quarta-feira, 30 de novembro de 2011

ICARAÍ NEW-GARDEN E OUTROS BREJOS

Saí de Niterói faz dois anos.  Me assustou agora constatar que morei lá por 30 anos, mas é fato, depois de 23 anos em Copacabana.  Essa simples “aritmética biográfica” me leva a uma série de associações que... deixo pra lá, não é o assunto de que quero tratar aqui.
Bom, antes de vir para este brejo onde hoje estou, morava desde 96 em Santa Rosa, em quatro endereços diferentes, numa área limítrofe com Icaraí, o que sempre me levava a perguntar na hora de preencher CEP, se eu moraria num ou noutro bairro.   Aos poucos no entanto eu fui aprendendo a contragosto que morava no Jardim Icaraí.  A contragosto por quê? Porque sempre soubera – ou achava que sabia – que o tal Jardim se restringiria a uns poucos quarteirões retirados, num cantinho que vai encostar lá pros lados do Vital Brasil. Era o que me diziam moradores mais antigos, familiarizados com essas sutilezas geográficas, em geral fruto de um convívio amoroso com a história do lugar onde moram.
Mas não! Fui constatando aos poucos, surpreso, que, sem  nunca ter ido morar no Jardim Icaraí, nos meus últimos 4 ou 5 anos por lá morei justo... no Jardim Icaraí!  É porque a especulação imobiliária que assola a antiga Cidade Sorriso  acha que “Jardim Icaraí” tem uma nobreza no nome, entendem?   “Acha”, não, melhor dizendo, sabe.  A publicidade sabe captar essas ânsias de ascensão social naqueles que vêem sua situação econômica melhorar e passam a ter como objeto de desejo  atingir outro patamar no seu dia-a-dia.   “Sempre foi assim”, digamos pra simplificar.  A conferir no poema de Oswald de Andrade dos anos 20, rindo dos novos ricos paulistanos, dentro do “espírito futurista”, impregnando de amor-humor sua relação com os “modern times”, mesmo que (ou justo por conta disso) a cavaleiro de sua condição de milionário que viria a dilapidar a fortuna da família tradicional.  No poema abaixo temos a inconfundível voz paródica oswaldiana dialogando com a mentalidade jeca-chique dos novos ricos, tão bem capitalizada pela publicidade:

IDEAL BANDEIRANTE
Tome este automóvel
E vá ver o Jardim New-Garden
Depois volte à Rua da Boa Vista
Compre o seu lote
Registe a escritura
Boa firme e valiosa
E more nesse bairro romântico
Equivalente ao célebre
Bois de Boulogne
Prestações mensais
Sem juros

Oswald  sabia que pra essa mentalidade  todo jardim é new-garden, romântico buá de bulonhe.
Vai daí que assim, quase 100 anos depois, se eu nunca morei no tal Jardim, ele veio tentar morar em mim, por artes da indústria imobiliária.  Indústria mobiliária que tem notórios laços com a trupe instalada no poder em Niterói há não sei quantos anos, devastando aquilo lá já há muitos mandatos. Saí de Niterói, portanto, a um passo de morar no Jardim Icaraí.  Uma das vezes em que por lá voltei, ao circular   pela área que virou Icaraí New-Garden,  fiz mais ou menos de cabeça o inventário das casas que por ali havia e que não existem mais.  Fazendo contas de cabeça, me toquei um tanto atordoado que desapareceram, num espaço de alguns poucos  quarteirões, umas 30 casas, substituídas, claro, por edifícios de 10 pavimentos em média.  Isso só circulando nas ruas onde morei desde 96.  Prossigo as contas: se cada edifício  abriga,  calculando por baixo, 20 famílias (na estimativa modesta de 2 aps. por andar), isso quer dizer que saíram 30 famílias e entraram... 600! As ruas do New-Garden são estreitas, a rede de esgotos para atender o número de moradores multiplicado por 20 (por baixo) é a mesma... bom, o que daí decorre está espetacularmente bem exemplificado naquela explosão que aconteceu na estação de esgotos da cidade em abril, inundando de merda e causando uma destruição inimaginável à área perto do Mercado São Pedro (que, aliás, continua sendo a melhor coisa de Niterói – o mercado, não a área).
Sem exagero, sem vontade de fazer “literatura”, sem expressionismo chulé: bandas de música, fanfarras, faixas, gambiarras, bandeiras e guirlandas, fogos de artifício e pobres, muitos pobres muito pobres de perucas multicoloridas – “e quase brancos quase pretos de tão pobres” – foi o que vi de uma das últimas vezes que circulei por onde morei (um quadrilátero formado pela Lopes Trovão, a Otavio Kelly, a Av. Sete e a Rua Santa Rosa).  E vi em três esquinas diferentes, em stands de vendas abarrotados (de novo sem hipérbole) das incorporadoras, os lançamentos espalhafatosos de  uns “Palazzo de Milano”, “Quartier  Versailles” e assemelhados... ou seja, o processo de destruição urbana e todas as suas conseqüências (pet-shops, academias pra exercitar narciso, restaurantezinhos  metidos a finos, barzinhos pra ocupar as calçadas com cadeiras e bêbados chatos etc) está longe de se dar por esgotado, vai render (em mais de um sentido) ainda um bocado.  
Outro dia li um texto no  ótimo blog do poeta Oswaldo Martins  e posto aqui uns trechos, não só porque concordo integralmente com ele mas também porque ilustram perfeitamente o que eu estou querendo dizer:

