segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

SEIS POEMAS DE NYDIA BONETTI

1.
caminho arranhando meus pés sobre as pedras
da rua
gosto do som das rodas que se arrastam sobre
concreto
fatídicas
vias (de fato)
gosto de ouvir o som da vida – eterno arrastar
se sobre
tudo

2.
memória: - é apenas um nome
inscrito
na sola dos pés

vai se perdendo na caminhada


3.
o tempo insiste em arrastar 
móveis pesados
há sempre um piano
que não passa na porta
notas suspensas. cordas frágeis
que sempre ruem. antes 
que seus pés toquem a rua
em áspero ruído

 






4.
Talvez leve um buquê de cactos. E uma canção
de Leonard Cohen.
Quem sabe uma rosa
do povo
de Hiroshima
de Gertrud
de ninguém.
As flores do mal
as flores do bem. As flores
afinal, carregam — todas — a náusea de existir.


5.
quando a noite me olha, na sua hora mais escura
e o silêncio me encara
com seus olhos de pedra
e murro
                   paraliso
pela vidraça
chuva negra de ferpas e granizo
estilhaços de vidro
e vento
tentam furar meus olhos
                   aquários vazios
onde o último peixe
morreu de sede e medo
do gato imaginário – olhos de fogo e faca – fera
que jamais existiu



6.

fogo apagou!
gritava o pássaro da minha infância
pressagiando as cinzas que viriam







                A preciosa e precisa poesia de Nydia Bonetti (1958) tem marcado presença em diversas publicações online (onde foram colhidos estes seis poemas), entre as quais http://www.mallarmargens.com/ 
(Mallarmargens revista de  poesia e arte contemporânea), revista Nerval ( http://issuu.com/revistaflaubert/docs/nerval004), Cronópios  (http://www.cronopios.com.br). 

                Nydia publicou ainda minimus cantus (Coleção Instante Estante – Projeto de incentivo à leitura, RS, 2012), Sumi-ê (Ed. Patuá, 2013), tendo ainda integrado a antologia Desvio para o vermelho: 13 poetas brasileiros contemporâneos, organizadaem 2013  por Marceli Andresa Becker para o Centro Cultural SP.  É de Nydia ainda o excelente blog Longitudes (http://nydiabonetti.blogspot.com.br/).

                As ilustrações da postagem, respectivamente "Duas" e "O pássaro saciado do dia", são do artista português radicado em Bruxelas Rui Cavaleiro Azevedo, que fez em 2013 uma série de desenhos inspirados na poesia de Nydia. 




sábado, 12 de dezembro de 2015

TRÊS BÁRBAROS E LIVRES DE MARCELO DINIZ

Duas mãos - foto de Marcelo Diniz


         Marcelo Diniz postou, como volta e meia o faz, poemas novos em seu perfil no Facebook – não eram sonetos, modalidade em que sua mestria é absoluta e à qual tem se dedicado com quase exclusivismo. No corre-corre,  os dois que li – não sei se postou mais - eram poemas extraordinários, e acabei pedindo uns dias depois a ele   que mos enviasse, que eu gostaria de ter a primazia de posta-los aqui no Firma.  Gentilmente ele me enviou três, a que chamou de”seleta pro firma de rascunhos bárbaros e livres”.  Dou-os aqui,  com muita alegria e orgulho – e a admiração de sempre.  Talarico ilustrou.


1. 
é possível encontrar palavras sem procurá-las
as bárbaras cambalhotas de um guarda-chuva aberto pela calçada
e o que se tem à mão ao abri-lo sempre nos trai como um morcego estropiado
palavrões sempre são encontrados em semelhantes circunstâncias
a nódoa no brim o rasgo dos fundilhos
há palavras que parecem arrancadas de nós
o que falamos sem saber por mais que pensemos depois
fazendo brotar o sentido como uma vegetação atrasada
o que por mais que pensemos vaza sem efígie
um significado inusitado e ao mesmo tempo tão antigo
tropeçamos a todo momento no murmúrio
não que sejamos necessariamente atrapalhados com as palavras
nunca as estudamos tanto nunca enxergamos tanto através delas
existência mais consistente do que a mudez que nos rodeia
lixo espacial de antigos satélites
e que risca o céu quando algum pedaço cai
e esfria seu metal na terra e enferruja
as palavras estão sempre onde não as supomos
topada martelo no dedo língua entre dentes
capazes de dizer eu te amo na hora mais adversa
as palavras nos dizem
é preciso escutá-las e lê-las como uma camisa ao avesso
ver-lhes o oco articulado
ver-lhes a corda o mecanismo a chave e ainda
ouvi-las com risco e encanto
lê-las com lento maravilhamento e súbita revelação
a que repetida se torna real
e a que repetida perde o sentido
a que grita e propaga
a que sussurra hesita e naufraga

no travesseiro no elevador


2.
– vô

como fosse o adão das coisas
substantivos na boca e dêiticos no indicador
como se me ensinasse a língua
que sabia com orgulho e gosto
de um mundo vasto e repleto de motivos
como se toda palavra fosse um fruto
macio mordido pela primeira vez
como se sua fala colasse à coisa falada
e ria satisfeito e me traduzia
o que não me era nítido ainda
e não eram os passos temerosos de colono recém chegado
e não era a inocência imaginada dos colonizados
nem era a catequese do cosmos
não havia ainda a palavra astúcia
havia a interjeição com o fato de cada coisa cor
responder ao som que repetisse e eu repetia
como se repetindo provasse do mesmo fruto
como se a flor do pequeno jardim fosse
o sabor da vogal extraída
e as pétalas coubessem o imaculado esplendor
na cor de uma única sílaba
de fato o mundo começara ali
a satisfação de fazer sentido
nada mais tinha história naquele vocabulário abrupto
cuja sintaxe se desenhava entre prosódia e gesto
quando enfim me deu nome




