história afrouxa o colarinho
e boceja sobre os cadernos.

            Tradução de Regina Przybycien

Wislawa Szymborska.  Poemas.  Companhia das Letras, 2011.

           
         Atordoado. Acho que a palavra define bem como fiquei ao travar contato, não faz nem um ano, com a poesia dessa polonesa, ganhadora do Nobel em 1996, morta no começo deste 2012,  aos 90 anos.  Me deparei  numa livraria com os poemas de Szymborska traduzidos por Regina Przybycien,  e desde então  não me canso de lê-los e de neles descobrir sempre algo que me atordoa.
Tinha tomado aqui a firme decisão de escolher apenas um poema como representativo do que eu gostaria que os leitores deste blog conhecessem ao travar contato com  Szymborska.  Não consegui.  Foi difícil deixar de publicar quatro de uma vez.  Acabei me fixando em apenas dois:   “A mulher de Lot” toma a si, com sucesso, a jubilosa tarefa de tirar de cima das mulheres o epíteto bíblico nada lisonjeiro da desobediente curiosidade feminina a ser punida pela crueldade divina. As razões por que ela teria olhado para trás não incluem a incontinente bisbilhotice gratuita, nem demonstram necessariamente que seu espírito ainda estaria ligado em pecado a Sodoma (as duas interpretações mais freqüentes, quero crer, do mito bíblico pelos cristãos), mas são desfiadas com uma naturalidade impressionante de hipóteses – todas – plausíveis e algumas terríveis: o verso 11, neste particular me lembra, por sua desolação, o terrível escrito do pórtico do Inferno em Dante.  Já “Primeira foto de Hitler” reúne os elementos magistrais de sua poesia, com um inequívoco, porque explícito, acréscimo de humor cruel da mais alta potência.
Creio que o atordoante nessa poesia  vem muito de sua dicção coloquial (lógico que confio aqui às cegas na competência da tradução – que já li ser de fato muito boa) e de portar um não-sei-quê do olhar de uma pessoa comum, que só não o fosse por se obrigar a exercitar um olhar insensato sobre o mundo.  Não sei se me faço entender.  Acho que não. Não importa.  Importa ler Wislawa Szymborska.