“Quando alguém, visando a beleza de um produto, a ele dá um nome de um pintor, de um poeta, de um músico, falseia a relação do produto com o público e mostra a destruição que a obra do artista sofre pela exposição midiática. A emulação grosseira pressupõe a falta de leitura daqueles que os mestres da publicidade pensam ser o público alvo do produto oferecido.
(...)
Quando Baudelaire disse que o poeta iria ao mercado vender a alma, como as putas vendem o corpo, não disse ou justificou a mixórdia do mercado – senão que dele fez lugar de preferência para passear a inaptidão do sujeito, sua radical redução à aberração denunciatória dos novos tempos recém-inaugurados.
Quando Caetano entra na justiça para proibir que um investimento qualquer roube-lhe a tropicália para nela fazer morar mal-pensantes que pensam comprar a modernidade e o paraíso, merece, novamente, nossa absoluta aprovação.”  (cliquem aí http://osmarti.blogspot.com/2011/10/picasso.html)


Citei lá em cima o  antropófago. Já  Oswaldo Martins passa por Baudelaire e fecha com Caetano, perfazendo aqui no todo deste texto um percurso por três grandes artistas e grandes provocadores (artistas provocadores) da modernidade (palavra, aliás, que foi cunhada pelo francês).  Enxergar essa dimensão do urbano como horror e fascínio (Friedrich), como aquilo que a poesia não teria mais como nem porque se furtar a tomar como tema e como problema (Candido), essa primeira “sacada”, por assim dizer, quem a teve foi, parece mesmo, Baudelaire.  Oswald soube rir, cínico e conciso, dessa avalanche espreitante de filisteísmo. Assim como Luís Aranha, este com boa dose de galhofa e de jorro poético, parece que entre nós foram eles que mais se aproximaram do “futurismo” de Apollinaire, Cendrars e Palazzeschi, o entusiasmo dos novos tempos numa das mãos, a derrisão na outra.   Mário e Bandeira, para ficar só na primeira hora dos anos 20, também cantaram a cidade moderna, sendo que neles parece haver sempre um travo de indefinível melancolia pela perda de uma paisagem anterior – e neles muito interiorizada.  Foi bom para mim me retirar aqui para este brejo e poder meditar e amar mais detida e distanciadamente essa poesia.  Ainda que para me deparar com minha própria raiva surda e impotente diante desse processo.
Da última vez que estive em Niterói, estava no campus da UFF no Gragoatá quando uma colega comentou que “aqueles apartamentos ali” estavam sendo vendidos a 300, 400 mil cada um.  Olhei para ver quais apartamentos e constatei que se tratava simplesmente de novos prédios em fase já final de construção onde era o casario na Avenida Litorânea, no trecho que medeia entre São Domingos e o Forte.  Meio desconcertado perguntei à amiga se era aquilo mesmo, se eles estavam ali no lugar daquelas casas... diante da resposta afirmativa, não lembrei do “diabo leve quem pôs bonita a minha terra!” do Bandeira, não.  Nem fiquei pensando com que nomes eles teriam sido batizados para ganharem seu verniz de obras de arte. Tive mesmo foi vontade de nunca mais voltar a Niterói.