Ilustração de Talarico

3.
a água que me lavou o corpo é um desperdício
desce pelo ralo com meus resquícios para sempre
vejo as pessoas passando e percebo muitas
não se acham belas e a beleza é um desperdício
a incidência de restar paralelo como um segredo
cultivando certa voz que lhe soprasse sempre
a verdade que mais se estima do que é inútil
o brilho de alumínio da embalagem descartada
que reflete o céu aleatório de seu destino
o que respiram as cerdas da vassoura enquanto
chiam no chão da barbearia no meio da tarde quente
o clarão de um fósforo riscado em cômodo escuro
a consistência da bolha de luz que arrasta pelos móveis
o rumor de sombra de sua pele oscilante
o desperdício sempre foi sua insistente atenção
à musa que visita os alvéolos efêmeros dos fungos
à cultura de poeira e seu ilegível inventário de ácaros
ao azinhavre do utensílio que aposentou seu dono
à alegria provável do que é desnecessário
porque deixou de sê-lo e também à graça de nunca ter sido
o desperdício de olhar a esquina e não exigir mais nada
abandonar o saco plástico e imaginar a quanto
será elevado antes da tempestade na rua vazia
a parede descascada é uma paisagem extraterrestre
o alívio indiferente à chuva de meteoros
que dizimou de vez a urgência da vida de outrora
o universo decerto fosse mais seco não se infiltrasse
esta espessura de lágrima e riso que o desperdício
acumula em cada nicho de sua minuciosa colmeia
a inaudível aspereza do vento se houver vento













terça-feira, 24 de novembro de 2015

DISCURSO DE PARANINFO

(Aos formandos do Curso de Letras, turma 2011-2 e "anexos", por ocasião da cerimônia no dia 20 de novembro de 2015)


