quinta-feira, 28 de novembro de 2013

UMA DAS RAZÕES POR QUE RIMOS NOS VELÓRIOS


O cadáver de uma amizade não sai no jornal.
Ninguém se reúne para celebrá-la.
Fala-se baixo e constrangido. 
O mundo teme a imaginação.

A amizade também ninguém celebra.
Quando muito os próprios amigos no seu convívio.
Sem sabê-lo.  Sem saber que é amizade.
Até porque pode
            – perfeitamente –
                        não sê-lo.

 
                          *

 
(Cada um carrega apenas sua morte.
Sua bateria).


                          *
 

A capacidade de rir do mundo e suportá-lo
só a comentamos quando nos despedimos
do que já não é mais

que corpo.

 

 

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

NEI LEANDRO DE CASTRO

DOIS DÍSTICOS DE ROMEU E JULIETA



Ilustração de Joaquim Pêcego


in: Neil de Castro.  Zona Erógena. Ed.Eros, 1981.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

De OS VIRALATAS


OS DESABRIGADOS

 

Ei você aí
ei
aqui estamos
nós

entregues à própria sorte
entregues a nós
vendo a chegada de donativos
salivando como diante de televisões
de cachorro somos nós
nossa própria sorte
nossa imprópria sina
de desobrigados

com muito orgulho
muito amor

Da série Os invisíveis, de Talarico `(Óleo sobre tela)

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Dois poemas de Edwin Morgan




GAROTA DE OBAN

Uma garota na janela comendo um melão
comendo um melão e pintando um quadro
pintando um quadro e cantarolando Hey Jude
cantarolando Hey Jude enquanto a luz evanesce
 
No outono estará casada

 
OBAN GIRL

A girl in a window eating a melon
eating a melon and painting a picture
painting a picture and humming Hey Jude
humming Hey Jude as the light was fading
 
In the autumn she’ll be married

 

 

 

NA ESTAÇÃO CENTRAL

Na estação Central, no meio do dia
uma mulher está mijando na calçada.
Com as costas para a parede e as pernas afastadas
ela inclina-se, o cabelo caindo sobre o rosto,
a saia sombria e o casaco nem sequer levantado.
Sua urina bate na pedra com força
e corre em direção à sarjeta.
Ela não é velha, nem jovem,
não é suja, tampouco limpa,
nem em trapos, mas naquele caminho.
Ela está no centro da cidade, o fantasma no banquete.
Executivos saindo do trem de Londres
assustam-se incrédulos mas pulam o rio
e mansamente juntam-se à fila do táxi.
A gente de Glasgow passa apressada,
mal olha, ou se atreve a olhar,
ou olha severamente, atrevida, como
o olhar do poeta, não duro como o aço
mas severo, rápido, diminuindo o passo
um pouco, registrador maldito, seus sentimentos
tão confusos como as folhas de novembro.
Ela é uma estátua em um redemoinho,
surrada por nada que ele possa dizer em palavras,
sangrando nas ondas de conversa
e transita fluidos terríveis de necessidade.
Somente dois homens francamente param,
com um sorriso largo, jogam-lhe um insulto
enquanto cruzam a rua para apostar no jogo.
Sem eles a indignidade,
a dignidade, seria incompleta.
 

AT CENTRAL STATION

At Central Station, in the middle of the day
a woman is pissing on the pavement.
With her back to the wall and her legs spread
she bends forward, her hair over her face,
the drab skirt and coat not even hitched up.
Her water hits the stone with force
and streams across into the gutter.
She is not old, not young either,
not dirty, yet hardly clean,
not in rags, but going that way.
she stands at the city centre, skeleton  at the feast.
Executives off the London train
start incredulously but jump the river
and meekly join the taxi queue.
The Glasgow crowd hurries past,
hardly looks, or hardly dares to look,
or looks hard, blod as brass, as
the poet looks, not bold as brass
but hard, swift, slowing his walk
a little, accursed recorder, his feelings
as confused as the November leaves.
She is a statue in a whirlpool,
beaten about by nothing he can give words to,
bleeding into the waves of talk
and traffic awful ichors of need.
Only two men frankly stop,
grin broadly, throw a gibe at her
as they cross the street to the betting-shop.
Without them the indignity,
the dignity, would be incomplete.
 