domingo, 27 de novembro de 2011

ALLEN GINSBERG


Allen Ginsberg (1926-1977)

UM SUPERMERCADO NA CALIFÓRNIA

                       
Como estive pensando em você esta noite, Walt Whitman, enquanto caminhava pelas ruas sob as árvores, com dor de cabeça, autoconsciente, olhando a lua cheia.
No meu cansaço faminto, fazendo o shopping das imagens, entrei no supermercado das frutas de neon sonhando com tuas enumerações!
Que pêssegos e que penumbras! Famílias inteiras fazendo suas compras à noite!  Corredores cheios de maridos!  Esposas entre os abacates, bebês nos tomates! – e você, García Lorca, o que fazia lá, no meio das melancias?

Eu o vi, Walt Whitman, sem filhos, velho vagabundo solitário, remexendo nas carnes do refrigerador e lançando olhares para os garotos da mercearia.
Ouvi-o fazer perguntas a cada um deles:  Quem matou as costeletas de porco? Qual o preço das bananas?  Será você meu Anjo?
Caminhei entre as brilhantes pilhas de latarias, seguindo-o e sendo seguido na minha imaginação pelo detetive da loja.
Perambulamos juntos pelos amplos corredores com nosso passo solitário, provando alcachofras, pegando cada um dos petiscos gelados e nunca passando pelo caixa.

Aonde vamos, Walt Whitman?  As portas fecharão em uma hora.  Para quais caminhos aponta tua barba esta noite?
(Toco teu livro e sonho com tua odisséia no supermercado e sinto-me absurdo.)
Caminhamos a noite toda por solitárias ruas? As árvores somam sombras às sombras, luzes apagam-se nas casas, ficaremos ambos sós.

Vaguearemos sonhando com a América perdida do amor, passando pelos automóveis azuis nas vias expressas, voltando para nosso silencioso chalé?
Ah, pai querido, barba grisalha, velho e solitário professor de coragem, qual América era a sua quando Caronte parou de impelir sua balsa e você desceu na margem nevoenta, olhando a barca desaparecer nas negras águas do Letes?

                        Tradução de Cláudio Willer

In: Allen Ginsberg.  Uivo, Kaddish e outros poemas (1953-1960). L&PM, 1984.




A SUPERMARKET IN CALIFORNIA

What thoughts I have of you tonight, Walt Whitman, for
I walked down the sidestreets under the trees with a headache
self-conscious looking at the full moon.
          In my hungry fatigue, and shopping for images, I went
into the neon fruit supermarket, dreaming of your enumerations!
          What peaches and what penumbras!  Whole families
shopping at night!  Aisles full of husbands!  Wives in the
avocados, babies in the tomatoes!--and you, Garcia Lorca, what
were you doing down by the watermelons?

          I saw you, Walt Whitman, childless, lonely old grubber,
poking among the meats in the refrigerator and eyeing the grocery
boys.
          I heard you asking questions of each: Who killed the
pork chops?  What price bananas?  Are you my Angel?
          I wandered in and out of the brilliant stacks of cans
following you, and followed in my imagination by the store
detective.
          We strode down the open corridors together in our
solitary fancy tasting artichokes, possessing every frozen
delicacy, and never passing the cashier.

          Where are we going, Walt Whitman?  The doors close in
an hour.  Which way does your beard point tonight?
          (I touch your book and dream of our odyssey in the
supermarket and feel absurd.)
          Will we walk all night through solitary streets?  The
trees add shade to shade, lights out in the houses, we'll both be
lonely.