Dirijo-me aos formandos, inicialmente para agradecer a escolha de meu nome e também para falar em nome da ligação afetiva com esta turma, da proximidade no convívio cotidiano da academia, e mesmo dos laços de efetiva amizade que estabelecemos alguns de nós. Até porque talvez só mesmo laços muito fortes de amizade justificariam a confiança demonstrada não apenas para uma cerimônia destas num feriadão, ainda mais tendo sido o convite formalizado em cima da hora, o que me levou a algumas observações e considerações vazadas numa linguagem bem pouco apropriada a ser reproduzida aqui nesta cerimônia – aliás, em qualquer cerimônia.
         Pois bem: é justo por causa desses laços  muito fortes que resolvo recusar o discurso de viés mais afetivo (que tem sido o mais comum nestas cerimônias) e procurar fazer algumas observações a serem levadas por vocês no arremate desta etapa da vida.  Não farei “um adeus de discurso” – como diz Oswald de Andrade pela boca de João Miramar - , tampouco um discurso de adeus.  Não forçarei a nota afetiva.  Em vez disso, buscarei encaminhar algumas reflexões.
         Comecemos por falar não do “feriadão” (perdendo – ou ganhando o dia, como ensinou Drummond), mas do feriado, deste feriado: o Dia Nacional da Consciência Negra, feriado nacional criado em janeiro de 2003, no atendimento democrático a uma iniciativa das demandas da população negra organizada, feriado de caráter eminentemente democrático por ser opcional,  e que hoje se estende – viva o google! – a 780 municípios brasileiros, que o celebram.
         Numa visão bastante ingênua ou meramente produtivista, existem aqueles que listam entre as causas do nosso “atraso” enquanto país o “excessivo número de feriados”, como se ao suprimi-los ou reduzi-los déssemos um importante passo como nação.  Não vou aqui lembrar da França, onde há mais feriados do que no Brasil, e que não é propriamente um país atrasado – aliás, nestes dias sombrios que correm, uma das razões, se não a principal, de a França ter sido, e ser ainda, alvo de ataques extremistas fundamentalistas é justamente seu caráter de nação pioneira na consagração das conquistas democráticas.
         Aproveito então o “gancho” do feriado para trazer algumas questões à reflexão de todos aqui.  Como vocês me ouviram dizer muitas vezes em sala de aula, vou “dar um passeio”, esperando não me perder antes de retomar o início ao final, numa fala mais “encorpada”.
         Dirijo-me prioritariamente à atenção da turma de formandos, ou seja, – aqui lançando mão de referências mais familiares a nós, “povo de Letras’, mas que serão, se cabíveis forem, de proveito para todos, para o “público externo’ – aqui representado por amigos e familiais presentes - , pois afinal é o trânsito entre o nosso saber específico -mas não exclusivista – e o corpo geral da sociedade, é esse trânsito que deve dar sentido à nossa formação, ainda mais numa universidade pública.
         Aproveito, pois, o mote do Dia da Consciência Negra, para dizer que Antonio Candido lembra Joaquim Nabuco, em O abolicionismo, que diz que uma das dimensões da nossa catástrofe social histórica – e que, é preciso reconhecer, agora se busca, com muita luta e muitas contradições, reverter – é a persistência do drama humano trazido pela escravidão, que comprometeu para sempre o regime de trabalho e de produção, fazendo com que gerações e gerações se acostumassem as ver no trabalhador um objeto, e não um ser humano.  Decorreu isso de que os antigos escravos, mesmo com a abolição de lei em 1888, não foram incorporados à estrutura social.  Cito Candido: “O trabalho livre se estabeleceu lentamente e sofreu uma influência benéfica da imigração estrangeira.  Italianos, sírio-libaneses, alemães, espanhóis, os imigrantes fizeram o Brasil contemporâneo.  Mas aí deu-se um fato que é bastante grave.  A oligarquia brasileira é tão poderosa que coopta todas as sucessivas camadas dominantes.  O imigrante aqui chega e, quando fica rico, passa a tratar o empregado exatamente como foi tratado, como escravo.  Quer dizer: a classe dominante brasileira não é formada pelas mesmas famílias, mas as famílias que se vão sucedendo adotam o mesmo comportamento.”
         Como se vê, entramos numa espécie de reprodução por inércia, quase um moto-contínuo para a perpetuação de nossas iniquidades e indignidades como sociedade.  Darcy Ribeiro repetia serem as elites dominantes brasileiras talvez as mais perversas do mundo e, numa frase que muito circula hoje pelas redes sociais, dizia ainda que o fracasso da educação no Brasil, do ponto de vista das elites não era um fracasso, era um projeto.  Projeto de educação definido também sinteticamente por Paulo Freire em outra frase: “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor.”
         Cito Darcy e Freire porque foram dois homens que juntos estiveram e juntos “fracassaram” em seus projetos para a educação, calados, cassados e perseguidos que foram com o golpe de 1964, ambos.  O governo autoritário e ilegítimo – porque às custas de um golpe – que então se instalou, não custa lembrar ou apenas informar aos mais desavisados, começou golpeando duramente a educação, perseguindo, prendendo, assassinando, fazendo desaparecer estudantes e professores – e não apenas – em muitos crimes de terrorismo de estado, que continuam aí sem esclarecimento e sem punição, para nossa vergonha como nação. Mas não apenas violência contra pessoas: fazendo desaparecer dos currículos escolares qualquer coisa ligada ao ensino de filosofia, que lida, como sabemos, com o exercício constante do pensamento crítico.
         E se falo nesse período medonho para o campo do saber é porque hoje em alguma medida ele parece querer reviver nos sonhos de nossa desmemória endêmica  e manipulada.  Mas sou otimista e considero que, apesar das dificuldades e dos reveses, o pior não acontecerá.  Seguiremos na seara democrática que, apesar de tudo, sinaliza a existência de seus primeiros frutos.  Falemos um pouco destes.
         Li que ontem houve protestos, pelo pessoal que organizou festejos da Semana de Consciência Negra, em frente ao antigo prédio do DOPS na Rua da Relação, Centro do Rio.  O local foi escolhido com a intenção de se marcar um lugar de memória trevosa, de modo a afrontá-lo enquanto tal.  Bem vinda afronta.  Tenho inclusive razões pessoais para festejar a boa ideia, pois frequentei o prédio semanalmente há quase quarenta anos, quando, ao ser aprovado em concurso público, precisei obter um “atestado ideológico” para ingresso na carreira, o que foi complicado, pois no ano anterior eu havia sido presidente do diretório estudantil do meu curso de Letras. E para conseguir nomeação e tomar posse num cargo público, era necessário o “nada consta” de autoridades de resto ilegitimamente constituídas.  Digo isso para lembrar que o país já foi muito pior.
         E se celebro essa afronta ao espaço simbólico da repressão, não o faço em meu nome, um figurante obscuro de importância relegada a uma subalterna quinta grandeza naquele quadro, mas celebro para celebrar o que deve ser celebrado: as manifestações da cultura negra, com cânticos, dança de capoeira, enfim... literalmente se sambou na cara da sociedade repressiva – uma sociedade que, como lembrou Chico Buarque numa entrevista, “pensa que é branca”.  Esse aspecto glorioso da celebração é simbólico daquilo que completa o que configura a nossa seara democrática, que as conquistas das transformações sociais dos últimos anos vêm lutando para sedimentar e que gosto de sintetizar assim: os negros não voltarão para as senzalas, as mulheres não voltarão para as cozinhas, o povo LGBT se organizou, suas vozes se fazem ouvir e, felizmente, não mais de dentro dos armários, para onde não voltarão.  Há muito a ser conquistado ainda, e cito aqui, como exemplo, a dura luta a ser travada em favor da dignidade dos povos indígenas.  Mas, seja como for, viva o Dia da Consciência Negra, viva Zumbi!
         Há quarenta anos esta situação de celebração era impensável:  Jorge Ben Jor cantava algo que parecia ser tão distante: “Eu só quero ver como vai ser quando Zumbi chegar”.  Os sinais estão aí de uma chegada de Zumbi, nesta canção tantas vezes gravada e cantada em festejos diversos.  O mito se confunde por vezes com a história e, se esta pode complementar e nos levar á depressão pelo conhecimento objetivo do estágio repressivo que ela venha a flagrar – afinal, lembram Caetano e Gil, “todos sabem como se tratam os pretos” – o mito pode alimentar, se não a redenção, a perseverança na luta por dias mais justos.
         Ora, afim ao mythos, como ao epos, por vezes englobando a ambos, temos a literatura. Quando vocês me convidam, e aos colegas de literatura, a desempenhar um papel tão importante neste momento, posso, podemos interpretar isso como uma afirmação da literatura, de sua prática, de seu ensino, de sua aprendizagem, de seu sentido mais arraigado.  Este não é simples, nem cabe me estender aqui sobre ele – de resto, penso que já o fizemos muitas vezes juntos - , mas a gradativa supressão que o ensino de literatura vem sofrendo no ensino médio – sem falar no seu abastardamento ou pura e simples ausência nas etapas anteriores de formação – é para nos deixar para lá de alertas.  Não podemos abrir a guarda, não podemos abrir mão do discurso literário, de seu papel de mediador, de aferidor, de problematizador da malha de discursos, ainda mais numa sociedade tão penetrada por autoritarismo, proveniente sobretudo da ignorância e da baixa e/ou péssima  escolaridade.
         Se é inegável que assistimos nos últimos anos – e os indicadores sociais estão aí mesmo, entre outras coisas para nos livrarem de uma mídia comprometidamente venal – a uma significativa inclusão social e diminuição da pobreza e da miséria, é inegável também que muitos analistas têm apontado com razão que esse ganho se fez infelizmente mais pela inclusão via consumo do que via educação.  E a batalha pela educação é aquela que nos chama agora a combater o bom combate nas molduras da sociedade democrática, de instituições que apesar de tudo têm se mostrado sólidas.
         Encaminho agora a conclusão, procurando amarrar os fios soltos na ponta do início.  Graciliano Ramos – este magnífico escritor, por sinal nascido no mesmo estado da federação onde ficava o Quilombo de Palmares – em conversa com o folclorista Câmara Cascudo saiu-se com esta, segundo conta seu biógrafo Dênis de Moraes;
         “Na casa dessa burguesia rica você pode encontrar dez penicos de porcelana, mas não encontra dez livros.  Não é que eu deseje tê-la [a essa burguesia, bem entendido] como leitora de meus livros, mas isto mostra a indiferença pela divulgação literária e a falta de estímulo à produção intelectual.”
         Às vezes ouço falar que a literatura “é uma atividade de elite”, que seria “um luxo”, que os escritores se entregariam “a práticas elitistas”, coisas que tais.  Vou repetir aqui o que disse no correr de uma aula outro dia mesmo:   Não vamos ofender deste modo a literatura ou a atividade literária.  Numa sociedade cujas elites são perversas, boçais, obscurantistas, analfabetas, violentas e assassinas, dizer que assim é a literatura é ofendê-la, é ofender a nós todos.  Não compactuemos com isso.  Nesse sentido, vos conclamo.
         Obrigado.

domingo, 1 de novembro de 2015

HILDA HILST (1930-2004)


Algumas das

 
Pequenas sugestões e receitas
de Espanto Antitédio para
senhores e donas de casa.

