quinta-feira, 30 de julho de 2015

JORGE LUIS BORGES : AS RUAS


                                Jorge Luís Borges (1899-1986)

AS RUAS

 

As ruas de Buenos Aires
já são minhas entranhas.
Não as ávidas ruas,
incômodas de gente e bulício,
mas as ruas indolentes do bairro,
quase invisíveis de tão usuais,
enternecidas de penumbra e de ocaso
e aquelas mais ao longe
carentes de árvores piedosas
onde austeras casinhas apenas se aventuram,
abrumadas por imortais distâncias,
a perder-se na profunda visão
de céu e de lhanura.
São para o solitário uma promessa
porque milhares de almas singulares as povoam,
únicas perante Deus e no tempo
e sem dúvidas preciosas.
a Oeste, ao Norte, e ao Sul
desdobraram-se — e também são a pátria — as ruas;
tomara que nos versos que traço
estejam essas bandeiras.

 


LAS CALLES

 

Las calles de Buenos Aires
ya son mi entraña.
No las ávidas calles,
incómodas de turba y ajetreo,
sino las calles desganadas del barrio,
casi invisibles de habituales,
enternecidas de penumbra y de ocaso
y aquellas más afuera
ajenas de árboles piadosos
donde austeras casitas apenas se aventuran,
abrumadas por inmortales distancias,
a perderse en la honda visión
de cielo y llanura.
Son para el solitario una promesa
porque millares de almas singulares las pueblan,
únicas ante Dios y en el tiempo
y sin duda preciosas.
Hacia el Oeste, el Norte y el Sur
se han desplegado -y son también la patria- las calles;
ojalá en los versos que trazo
estén esas banderas.
 
 
 

Jorge Luis Borges. In: Primeira Poesia; tradução de Josely Vianna Baptista. SP: Companhia das Letras, 2007.



O jovem Borges, c. 1920, época da publicação do poema

segunda-feira, 27 de julho de 2015

DRUMMOND


                                  Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

 

ENTRE NOEL E OS ÍNDIOS


Noel Nutels (1910-1973)


Em Vila Rosali Noel Nutels repousa
do desamor alheio aos índios
e de seu próprio amor maior aos índios.
Como se os bastos bigodes perguntassem:
Valeu a pena?
Valeu a pena gritar em várias línguas
e conferências e entrevistas e países
que a civilização às vezes é assassina?
Valeu, valeu a pena
criar unidades sanitárias aéreas
para salvar os remanescentes
das vítimas de posseiros, madeireiros, traficantes
burocratas et reliqua,
que tiram a felicidade aos simples
e em troca lhes atiram de presente
o samburá de espelhos, canivetes,
tuberculose e sífilis?

Noel baixa de helicóptero
e vê a fome à beira d’água trêmula de peixes.
Homens esquecidos do arco-e-flecha
deixam-se consumir em nome
da integração que desintegra
a raiz do ser e do viver.

“Vocês têm obrigação de usar calça
camisa paletó sapato e lenço,
enquanto no Leblon nos despedimos
de toda convenção, e viva a natureza...”
Noel, tu o disseste:
A civilização que sacrifica
povos e culturas antiqüíssimas
é uma farsa amoral.

O Parque maravilha do Xingu
rasgado e oferecido
ao galope das máquinas,
não o quiseste assim e protestaste
como se fosse coisa tua, e era
pois onde um índio cisma
e acende fogo e dança
a  dança milenar  extra-Conservatório
e desenha seu momento de existir
longe da Bolsa, da favela e do napalm,
aí estavas tu, teu riso companheiro,
teus medicamentos ,
tua branca alegria de viver
a vida universal.
 