          Will we stroll dreaming of the lost America of love
past blue automobiles in driveways, home to our silent cottage?
          Ah, dear father, graybeard, lonely old courage-teacher,
what America did you have when Charon quit poling his ferry and
you got out on a smoking bank and stood watching the boat
disappear on the black waters of Lethe?

Berkeley, 1955


Walt Whitman (1819-1892)

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

AH, UM SONETO... DE LORENTSOS MAVÍLIS

LETES

Os mortos são felizes. Esqueceram
a amargura da vida.  Ora declina
o sol no ocaso: é o dia que termina.
Não chores, com pesar, os que morreram.

As almas têm sede.  Já beberam
o esquecimento em fonte cristalina.
Se cair nessa fonte a contamina
o pranto dos que em vida estremeceram.

Bebendo da água turva, lembrarão
– quando os campos de asfódelo cruzarem –
velhas dores que esconda o coração.

Se o pranto não conténs, no entardecer,
chora os vivos, então, por desejarem
o olvido e não poderem esquecer.

                Tradução de José Paulo Paes


In: Gaveta de tradutor.  José Paulo Paes.  Letras Contemporâneas, 1996.


sábado, 19 de novembro de 2011

COMO ELAS SÓ

As senhoras católicas
como elas só
acordam cedo  saudosas
das próprias cólicas e vão
inquirir as alheias

vão catar as senhoras
católicas os piolhos infensos
a seu inseticida moral e pegajoso
entre pregas e pregações

após confrontar entre si
a áspera seda das mucosas
secas as senhoras com-
penetram-se  na missa domingueira
como elas só

manhã de domingo são
praticamente só elas mesmas
como elas só
na cidadezinha de vida besta de segunda
a segunda-feira e periférica

mas até as 8 não: elas
as senhoras católicas
ao deixarem o templo brilham
sua distinção pelas ruas vazias

adentram vendas e mercados
de portas recém-erguidas
lépidas recuperam uma agilidade
que se cria perdida
e se esgueiram entre prateleiras

como elas só
ratazanas matutinas
em seus passinhos trêfegos vãos
entre casas esquadrinham, vão
de volta à redoma herdada
(e quanto se gasta manter!)
enquanto a cidade cariada

se povoa
 da rude mulambada evangélica
sobraçando bíblias insondáveis
tais como antigos latinórios
o brilho apenas nos sapatos
e nos rútilos pés em havaianas
(as senhoras católicas mal os vêem
não fazem  parte da tradição política local
  ainda –e no futuro – que chegarão lá! –
 elas já estarão a salvo )
e dos herdeiros dos negros de ganho
que cultivam couve e aipim nas nesgas
do que a história lhes deixou na terra improdutiva
rondando a igreja na esperança
de algum almoço beneficente ou de sobras
da campanha do agasalho
(as senhoras católicas
por atavismo – como só ousam dizer as mais
avançadas – também nunca os viram
nem no eito, mas se queixam de que
não estão no eito)
e dos bêbados amanhecidos de noite
em claro e novo porre até o coma
ou a falta de dono que  lendariamente
carregam
(as senhoras católicas sabem
como elas só o quanto eles as cobiçam,
e lamentam que sejam imprestáveis para tanto)
e das furtivas namoradas
e dos comerciários de folga
e dos biscateiros mais o  apontador do bicho
e o vapor recém-fugido da zona oeste
e seus consumidores
e dos pequenos comerciantes em volta
da banca de jornais
e dos taxistas e o gerente da farmácia que se atrasou
e do açougue atendendo aos pedidos
dos churrasqueiros de domingo
e dos que vão mesmo em meio quilo
da moída de segunda –que hoje
é domingo –

enquanto o ângelus plange ao longe
mais ainda oprimindo o beco do mota
as senhoras católicas voltam
à ativa agora no telefone
noite a dentro atualizam a fofoca da TV o dia todo ligada
num verbo castiço que a cidade vulgar
jamais entenderia
perdeu perdeu!
você viu aquele filho da puta? perdeu!
Jesus se apiede da alma dele que se foda
queria ter dado essa sorte quando
Isaías o jardineiro me aprontou aquela
alguém que lhe metesse um tiro nos cornos
bem dado mas quem?
o inútil do meu Adolfo?
só você vendo ae
a cara do sacana na hora do flagra
enrabando o menino na moita de bambu
aquele não tem perdão nem que chupe
a piroca do frei Leovegildo que aliás
eu sei que gosta e enche a cara de cachaça também ele
vagabundo comuna degenerado
lobo em pele de pica
vai amanhecer presunto que o Dedé
não tá pra brincadeira e conhece os omi
e ele que não se meta por falar nisso
o prefeitinho vai fingir  austeridade
nas contas como se a gente não conhecesse
a cartilha
na festa da padroeira eu vou falar com ele
e ele vai ter que me ouvir