 

I.

Pegue uma cenoura.  Dê uns tapinhas para que ela fique mais rosadinha(porque essa que você pegou era uma pálida cenoura).  Aí diga: cenoura, tu me lembras uma certa tarde, uma certa loira, quando meu nabo, num fiasco, emurcheceu de vez.  Se a tua mulher te encontrar na cozinha com a cenoura na mão, dizendo essas coisas, diga apenas: que bonita é a cenoura, né bem?

 

IV.

Pergunte ao seu filhinho se ele quer laranja descascada de tampinha ou de gomo.  Se ele disser que quer laranja descascada de tampinha, diga que um menino bem-educado sempre escolhe a de gomo.  Se ele começar a chorar, chupe você a laranja.  (De tampinha,naturalmente.)

 

VI.

Coloque duas alcachofras cruas dentro de uma vasilha com água fria. Fique ali esperando as folhas de alcachofra se soltarem e m edite sobre a tua condição de ser humano mortal e descartável.  Quando enfim todas as folhas estiverem sobrenadando, tome um banho, porque, convenhamos, há quantos dias você está aí.

 

VIII.

Enfeite a mesa com flores.  Compre um peru.  Feche as crianças no banheiro.  Antes de começar a ceia, convide seu marido para dançar ao redor da mesa (não mexa com o peru).  Inopinadamente pergunte se ele gosta de trufas.  Se ele disser que sim, gargalhe algum tempo atrás da porta e diga que “trufas não tem não, amorzinho”.

 

X.

Corte um saco em pequenos pedaços. Um de estopa, evidente.  Embrulhe vários ovos um por um em cada pequeno pedaço de estopa.  Pinte caras descarnadas, dentes pontudos e beiços vermelhos na cara dos ovos (sempre esses de galinha ou de pato, é desses que eu estou falando).  Quando alguma das tuas crianças começar a pedir aquelas coisas caríssimas e imbecis que são sugeridas na televisão, cubra-se de negro à noite, use tintas fosforescentes para ressaltar a cara dos ovos (aqueles) e quebre-os um a um nas pequeninas cabeças dizendo com voz rouca: parem de pedir coisas impossíveis à sua mãe, seus canalhas.

 

XI.

Compre manteiga.  Passe-a nos dedos. (Esqueça-se de Marlon Brando.) Chupe-os.  E diga em tom de oração: que vida solitária, meu Deus.  (Contenha-se)

 

XII.

Compre uma língua de tucano (é uma umbelífera), uma língua de vaca (Chaptalia nutans é seu nome científico, não vá até Santa Catarina por causa disso), um lírio branco (Lilium candidum), dois caquis (não é cáqui, não vá comprar o brim), ferva durante cinco minutos.  Depois jogue fora.  É uma simpatia para você não dormir.

 

XIII.

Se você quer se matar porque o país está podre, e você quase, pegue uma pedrinha de cânfora e uma lata de caviar e coloque ao lado do seu revólver.  Em seguida, coloque a pedrinha de cânfora debaixo da língua e olhe fixamente para a lata de caviar.  Só então engatilhe o revólver. (É bom partir como olorosas e elegantes lembranças.  Atenção: não dê um tiro na boca porque a pedrinha de cânfora se estilhaça.)

 

                                     (dos Contos d’escárnio: textos grotescos, 1990)
 
 
Hilda Hilst. Pornô Chic. São Paulo: Globo, 2014.
 

 

domingo, 25 de outubro de 2015

Um poema novo


AO PAI

 

Todo dia
ao acordar
cedo a vez
a meu pai
no espelho
cedo
cada vez
mais e mais
dia a dia
por instantes
se aproxima
e se vai
de vez vai
comigo vai

no espelho
do banheiro
fica de seu
um nada
tudo que eu
perca que eu
esqueça
ceda
largue deixe
todo ele
vamos nós
no travo
no hálito
no pigarro

vamos para
todo o mundo

 


segunda-feira, 12 de outubro de 2015

ALLEN, GINSBERG (1926-1997), “HOWL”; 60 anos da primeira leitura pública do poema

O jovem Ginsberg

         Foi em outubro de 1955, há 60 anos portanto, que “Howl”, o poema de Allen Ginsberg foi lido em público pela primeira vez, antes de sair em livro no ano seguinte, a cargo do poeta e editor Lawrence Ferlinghetti.   A leitura se deu em leitura pública numa galeria de arte  em San Francisco, organizada pelo próprio Ginsberg para recepcionar Jack Kerouac.  “Howl” é considerado um poema emblemático da Geração Beat, da poesia beat, repercutindo intensamente em todos os desdobramentos daqueles jovens “hipsters”, como então se chamavam,  e deflagrando todo o processo da culminaria mais ou menos dez anos depois nas escaramuças da contracultura, no movimento pelos direitos civis, na cultura hippie, no flower power, na resistência à intervenção americana no Vietnam.  O poema é dedicado a Carl Solomon, amigo de Ginsberg, escritor anarquista, dito habitualmente  neo-dadá, que se encontrava internado no manicômio de Rockland quando o poema foi escrito.