                         Tradução de Virna Teixeira

 

Edwin Morgan. Na Estação Central.  Sel. trad. e introdução de Virna Teixeira.  Editora UnB (Poetas do mundo), 2006.


domingo, 3 de novembro de 2013

CIRCUNVAGANDO NAS BIOGRAFIAS


Não tinha lido a coluna de Caetano Veloso do domingo passado, o que fiz agora (pelo andar da carroça aqui no brejo, domingo que vem eu devo ler a de hoje), mas tem ali duas passagens dignas de nota, que comento e transcrevo:

  1. quanto ao interesse que o assunto “biografias”  despertou, diz Caetano, “pelo visto nas folhas e nas redes, o interesse é enorme, embora não pareça ser pelo que é discutível na questão, e sim pela oportunidade de agredir quem ganhou prestígio no Brasil, país que ainda precisamos tanto provar que não vale nada nem poderá nunca valer nada”.  Não querendo endossar tudo, uma vez que sou mais acometido do que Caetano por esse sentimento de que “nada dará certo no Brasil”,  mas há aqui carradas de razão, sendo alguma coisa que me chamou a atenção nos primeiros comentários dos poucos que fiz no Facebook : impressionante a massa acrítica de ódio despejado sobre essas figuras (em especial Caetano e parece que sabemos tacitamente por que), facilmente perceptível   na recusa em se discutir o que há de discutível em tudo aí (a começar pelo posicionamento inicial deles, artistas, em linhas gerais bem capenga).  Não é também o caso de se simplificar tanto, mas eu sou do clã do Tom Jobim, que dizia com todas as letras “brasileiro odeia o sucesso, por isso gosta do Garrincha e não gosta do Pelé.”
  2. Caetano, depois de ecoar Ana Maria Machado (que não li), escreve:  “que não ajamos como se a democracia tivesse que escolher entre a censura e a difamação. Será que o tom histérico da imprensa e a psicopatia coletiva das redes são a palavra final? Acho que Chico, Gil e eu não estarmos em posição confortável reafirma nosso histórico, ao invés de desmenti-lo. Eu desconfiaria se os três estivéssemos, ao mesmo tempo, tendo apoio unânime.”
Pois nessa última citação a estocada certeira, que atinge professores de história e de literatura preguiçosos (além de jornalistas, é claro) que ficam repetindo as baboseiras de sempre a respeito de “protesto”,  “resistência” e “heroísmo” dessa geração de artistas, negligenciando os aspectos (alguns muito profundos) que sempre houve de dissenso entre eles.  Parece que o sonho desse pessoal  simplista é deixar a palavra final ao simplista Belchior: “Nossos ídolos ainda são os mesmos etc e tal", a chorumela que todo mundo sabe... A simplificação excessiva faz tanto a reflexão histórica quanto a reflexão literária reféns  do jornalismo diário (que tem de lidar com a pressa mesmo e, por conseguinte, com  a simplificação).  Mas mesmo no jornalismo  há aqueles que não se submetem a isso – e alguns textos produzidos para a imprensa têm sido muito honestos  na tentativa de se entender o imbróglio, sem querer livrar a cara de nenhum “ídolo”  – e o imbróglio,  de resto, vai muito além de uma discussão circunscrita a eles. Mas, claro, não pode incluir a sério em nenhuma instância o que diz um Bolsonaro a respeito.

Que a “turma da MPB” nunca tenha sido um bloco unitário e coeso estudiosos sérios (de história, de música  e de literatura) já o demonstraram. Que essa ilusão tenha se perdido para sempre num certo réveillon em Copacabana e não se tenha prestado a devida atenção a isso, bom... lamente-se.  Não acho que se deva tratar a questão por um lado simplificadoramente esteticista, longe disso, mas da forma como tenho visto ser abordado tem alguma razão quem o fizer, ainda que apenas por tédio (eu mesmo tenho me acusado disso): e assim é porque  as obras deixadas por eles (tiro a média da turma) e a importância que elas têm para a discussão cultural brasileira  são superiores a suas circunstâncias históricas, ainda mais se ficarmos chafurdando nessa coisa menor da fofoca.   E afinal, as circunstâncias históricas que alimentaram essas mesmas obras foram em geral tratadas nelas com admirável competência, poder de provocação e profundidade.  Além de terem estado longe de ser recebidas, tais obras,  – convém não esquecer que são mais de 40 anos de estrada – com aplausos unânimes em nenhum momento.
Em resumo, ainda que apenas vadio e em nível de mero pitaco (que, aliás, acabo de descobrir, não é uma palavra dicionarizada): um esteticismo domingueiro – e no entanto produtivo, estou aqui às voltas com um texto de mais fôlego – me obriga deixar claro que amo todos que citei, mesmo implicitamente, acima: e reafirmar que amo muito Tom e igualmente Pelé e Garrincha.  Mas Belchior, menos.  E Paulinho da Viola, mais que todos.




P.S: Não, uma foto incluindo Paulinho da Viola não pode ser tomada como equívoco ou relaxamento de minha parte: ele não é o J. Pinto Fernandes da história.