As senhoras católicas dormem
um sono de estrambólicas
patadas
não param de falar
galgam os últimos
degraus levando suas pragas
e promessas.


quarta-feira, 16 de novembro de 2011

JOSÉ PAULO PAES

LÁPIDE PARA UM POETA OFICIAL

a morte enfim torceu
o pescoço à eloqüência



ANATOMIA DO MONÓLOGO

ser ou não ser?
er  ou não  er?
r  ou não    r?
ou não?
onã?



LISBOA: AVENTURAS

tomei um expresso
                                   cheguei de foguete
subi num bonde
                                    desci de um elétrico
pedi um cafezinho
                                   serviram-me uma bica
quis comprar meias
                                   só vendiam peúgas
fui dar à descarga
                                   disparei um autoclisma
gritei “ó cara!”
                                   responderam-me “ó pá!”

                                   positivamente
as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá



(20 de outubro, dia do poeta)
OFERENDAS COM AVISO

vamos pôr uma bengala de cego no túmulo de Homero
para que ele possa vagar em segurança pelas trevas do hades

vamos pôr um sapato de chumbo no túmulo de Dante
para que ele possa ascender mais depressa ao encontro de beatriz

vamos pôr uma corda de enforcado no túmulo de villon
para que ele possa balançar-se em boa companhia

vamos pôr um olho de vidro no túmulo de camões
para que ele possa assistir à volta d’el-rei d. sebastião

vamos pôr um pedaço de carniça no túmulo de baudelaire
para que ele possa sentir o cheiro da vida aqui fora

vamos pôr um silenciador no túmulo de maiakovski
para que o seu revólver não perturbe os planos qüinqüenais

claro que em cada túmulo junto com as oferendas
poremos também o aviso de praxe FIQUEM TODOS ONDE ESTÃO



A UM COLEGA DE OFÍCIO

você não gosta do que eu escrevo
eu até gosto do que você escreve

talvez eu não seja tão exigente quanto você



TEOLOGIA

A minhoca cavoca que cavoca
Ouvira falar da grande luz, o Sol.
Mas quando põe a cabeça de fora
A Mão a segura e a enfia no anzol.