         A única tradução para o português, pelo menos do meu conhecimento, pelo menos no Brasil, é esta que apresento, de Cláudio Willer, de 1984.  Transcrevo a palavras do próprio Willer no Prefácio à edição de Uivo, Kaddish e outros poemas, tradução, organização e apresentação a seu encargo.  É Willer quem nos diz:

 

         “Sua publicação foi recebida com um processo de obscenidade, acarretando até mesmo a detenção de Ferlinghetti e a interdição do livro até o ano seguinte, quando foi liberado por decisão da Suprema Corte.  Uma vez comercializado, Uivo e outros poemas  foi um sucesso editorial, logo seguido pelo lançamento de outros textos dos Beat que estavam na gaveta ou na fila de espera das editoras: On the Road, de Kerouac e a poesia de Corso, Ferlinghetti, etc.  A criação de uma mística Beat teve a colaboração de matérias na grande imprensa, do Time Magazine e Life, divulgando-a mas também focalizando-a depreciativamente e tentando diluí-la. (...)

         A reação da crítica a Uivo foi, de um modo geral, muito desfavorável.  (...) Um artigo famoso de Norman Podhoretz (...) sintetiza e reproduz a maior parte das críticas: anti-intelectualismo ingênuo, desprezo por valores culturais, alegria de viver confundida com falta de engajamento e de consciência política (a postura de determina da esquerda para a qual o engajamento  implica o ressentimento e a culpa), etc. Há coisas piores ainda, como as críticas tentando demonstrar que a Beat era especificamente uma manifestação de viciados em drogas; ou seja, uma visão totalmente policialesca, esquecendo o fato de, naquele momento, correrem soltos os mais diversos tipos de drogas, sem que isso provocasse o aparecimento de uma miríade de poemas como Uivo ou de narrativas em prosa como On the Road.

         (...)

         Como muito bem lembra Ginsberg, essa postura da crítica teve apenas um efeito: atrasar o fim do período macarthista e a circulação de obras de cuja tradição eles faziam parte, como a de  [Walt] Whitman, [William Carlos] Williams e [Hart] Crane.”

         Este blog nunca ostentou uma postagem tão extensa.  De fato o  poema é, para os padrões poéticos atuais (pós-Poe?), bastante grande.   Mas a importância de texto tão emblemático para a poesia que se estende da segunda metade do século XX aos nossos dias,  e a qualidade da tradução e do trabalho dedicado a toda a divulgação dos Beat no Brasil empreendido por Cláudio Willer o justificam.  E vou mesmo quebrar o protocolo do blog, deixando de postar o texto original em inglês.  Mas ao final da tradução o caro leitor terá a grata supresa de se deparar com um link para um vídeo de animação assinado por Eric Drooker, legendado (em inglês), para Uivo.  Drooker, que conviveu com Ginsberg nos anos 80/90, exercita sua autonomia de artista gráfico, quadrinhista, desenhista de animação,  e não segue o poema na íntegra.  Mas sua obra é uma eloqüente leitura intersemióticfa do poema.

         E dou aqui ainda o link para o excelente blog de Cláudio Willer. https://claudiowiller.wordpress.com/