Valeu? Valeu a pena
teu cerne ucraniano
fundir-se em meiga argila brasileira
para melhor sentires
o primitivo apelo da terra
moldura natural de homens xavantes
e kreen-akarores
lar aberto de bororos
carajás e kaingangs
hoje tão infelizes
pela compulsão da felicidade programada.
Valeu, Noel, a pena
seguir a traça de Rondon
e de Nimuendaju,
mãos dadas com Orlando e Cláudio Villas-Boas
sob o olhar de Darci Ribeiro
e voar e baixar e assistir e prover
e alertar e verberar
para que fique ao menos no espaço
este signo de amor compreensivo e ardente
que foi a tua vida sertaneja,
a tua vida iluminada,
a tua generosa decepção.
 

Carlos Drummond de Andrade. As impurezas do branco. RJ: José Olympio, 1973.

 

 
Nutels com Claudio Villas-Boas no Xingu
 

                           
Carlos Drummond de Andrade. As impurezas do branco. RJ: José Olympio, 1973.

 

quarta-feira, 22 de julho de 2015

OLIVERIO GIRONDO

                                                                             Oliverio Girondo (1891-1967)



QUE OS RUÍDOS TE PERFUREM OS DENTES

Que os ruídos te perfurem os dentes,
como uma broca de dentista,
e a memória te encha de ferrugem,
de odores descompostos e de palavras rotas.
Que cresça em cada um dos teus poros,
uma pata de aranha;
que só possas alimentar-te de baralhos usados
e que o sonho te reduza, como uma plaina,
à espessura de teu retrato.
Que ao sair à rua,
até os faróis te botem pra correr;
que um fanatismo irresistível te obrigue a ajoelhar
em frente às latas de lixo
e que todos os habitantes da cidade
te confundam com um poste.
Que quando queiras dizer: “Meu amor”,
digas: “Peixe frito”;
que tuas mãos tentem estrangular-te a cada instante,
e em vez de jogar fora o cigarro,
sejas tu que te atires nas escarradeiras.
Que tua mulher te traia até com bujões.
que ao deitar-se junto a ti,
se metarmofoseie em sanguessuga,
e que depois de parir um corvo,
ilumine uma chave inglesa.
Que tua família se divirta em deformar teu esqueleto,
para que os espelhos, ao te olharem,
suicidem de repugnância;
que teu único entretenimento consista em ficar
na sala de espera dos dentistas,
disfarçado de crocodilo,
e que te apaixones, tão loucamente,
por uma caixa de ferro,
que não possas deixar, nem por um instante,
de lamber-lhe a fechadura.

                                           Olivério Girondo, tradução de Fred Girauta.
 
 
Ilustração de Talarico
 
 
 
Que los ruidos te perforen los dientes,
como una lima de dentista,
y la memoria se te llene de herrumbre,
de olores descompuestos y de palabras rotas.
Que te crezca, en cada uno de los poros,
una pata de araña;
que sólo puedas alimentarte de barajas usadas
y que el sueño te reduzca, como una aplanadora,
al espesor de tu retrato.
Que al salir a la calle,
hasta los faroles te corran a patadas;
que un fanatismo irresistible te obligue a posternarte
ante los tachos de basura
y que todos los habitantes de la ciudad
te confundan con un madero.
Que cuando quieras decir: “Mi amor”,
digas: “Pescado frito”;
que tus manos intenten estrangularte a cada rato,
y que en vez de tirar el cigarrillo,
seas tú el que te arrojes en las salivaderas.
Que tu mujer te engañe hasta con los buzones;
que al acostarse junto a ti,
se metamorfosee en sanguijuela,
y que después de parir un cuervo,
alumbre una llave inglesa.
Que tu familia se divierta en deformarte el esqueleto,
para que los espejos, al mirarte, s
e suiciden de repugnancia;
que tu único entretenimiento
consista en instalarte en la sala de espera
de los dentistas, disfrazado de cocodrilo,
y que te enamores, tan locamente,
de una caja de hierro,
que no puedas dejar, ni por un solo instante,
de lamerle la cerradura.
                                                   Oliverio Girondo. Obra. Editorial Losada. Buenos Aires. 1968

 

sexta-feira, 17 de julho de 2015

HEINE: MAIS DOIS


                (Heinrich Heine, 1797-1856)


MISERÊ


Gente rica a gente só agrada
Com lisonja rala e bem barata −
Mora nas alturas o dinheiro,
Mas adora adulador rasteiro.