        Já postei muito José Paulo Paes (1926-1998) aqui no Firma, mas até então apenas como tradutor.  Me toco de que está mais do que na hora de postar o poeta.  Soberbo tradutor, soberbo poeta.  Se aquele viajava em tempos e lugares os mais variados, atestando o arco de seus interesses e a extrema competência na difícil empresa da tradução (traduziu dos antigos gregos e latinos até os gregos modernos, passando ainda por diversas outras línguas e tradições, que incluíam a prosa de Sterne e Conrad, a poesia de Aretino, Blake, Éluard, Rimbaud, Whitman, Goethe, Apollinaire e muitos outros), o voo do poeta talvez engane os menos atentos, dada a  sua preferência pela agilidade do humor moleque, pela concisão epigramática  e pelo experimentalismo de ar frequentemente (auto)zombeteiro. Traços que dão a fisionomia própria de sua poesia, marcada frequentemente  pelo diálogo com aquilo  que em literatura é considerado grande ou  “respeitável”, ao mesmo tempo em que torna cômicos  justamente muitos desses diálogos através do contraste com o prosaico das situações: assim, como se lê acima, o lema musical-simbolista de Verlaine vira legenda para zombar post-mortem da retórica sempre tola dos “poetas oficiais”;  também Hamlet e o mito bíblico de Onã aliam-se em sua estratégica – e ferina? – apropriação  do experimentalismo concretista.  Em aulas introdutórias de poesia costumo provocar os alunos valendo-me  do poema  “Grafito”, em que a “subjetividade” do “mundo interior” do eu-poético (clichê que desde o Romantismo é difícil pôr em seus devidos termos para os que se aproximam muito ingenuamente da experiência de leitor de poesia) se revela na verdade uma engenhosa obra-prima a partir de um discurso falsamente grave que glosa um grafito de porta de banheiro.  Vale a pena falar rapidamente dessa experiência: pouquíssimos são aqueles que se tocam da brincadeira feita pelo poeta ao fazer a leitura; os que desconfiam sentem certo desconforto ante uma aula que, afinal, por se tratar de Teoria da Literatura,  e de poesia,  deve ser algo “sério”, onde tais molecagens não caberiam.
            Pois entre os não poucos méritos deste poeta está, a meu ver, ter dado um banho de humor na seriedade às vezes excessiva dos “highbrows” das nossas neo-vanguardas dos anos 50/60.  Se a obra dos concretistas é esplêndida, a verdade é que ela às vezes se ressente  um tanto da falta de humor: certo, a poesia de  Décio Pignatari é um pouco mais arejada sob esse aspecto que a dos Campos, pois nestes o humor se faz ferinamente presente mais nas intervenções polêmicas das entrevistas e das respostas a algum desafeto do que propriamente no trabalho poético.  Em seu livro de 1967, Anatomias, Paes se aproxima poeticamente do grupo, mas sua aproximação vem banhada – e isso ficará para sempre em sua poesia – de “amor humor”,  na melhor tradição oswaldiana.  José Paulo Paes polemiza sim, mas sua polêmica tem um tanto de surdina ou negaceio.  Talvez por não ter se vinculado programaticamente à Poesia Concreta, seu programa pessoal, se assim se pode dizer com perdão do humor fácil deste escriba,  seria mais um “programa humorístico” com o acréscimo de uma dose de auto-ironia. Mas sem nada de tolo ou bem-comportado  (é simples conjectura, mas seria essa diferença  que estaria por trás de  “A um colega de ofício”?).
            Voltando ao tradutor, me impressiona muito a seguinte passagem de Rodrigo Naves (que foi seu amigo muito próximo) no belo texto “Um homem como outro qualquer: José Paulo Paes”,  que serve de apresentação à Poesia completa, de Paes:
           
“Ele costumava dizer, e não era uma boutade, que traduzia porque não sabia ler em outra língua.  Quem nunca experimentou esse dilema não tem uma noção forte do que seja crítica, tradução, análise ou interpretação  - porque é sempre de traduções que se trata nessas atividades.  Zé Paulo nunca aprendeu nenhuma língua de forma sistemática.  Nenhuma.  De algumas delas, como o holandês, se aproximou por meios prosaicos: aquelas coleções de discos que prometiam um acesso indolor a línguas de pouca circulação.  E no entanto chegou a resultados formidáveis.  Enfim, desconfio que ele queria provar que qualquer um, desde que movido por um encanto sem limite para com um objeto cultural, poderia chegar a relacionar-se com ele de forma amorosa e dignificante.”