Ginsberg no Royal Albert Hall

UIVO


         Para Carl Solomon

I
 
 
Eu vi os expoentes da minha geração, destruídos pela
loucura, morrendo de fome, histéricos, nus,
arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada
em busca de uma dose violenta de qualquer coisa,
hipsters com cabeça de anjo ansiando pelo antigo
contato celestial com o dínamo estrelado da
maquinaria da noite,
que pobres esfarrapados e olheiras fundas, viajaram
fumando sentados na sobrenatural escuridão dos
miseráveis apartamentos sem água quente, flutuando
sobre os tetos das cidades contemplando o jazz,
que desnudaram seus cérebros ao céu sob o Elevado
e viram anjos maometanos cambaleando iluminados
nos telhados das casas de cômodos,
que passaram por universidades com olhos frios e
radiantes alucinando Arkansas e tragédias à luz
de Blake entre os estudiosos da guerra,
que foram expulsos das universidades por serem loucos
& publicarem odes obscenas nas janelas do crânio,
que se refugiaram em quartos de paredes pintura
descascada em roupa de baixo queimando seu
dinheiro em cestos de papel escutando o Terror
através da parede,
que foram detidos em suas barbas púbicas voltando
por Laredo com um cinturão de marihuana para
Nova Iorque,
que comeram fogo em hotéis mal pintados ou
beberam terebentina em Paradise Alley, morreram ou
flagelaram seus torsos noite após noite com
sonhos, com drogas, com pesadelos na vigília,
alcool e caralhos em intermináveis orgias,
incomparáveis ruas cegas sem saída de nuvem trêmula,
e clarão na mente pulando nos postes dos pólos de
Canadá & Paterson, iluminando completamente o
Mundo imóvel do Tempo intermediário,
solidez de Peite dos corredores, aurora de fundo de
quintal das verdes árvores do cemitério, porre de vinho
nos telhados, fachadas de lojas de subúrbio
na luz cintilante de neon do tráfego na
corrida de cabeça feita do pazer, vibrações de
sol e lua e árvore no tronco de crepúsculo de
inverno de Brooklyn, declamações entre latas
de lixo e a suave soberana luz da mente,
que se acorrentaram aos vagões do metrô para o
infindável percurso do Battery ao sagrado Bronx
de benzedrina até que o barulho das rodas e
crianças os trouxesse de volta, trêmulos, a boca
arrebentada o despovoado deserto do cérebro
esvaziado de qualquer brilho na lúgubre luz do
Zoológico,
que afundaram a noite toda na luz submarina
de Bickford´s, voltaram à tona e passaram a tarde
de cerveja choca no desolado Fuggazi´s escutando
o matraquear da catástrofe na vitrola
automática de hidrogênio,
que falaram setenta e duas horas sem parar do
parque ao apê ao bar ao Hospital Bellevue ao
Museu à Ponte do Brooklyn,
Batalhão perdido de debatedores platônicos saltando
dos gradis das escadas de emergência dos parapeitos
das janelas do Empire State da Lua,
tagarelando, berrando, vomitando, sussurrando fatos
e lembranças e anedotas e viagens visuais e choques
nos hospitais e prisões e guerras,
intelectos inteiros regurgitados em recordação total
com os olhos brilhando por sete dias e noites,
carne para a sinagoga jogada à rua,
que desapareceram no Zen de Nova Jersey de
lugar algum deixando um rastro de postais ambíguos
do Centro Cívico de Atlantic City,
sofrendo suores orientais, pulverizações tangerianas
de ossos e enxaquecas da China por causa da
falta da droga no quarto pobremente mobiliado de Newark,
que deram voltas e voltas à meia noite no pátio da
ferrovia perguntando-se aonde ir e foram, sem
deixar corações partidos,
que acenderam cigarros em vagões de carga, vagões
de carga, vagões de carga, que rumavam ruidosamente
pela neve até solitárias fazendas dentro da noite do avô,
que estudaram Plotino, Poe, São João da Cruz, telepatia
e bop-cabala pois o Cosmos instintivamente
vibrava a seus pés em Kansas,
que passaram solitários pelas ruas de Idaho procurando
anjos índios e visionários que eram anjos índios e visionários
que só acharam que estavam loucos quando Baltimore
apareceu em estase sobrenatural,
que pularam em limusines com o chinês de Oklahoma
no impulso da chuva de inverno na luz das ruas
da cidade pequena à meia-noite,
que vaguearam famintos e sós por Huston procurando
jazz ou sexo ou rango e seguiram o espanhol
brilhante para conversar sobre a América e a Eternidade,
inútil tarefa, e assim embarcaram
num navio para a África,
que desapareceram nos vulcões do México
nada deixando além da sombra das suas calças
rancheiras e a lava e a cinza da poesia espalhadas
pela lareira Chicago,
que reapareceram na Costa Oeste investigando o FBI
de barba e bermudas com grandes olhos pacifistas
e sensuais nas suas peles morenas, distribuindo
folhetos ininteligíveis,
que apagaram cigarros acesos nos seus braços
protestando contra o nevoeiro narcótico de
tabaco do Capitalismo,
que distribuiram panfletos supercomunistas em Union
Square, chorando e despindo-se enquanto as
Sinrenes de Los Alamos os afugentavam gemendo
mais alto que eles e gemiam pela Wall Street e
também gemia a balsa de Staten Island
que caíram em prantos em brancos ginásios desportivos,
nus e trêmulos diante da maquinaria de outros esqueletos,
que morderam policiais no pescoço e berraram de
prazer nos carros de presos por não terem cometido
outro crime a não ser sua transação pederástica e tóxica,
que uivaram de joelhos no metrô e foram arrancados do
telhado sacudindo genitais e manuscritos,
que se deixaram foder no rabo por motociclistas
santificados e berraram de prazer,
que enrabaram e foram enrabados por esses serafins
humanos, os marinheiros, carícias de amor
atlântico e caribeano,
que transaram pela manhã e ao cair da tarde em
roseirais, na grama de jardins públicos e cemitérios,
espalhando livremente seu sêmen para
quem quisesse vir,
que soluçaram interminavelmente tentando gargalhar
mas acabaram choramingando atrás de um tabique
de banho turco onde o anjo loiro e nu veio
trespassá-los com sua espada,
que perderam seus garotos amados para as três
megeras do destino, a megera caolha do dólar heterossexual, megera caolha
que pisca de dentro do ventre e a megera caolha que só sabe
sentar sobre sua bunda retalhando os dourados
fios intelectuais do tear do artesão,
que copularam em êxtase insaciável com um garrafa
de cerveja, uma namorada, um maço de cigarros, uma
vela, e caíram na cama e continuaram
pelo assoalho e pelo corredor e terminaram
desmaiando contra a parede com uma visão da
boceta final e acabaram sufocando o derradeiro lampejo da
consciência,
que adoçaram as trepadas de um milhão de garotas
trêmulas ao anoitecer, acordaram de olhos vermelhos
no dia seguinte mesmo assim prontos
para adoçar trepadas na aurora, bundas luminosas
nos celeiros e nus no lago,
que foram transar em Colorado num miríade de
carros roubados à noite, N.C., herói secreto destes
poemas, garanhão e Adônis de Denver – prazer
ao lembrar suas incontáveis trepadas com garotas
em terrenos baldios & pátios dos fundos de
restaurantes de beira de estrada, raquíticas fileiras
de poltronas de cinema, picos de montanha
cavernas com esquálidas garçonetes no