Queima o teu incenso com ardor
Ao bezerro que reluz no andor;
Reza na poeira ou na sujeira,
Faz as tuas loas de alma inteira.

O preço do pão subiu e muito,
Mas abrir a boca ainda é gratuito −
Canta, pois, o cão de algum mecenas
Para te entupir de guloseimas!



LUMPENTHUM

Die reichen Leute, die gewinnt
Man nur durch platte Schmeichelei’n –
Das Geld ist platt, mein liebes Kind,
Und will auch platt geschmeichelt sein.

Das Weihrauchfaß, das schwinge keck
Vor jedem göttlich goldnen Kalb;
Bet’ an im Staub, bet’ an im Dreck,
Vor allem aber lob’ nicht halb.

Das Brod ist theuer dieses Jahr,

Jedoch die schönsten Worte hat
Man noch umsonst – Besinge gar
Mäzena’s Hund, und friß dich satt!


Kathe Kollwitz - "Desempregado"




LEGADO
A minha vida chega ao fim,
Escrevo pois meu testamento;
Cristão, eu lego aos inimigos
Dádivas de agradecimento.

Aos meus fiéis opositores
Eu deixo as pragas e as doenças,
A minha coleção de dores,
Moléstias e deficiências.

Recebam ainda aquela cólica,
Mordendo feito uma torquês,
Pedras no rim e as hemorróidas,
Que inflamam no final do mês.
 

As minhas cãibras e gastrite,
Hérnias de disco e convulsões
Darei de herança tudo aquilo
Que usufruí em diversões.
 
Adendo à última vontade:
Que Deus caído em esquecimento
Lembre de vós e vos apague
Toda a memória e sentimento.
VERMÄCHTNIS
 
Nun mein Leben geht zu End',
Mach ich auch mein Testament;
Christlich will ich drin bedenken
Meine Feinde mit Geschenken.
 
Diese würd'gen, tugendfesten
Widersacher sollen erben
All mein Siechtum und Verderben,
Meine sämtlichen Gebresten.

Ich vermach euch die Koliken,
Die den Bauch wie Zangen zwicken,
Harnbeschwerden, die perfiden
Preußischen Hämorrhoiden.

Meine Krämpfe sollt ihr haben,
Speichelfluß und Gliederzucken,
Knochendarre in dem Rucken,
Lauter schöne Gottesgaben.

Kodizill zu dem Vermächtnis:
In Vergessenheit versenken
Soll der Herr eu'r Angedenken,
Er vertilge eu'r Gedächtnis.
                            Traduções de André Vallias


Heinrich Heine.  Heine hein? Poeta dos contrários. Introdução e traduções de André Vallias. Perspectiva, 2011.

domingo, 12 de julho de 2015

DESDE A SUPERFÍCIE


Centro aonde não se vai
ao dentro que não se atinge
o corpo que não se trai
carne de esfinge

O gozo que o outro apaga
no jogo que outro esconda
espuma arisca na frágua
cerne de esponja
 
Leito nubente
corpo onde corpo
outra alma frange
 
Plangem miasmas
corpo onde corpo
jorra no peito.
 