Este poeta, até pela sua formação, que nada tem de “especialista”, técnico em química que foi, profissão que exerceu até ir trabalhar como editor na Editora Cultrix, põe em evidência  o que Naves diz também acertadamente tanto sobre sua poesia quanto sobre os magníficos textos de crítica que  José Paulo deixou (reunidos postumamente em Armazém literário). Neles, Naves realça o fato de Paes “priorizar determinados aspectos do trabalho de escritor: clareza, correção, preocupação com o leitor, adequação aos meios em que escrevia e um quase desprezo a qualquer ostentação de brilhantismo ou erudição.  De certo modo – principalmente como crítico literário – Zé Paulo escrevia para pessoas que, como ele, se relacionavam com a cultura de maneira não profissional, e que nem por isso mantinham com a produção artística um vinculo superficial.”  Essa dimensão,  que tomei a liberdade de grifar no texto de Naves, é que me parece a tarefa mais urgente para os que trabalham profissionalmente na cultura, seja como criadores, seja nas universidades, nas editoras, na mídia, nas instituições de pesquisa: fazer com que a cultura seja não para especialistas, mas para a sociedade como um todo, como maneira de dar à produção simbólica da sociedade uma dimensão digna, que, cá entre nós, no Brasil, sempre parece ter sido relegada a segundo ou terceiro plano. As questões aí implicadas são inúmeras, difíceis de abordar aqui, na medida mesma em que difíceis de abordar em qualquer instância com a profundidade adequada.  Mas para não sair pela tangente: é comum, quando essa questão é levantada,  que os produtores de cultura acabem entrando em discussões mais autofágicas do que iluministas, por assim dizer: firmam posição na defesa de seus postos “conquistados” (?), acabam falando apenas entre si – muitas vezes apenas para o embate – e se resguardam em seu jargão cada vez mais intrincado.  De imediato vem o pior efeito: o jargão perde sua razão de ser, acirra-se, e até aquilo que nem jargão era acaba sendo lançado na vala comum da “conversação estéril e masturbatória” com que geralmente as discussões que poderiam ser produtivas são identificadas pela ignorância e o desinteresse generalizado das pessoas sobre o que de fato interessa.  Assim é que, para dar o melhor exemplo, muitas vezes fico pensando em como um autor tão brilhante, profundo e claro como Antonio Candido praticamente não é conhecido fora da área dos especialistas em Letras (uma vez, nos anos 80, conversando com um amigo, já morto, jornalista de razoável nomeada no campo da discussão cultural,  fiquei atônito quando ele me disse que nunca tinha sequer ouvido falar em Candido). Ainda que minhas palavras aqui possam exalar um nefasto pessimismo, penso que José Paulo Paes, pelas qualidades ressaltadas acima por Naves, honra a tradição do melhor, isto é, a tradição de Candido.  Que um e outro continuem praticamente ignorados fora dos estudos literários apenas indica a calamitosa situação em que parece que nos encontramos no Brasil quanto aos assuntos que em princípio deveriam interessar a todos os que participam de uma sociedade democrática que se queira minimamente esclarecida.
        O que me tocou particularmente no que  José Paulo Paes deixou foi  sobretudo a descoberta de dois impressionantes  poetas:  o maravilhosamente obsceno e herético renascentista italiano Pietro Aretino (neste blog: http://robertobozzetti.blogspot.com/2011/01/ah-um-soneto-estrambotico-e-luxurioso.html) e o grego moderno, do começo do século XX, Konstantinos Kaváfis (neste blog: http://robertobozzetti.blogspot.com/2010/12/dois-poemas-de-kavafis.html  e http://robertobozzetti.blogspot.com/2011/10/konstantinos-kavafis.html) : os dois, uma vez lidos, se incorporaram para sempre ao meu “fatal lado esquerdo”. Mas tudo em José Paulo Paes é muito bom, muito estimulante.  Assim também os livros de poesia dedicados a crianças, que começou a escrever ainda nos anos 80.  Dentre eles, É o bicho, o primeiro, alimentou a leitura de meus filhos em seus primeiros anos de vida.

domingo, 13 de novembro de 2011

AH, UM SONETO... DE RIMBAUD

O MAL

Enquanto que os escarros vermelhos da metralha
Silvam no infinito azul do céu o dia todo;
E rubros ou verdes, junto ao Rei que os achincalha,
Tombam batalhões em massa no meio do fogo;

Enquanto que desbarata a medonha loucura
Tantos milhares de homens num monte incandescente;
– Pobres mortos! no estio, na erva, na alegria tua,
Natureza!, que fizeste os homens santamente... –

– Existe um Deus que ri às toalhas damascadas
Dos altares, às taças de ouro, ao incenso, às preces;
Que no doce embalo das hosanas adormece,

E só desperta quando as velhas mães, congregadas
Na dor, e a chorar sob as negras toucas, lhe dão
Amarrado num lenço, o seu último tostão!