familiar levantar de saias solitário à beira da
estrada & especialmente secretos solipsismos de
mictórios de postos de gasolina & becos da cidade
natal também,
que se apagaram em longos filmes sórdidos, foram
transportados em sonho, acordaram num
Manhattan súbito e conseguiram voltar com uma
Impiedosa ressaca de adegas de Tokay e horror
dos sonhos de ferro da Terceira Avenida &
cambalearam até as agências de desemprego,
que caminharam a noite toda com os sapatos cheios
          de sangue pelo cais coberto por montões de
neve, esperando que uma porta se abrisse no
East River dando para um quarto cheio de vapor e ópio,
que criaram grandes dramas suicidas nos penhascos
de apartamentos do Huston à luz azul de holofote
antiaéreo da luta & suas cabeças receberão
coroas de louro no esquecimento,
que comeram o ensopado de cordeiro da imaginação
ou digeriram o caranguejo do fundo lodoso dos
rios de Bovery,
que choraram diante do romance das ruas com seus
carrinhos de mão cheios de cebola e péssima música,
que ficaram sentados em caixotes respirando a
escuridão sob a ponte e ergueram-se para construir
clavicórdios em seus sótãos,
que tossiram num sexto andar do Harlem coroando de
chamas sob um céu tuberculoso rodeados pelos
caixotes de laranja da teologia,
que rabiscaram a noite toda deitando e rolando sobre
invocações sublimes que ao amanhecer amarelado
revelaram-se versos de tagarelice sem sentido,
que cozinharam animais apodrecidos, pulmão coração
pé rabo borsht & tortilhas sonhando com
o puro reino vegetal,
que se atiraram sob caminhões de carne
em busca de um ovo,
que jogaram seus relógios do telhado fazendo seu
lance de aposta pela Eternidade fora do Tempo
& despertadores caíram em suas cabeças por
todos os dias da década seguinte,
que cortaram seus pulsos sem resultado três vezes
seguidas, desistiram e foram obrigados a abrir
lojas de antiguidades onde acharam que estavam
ficando velhos e choraram,
que foram queimados vivos em seus inocentes
ternos de flanela em Madison Avenue no meio das
rajadas de versos de chumbo & o estrondo contido
dos batalhões de ferro da moda & os guinchos
de nitroglicerina das bichas da propaganda &
o gás mostarda de sinistros editores inteligentes
ou foram atropelados pelos taxis bêbados
da Realidade Absoluta,
que se jogaram da ponte de Brooklyn, isso realmente
aconteceu, e partiram esquecidos e desconhecidos
para dentro da espectral confusão das ruelas
de sopa & carros de bombeiros de Chinatown,
nem uma cerveja de graça,
que cantaram desesperados nas janelas, jogaram-se
da janela do metrô saltaram no imundo rio
Paissac, pularam nos braços dos negros, choraram
pela rua afora, dançaram sobre garrafas
quebradas de vinho descalços arrebentando
nostálgicos discos de jazz europeu dos anos 30
na Alemanha, terminaram o whisky e vomitaram
gemendo no toalete sangrento, lamentações nos
ouvidos e o sopro de colossais apitos a vapor,
que mandaram brasa pelas rodovias do passado
viajando pela solidão da vigília da cadeia de
Gólgota de carro envenenado de cada um ou então
a encarnação do Jazz de Birmingham,
que guiaram atravessando o país durante setenta e duas
horas para saber se eu tinha tido uma visão ao se ele tinha
tido uma visão para descobrir a Eternidade,
que viajaram para Denver, que morreram em Denver,
que retornaram a Denver & esperaram em vão,
que espreitaram Denver & ficaram parados pensando
& solitários em Denver e finalmente partiram
para descobrir o Tempo & agora Denver está
saudosa de seus heróis,
que caíram de joelhos em catedrais sem esperança
rezando por sua salvação e luz e peito até que a
alma iluminasse seu cabelo por um segundo,
que se arrebentassem nas suas mentes na prisão
aguardando impossíveis criminosos de cabeça
dourada e o encanto da realidade em seus corações
que entoavam suaves blues de Alcatraz,
que se recolheram ao México para cultivar um
vício ou às Montanhas Rochosas para o suave
Buda ou Tânger para os garotos do Pacífico Sul
para a locomotiva negra ou Havard para Narciso
para o cemitério de Woodlaw para a coroa
de flores para o túmulo,
que exigiram exames de sanidade mental acusando
          o rádio de hipnotismo & foram deixados com sua
loucura & e mãos & um júri suspeito,
que jogaram salada de batata em conferencistas da
Universidade de Nova Iorque sobre Dadaísmo
e em seguida se apresentaram nos degraus de
granito do manicômio com cabeças raspadas e
fala de arlequim sobre suicídio, exigindo
lobotomia imediata,
e que em lugar disso receberam o vazio concreto da
insulina metrazol choque elétrico hidroterapia
psicoterapia terapia ocupacional pingue-pongue
& amnésia,
que num protesto sem humor viraram apenas uma
mesa simbólica de pingue-pongue mergulhando
logo a seguir na catatonia,
voltando anos depois, realmente calvos exceto por
uma peruca de sangue e lágrimas e dedos
para a visível condenação de louco nas celas da
cidades-manicômio do Leste,
Pilgrim State, Rockland, Greystone, seus corredores
fétidos, brigando com os ecos da alma, agitando-se
e rolando e balançando no banco de solidão à
meia-noite dos domínios de mausoléu
druídico do amor, o sonho da vida um
pesadelo , corpos transformados em pedras
tão pesadas quanto a lua,
com a mãe finalmente ***** e o último livro
          fantástico atirado pela janela do cortiço e a última
porta fechada às 4 da madrugada e o último
telefone arremessado contra a parede em
resposta e o último quarto mobiliado esvaziado até
a última peça de mobília mental, uma rosa de papel
amarelo retorcida num cabide de arame do armário
e até mesmo isso imaginário, nada mais
que um bocadinho esperançoso de alucinação -
ah, Carl, enquanto você não estiver a salvo eu não
estarei a salvo e agora você está inteiramente
mergulhado no caldo animal total do tempo –
e que por isso correram pelas ruas geladas obcecadas
por um súbito clarão da alquimia do uso da elipse
do catálogo do metro inviável & do plano vibratório,
que sonharam e abriram brechas encarnadas no
Tempo & Espaço através de imagens justapostas
e capturaram o arcanjo da alma entre 2 imagens
visuais e reuniram os verbos elementares e
juntaram o substantivo e o choque da consciência
sSaltando numa sensação de Pater Omnipotens
Aeterne Deus,
para recriar a sintaxe e a medida da pobre prosa
humana e ficaram parados à sua frente, mudos e
inteligentes e trêmulos de vergonha, rejeitados
todavia expondo a alma para conformar-se ao
ritmo do pensamento em sua cabeça nua e infinita,
o vagabundo louco e Beat angelical no Tempo,
desconhecido mas mesmo assim deixando aqui
o que houver para ser dito no tempo após a morte,
e se reergueram reencarnados na roupagem
fantasmagórica do jazz no espectro de trompa
dourada da banda musical e fizeram soar o
sofrimento da mente nua da América pelo
amor num grito de saxofone de eli eli lama lama
sabactani que fez com que as cidades tremessem
até seu último rádio,
com o coração absoluto do poema da vida arrancado
de seus corpos bom para comer por mais mil anos
 