 

 

Roberto Bozzetti.  Firma irreconhecível.  RJ: Oficina Raquel, 2009.

domingo, 5 de julho de 2015

GUILHERME ZARVOS




THEREZA

 

Visito minha mãe no Jardim Botânico
Faz dois anos que ela morreu
Parece que faz uma vida
Tenho tanta saudade
Das conversas
Do uisquinho, até do barulho nervoso do gelo
O excesso de uísque ajudou a matá-la
Pena que os excessos matem
Já conheci quem morreu de amor
De excesso e de falta

A árvore que eu e minha irmã escolhemos para depositar suas
Cinzas não tem nada de excepcional
É uma Tiliaceae da Malásia
Ela me parece velha
Foi um descuido espalhar as cinzas numa
Árvore que pode tombar logo
Mesmo antes da minha morte
Me parece um canto agradável
Ela deve estar contente no céu
Estou aqui na terra
 
Depositar cinzas de cremação no Jardim Botânico
É proibido.  Tirar fotos de casamento pode
Imagino se todos depositassem seus mortos no
Jardim Botânico assemelharia-se ao Ganges
Todo humano deveria passar uma tarde
Olhando uma cremação no Rio Ganges, na Índia
Depois de pôr fogo no morto, com a presença da
Família, com um pedaço de pau dilacera-se os
Ossos e o crânio que são muito resistentes ao
Fogo.  Tudo é calmo e sagrado.  As cinzas vão para o rio
 
Minha mãe não sofreu muito ao morrer
Eu e minha irmã ficamos contidos.  Nossa família é
Assim. Fatalista.  Já me falaram que é um resquício
Aristocrático.  Sempre nos orgulhamos da
República.  Em volta da Tiliaceae nasceram cogumelos
Cada vez que visito minha mãe tem novidade
Em volta da árvore.  Minha mãe está sempre
Presente e o chão sempre apresenta surpresas
Os cogumelos formam um ajuntamento como uma ninhada
Do meio salta uma flor! É da raça das Therezas. 
 

 

         In: Guilherme Zarvos por Renato Rezende.  Coleção Ciranda da Poesia. RJ: EdUERJ, 2010.


quarta-feira, 1 de julho de 2015

CZESLAW MILOSZ


À Senhora Professora em defesa da honra do gato e não só
 
     (Por ocasião do artigo “Contra a crueldade” de Maria Podraza-Kwiatkowska)

 
Meu amável ajudante, pequeno tigrinho,
Dorme docemente sobre a mesa perto do computador
E sequer imagina que a Senhora está ofendendo sua linhagem.

Os gatos brincam com o rato ou a toupeira meio morta,
Mas a Senhora está enganada, não é por crueldade.
Eles simplesmente vêem uma coisa que se mexe.

Pois é bom lembrar que só a consciência
Pode por um instante transferir-se para o Outro,
Com-partilhar a dor e o pânico do rato.

E assim como o gato, é toda a natureza,
Infelizmente indiferente ao mal e ao bem,
Receio que aqui se esconde um dilema.

A história natural tem seus museus.
Não levemos ali as crianças. Para que lhes mostrar os monstros,
A terra dos répteis e anfíbios por milhões de anos?
 
A natureza que devora, a natureza devorada,
Dia e noite aberto o matadouro de sangue.
E quem foi que o criou? Será um deus bonzinho?

Sim, sem dúvida, eles são inocentes:
As aranhas, os louva-a-deus, os tubarões, os pítons.
Só nós dizemos: crueldade.

O nosso saber e a nossa consciência
Solitários num pálido formigueiro de galáxias
Depositam suas esperanças num Deus humano.

Que não pode não sentir e não pensar,
Que nos é familiar, pelo calor e pelo movimento,
Porque a Ele, como declarou, somos semelhantes.
 
Mas sendo assim, ele se compadece
De cada rato pego, de cada pássaro ferido.
O universo é para Ele como a Crucificação.
 
Eis aí quanto resulta do ataque ao gato:
Um esgar teológico agostiniano,
Com o qual, a Senhora sabe, não é fácil andar na terra.

 

             Tradução de Henryk Siewierski e Marcelo Paiva de Souza

          Czeslaw Milosz. Não mais. Seleção, trad. e introd. de  Henryk Siewierski e Marcelo Paiva de Souza.  Brasília: Ed. UnB, 2003.