                                                     (tradução de José Paulo Paes)




LE MAL

Tandis que les crachats rouges de la mitraille
Sifflent tout le jour par l’infini du ciel bleu;
Qu’ecarlates ou verts, près du Roi que les raille,
Croulent les bataillons en masse dans le feu;

Tandis qu’une follie épouvantable, broie
Et fait de cent milliers d’hommes un tas fumant;
– Pauvres morts! dans l’eté, dans l’herbe, dans ta joie,
Nature! ô toi qui fis ces hommens saintment!... –

–Il est um Dieu, qui rit aux nappes damassées
Des autels, à l’encens, aux grands cálices d’or;
Qui dans le bercement des hosannah s’endort,

Et se reveille, quand les mères, ramassées
Dans l’angoisse, et pleurant sous leur vieux bonnet noir,
Lui donnent un gros sou lié dans leur mouchoir!

In: Gaveta de tradutor.  José Paulo Paes.  Letras Contemporâneas, 1996.


sexta-feira, 11 de novembro de 2011

DEZ EPIGRAMAS DE MARCIAL POR DÉCIO PIGNATARI

I, 24
Veja, Deciano, aquele homem despenteado,
Cenho cerrado, que até incute medo,
E que só fala dos varões de antigamente:
Casou-se ontem, acredite: ele era a noiva.


I, 46
Se você exclama, Edilo: “Vou gozar –
Depressa!” – o meu tição se esfria, apaga.
Prolongue o ato que eu irei mais rápido.
Para ir depressa, diga: “Devagar”.


I, 57
De que tipo de garota eu gosto, Flaco?
Entre a difícil e a fácil, meio a meio.
A namorada ideal é assim que eu quero:
Não infernize  a minha vida e não me farte.


I, 104
Bem fodida, cantava mal Neném.
Agora, sem um beijo, canta bem.


II, 63
Você depila peito, braços, pernas
E apara em arco os pentelhos.  Dou fé,
Labieno: é pra agradar à namorada
– Mas, e o cu depilado, pra quem é?


II, 73
“O que fazer, de pilequinho?”, indaga Lupe.
O mesmo, sóbria: chupe.


V, 46
Prefiro os beijos que lhe arranco à força:
Sua ira me é mais bela que o seu rosto!
Por isso, eu bato, Diadumeno, e peço,
Mas você não me teme, nem me ama.


VI, 6
Você, que aterra os homens com o pênis
E as bichas com a foice, guarde, Príapo,
Os poucos metros deste chão distante.
Não entrem no pomar velhos fuinhas
Mas deixe passar algum garoto
E os cabelos compridos das meninas.


II, 59
Sou chamado A pequena: um restaurantezinho,
De onde se avista o mausoléu do grande César.
Triclínios, vinhos, rosas, nardo perfumado
E um deus augusto que assinala: a morte é certa.


III, 53
Dispenso o seu rosto
Dispenso o pescoço
Dispenso as duas mãos
Dispenso seus peitos
Dispenso suas coxas
Dispenso sua bunda
Dispenso os quadris

– E para mencionar mais um detalhe,
Dispenso você,  Beatriz.

            Décio sobre Marcial (Marco Valério)

            “Nasceu no ano 40 d.C., em Bílbilis, na hoje província de Saragoça, Espanha.  Foi para Roma em 64, retornando depois de 30 anos à terra natal, onde morreu no ano 104.  Viveu a vida típica de um cliente, homem supostamente livre, que vive de badalações e de prestar serviços aos poderosos, a começar do bestial Domiciano.  Foi cronista social obsceno e pornográfico de seu tempo, por isso mesmo criticado, quando não desdenhado e desprezado.  Seus epigramas, no entanto – mais de um milhar – diostribuídos em 12 livros, vêm atravessando os séculos, influenciando muitos escritores e poetas, entre os quais Rabelais, Quevedo, Gregório de Matos, Bocage.  Com Juvenal, também espanhol e que foi seu amigo, forma a dupla maior da poesia satírica latina.”

In: 31 poetas 214 poemas: Do Rigveda e Safo a Apollinaire. Uma antologia pessoal de poemas traduzidos, com notas e comentários de Décio Pignatari. Editora da Unicamp, 2007.