 
 
 
 
 
II

 
 
Que esfinge de cimento e alumínio arrombou seus
crânios e devorou seus cérebros e imaginação?
Moloch! Solidão! Sujeira! Fealdade! Latas de
Lixo o dólares intangíveis! Crianças berrando
sob as escadarias! Garotos soluçando nos
exércitos! Velhos chorando nos parques!
Moloch! Moloch! Pesadelo de Moloch! Moloch o
mal-amado! Moloch mental! Moloch o pesado
juiz dos homens!
Moloch a incompreensível prisão! Moloch o
presidio desalmado de tíbias cruzadas e o Congresso
dos sofrimentos! Moloch cujos prédios são
julgamento! Moloch a vasta pedra da guerra!
Moloch os governos atônitos!  
Moloch cuja mente é pura maquinaria! Moloch cujo
sangue é dinheiro corrente! Moloch cujos
dedos são dez exércitos! Moloch cujo peito é
um dínamo canibal! Moloch cujo ouvido é
um túmulo fumegante!
Moloch cujos olhos são mil janelas cegas! Moloch
cujos arranha-céus jazem ao longo de ruas como
Infinitos Jeovás! Moloch cujas fábricas sonham
e grasnam na neblina! Moloch cujas colunas de fumaça
e antenas coroam as cidades!
Moloch cujo amor é interminável óleo e pedra!
Moloch cuja alma é eletricidade e bancos!
Moloch cuja pobreza é o espectro do gênio!
Moloch cujo destino é uma nuvem de hidrogênio
sem sexo! Moloch cujo nome é a Mente!
Moloch em que permaneço solitário! Moloch em
que sonho com anjos! Louco em Moloch!
chupador de caralhos em Moloch! Mal-amado
e sem homens em Moloch!
Moloch que penetrou cedo na minha alma! Moloch
em quem sou uma consciência sem corpo!
Moloch que me afugentou do meu êxtase natural!
Moloch a quem abandono! Despertar em Moloch!
Luz escorrendo do céu!
Moloch! Moloch! Apartamentos de robôs! Subúrbios
invisíveis! Tesouros de esqueletos! Capitais cegas!
indústrias demoníacas! Nações espectrais! Invencíveis hospícios! Caralhos de granito! Bombas monstruosas!
Eles quebraram suas costas erguendo Moloch ao Céu!
Calçamento, arvores, rádios, toneladas! Levantando
a cidade ao Céu que existe e está em todo lugar
ao nosso redor!
Visões! Profecias! Alucinações! Milagres! Êxtases!
descendo pela correnteza do rio americano!
Sonhos! Adorações! Iluminações! Religiões! O
carregamento todo em bosta sensitiva!
Desabamentos! Sobre o rio! Saltos e crucificações!
         descendo a correnteza! Ligados! Epifanias!
         Desesperos! Dez anos de gritos animais e suicídios!
mentes! Amores novos! Geração louca! Jogados
nos rochedos do Tempo!
Verdadeiro riso no santo rio! Eles viram tudo! O olhar
selvagem! Os berros sagrados! Eles deram adeus!
pularam do telhado! Rumo à solidão! Acenando! Levando
flores! Rio abaixo! Rua acima!

Com Bob Dylan

Com Paul MacCartney
 
 
 
III
 

Cal Solomon! Eu estou com você em Rockland
onde você está mais louco do que eu
Eu estou com você em Rockland
onde você deve sentir-se muito estranho
Eu estou com você em Rockland
onde você imita a sombra da minha mãe
Eu estou com você em Rockland
onde você assassinou suas doze secretárias
Eu estou com você em Rockland
onde você ri desse humor invisível
Eu estou com você em Rockland
onde somos grandes escritores na mesma
abominável máquina de escrever
Eu estou com você em Rockland
onde seu estado se tornou muito grave e é
noticiado pelo rádio
Eu estou com você em Rockland
onde as faculdades do crânio não agüentam
         mais os vermes dos sentidos
Eu estou com você em Rockland
onde você bebe o chá dos seios das solteironas
de Utica
Eu estou com você em Rockland
onde você bolina os corpos das suas
enfermeiras as harpias do Bronx
Eu estou com você em Rockland
onde você grita de dentro de uma camisa de
força que está perdendo o verdadeiro jogo
de pingue-pongue do abismo
Eu estou com você em Rockland
onde você martela o piano catatônico a alma
é inocente e imortal e nunca poderia morrer
impiamente num hospício armado,
Eu estou com você em Rockland
onde com mais de cinqüenta eletrochoques
sua alma nunca mais retornará a seu corpo de
volta de sua peregrinação rumo a uma cruz
no vazio
Eu estou com você em Rockland
onde você acusa seus médicos de loucura e
prepara a revolução socialista hebraica contra
o Gólgota nacional e fascista
Eu estou com você em Rockland
onde você rasga os céus de Long Island e faz
surgir seu Jesus vivo e humano do túmulo
sobre-humano
Eu estou com você em Rockland
onde há mais de vinte e cinco mil camaradas
loucos todos juntos cantando os versos finais da
Internacional
Eu estou com você em Rockland
onde abraçamos e beijamos os Estados Unidos
sob nossas cobertas os Estados Unidos que
tossem a noite toda e não nos deixam dormir
Eu estou com você em Rockland
onde despertamos eletrocutados do coma pelos
nossos próprios aeroplanos da mente roncando
sobre o telhado eles vieram jogar bombas
angelicais o hospital ilumina-se paredes imaginárias
desabam Ó legiões esqueléticas correi para fora
o choque de misericórdia salpicado de estrelas
a guerra eterna chegou Ó vitória esquece tua roupa
de baixo estamos livres
Eu estou com você em Rockland
nos meus sonhos você caminha gotejante de volta
de uma viagem marítima pela grande rodovia que
atravessa a América em lágrimas até a porta do
meu chalé dentro da Noite Ocidental.
Tradução de Cláudio Willer
 
In: Allen Ginsberg. Uivo, Kaddish e outros poemas.  Seleção, tradução e notas de Cláudio Willer. Porto Alegre. L&PM, 1984.
 

Com Carl Solomon
 
Aqui o link para o vídeo com a excelente animação Howl, de Eric Drooker, com legendas em inglês.