segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

AH, UM SONETILHO DE VINÍCIUS DE MORAES

               Justamente célebre no Modernismo por seu sonetos de temática amorosa em corte camoniano,  renovados pela mescla estilística que brilha forte aqui e ali, Vinícius é autor também de alguns sonetilhos, que é como se chamam os sonetos escritos em versos de métrica curta, como o que posto abaixo, tetrassilábico.


Como de cera
E por acaso
Fria no vaso
A entardecer

A pêra é um pomo
Em holocausto
À vida, como
Um seio exausto

Entre bananas
Supervenientes
E maçãs lhanas

Rubras, contentes
A pobre pêra:
Quem manda ser a?


                                            (in: Poesia completa e prosa.  Nova Aguilar, 1987)

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

PAULINHO LÊMOS: BATO TAMBOR





BATO TAMBOR
Paulinho Lêmos e Agenor de Oliveira

Bato tambor pra anunciar
Que o samba começou
E não tem hora de acabar
Mando um sinal do coração
Será fundamental
Um tamborim na marcação
Vibra no ar dá diretriz
Não há nada mais belo
Do que um samba de raiz
Vem pra cantar e o povo diz
Se a vida é uma só
Ao samba eu peço bis

Fala de amor
Da tristeza do mar
Lua cheia estampada na retina
É um pescador
Das mentiras do olhar
Chororô de criança pequenina

Roda e vai improvisar
E zanza pandeiro e ganzá
E ginga daqui pra acolá
Sobra samba na veia
Acho melhor não esperar
É o samba em primeiro lugar
Um beijo gostoso e até já
Logo o dia clareia



Para que dizer que existe música Brasileira?
Existe o som de Paulinho, de Pixinguinha, de Sinhô, de Bororó,
de Nelson Cavaquinho, de Candeia e outros, como existe
o som das abelhas e o zumbido da alma de cada um.
(Capinan, texto para contracapa do 4º. LP de Paulinho da Viola, 1971)

O que há de extraordinário em versos como: “Não há nada mais belo/do que um samba de raiz”?  Aparentemente nada, não é mesmo?  Inclusive há, na minha maneira de ver, o equívoco da expressão “samba de raiz”, que eu particularmente detesto.  É uma expressão que se consagrou quando setores mais arraigadamente nacionalistas (em boa medida ou em bom número francamente xenófobos) do pensamento brasileiro se propuseram a pensar, a teorizar sobre samba (nada contra, tudo a favor), a querer ideologizá-lo enquanto símbolo representativo da nacionalidade ante a “ameaça da penetração cultural estrangeira ou imperialista” (o que carreou e carreia diversos equívocos), finalmente a querer “ensinar ao povo como fazer arte popular” (o que é hilariante e abominável).  O fato de ainda hoje se falar em “samba de raiz”, tendo a expressão se tornado mesmo uma etiqueta de mercado, indica que essa forma de enquadrar a questão permanece ativa. Mas eu posso – em alguns casos, devo – abstraindo tudo isso, trazer à memória a plena força dos sambas, enquanto “somente” sambas, “somente” canções, que se teima em abrigar sob o rótulo.  Aí me vêm ao ouvido afetivo Candeia, Nelson Cavaquinho, Cartola, Geraldo Pereira, Manacea, Xangô da Mangueira, Zé Kéti, Mauro Duarte, Dona Ivone Lara... e tantos outros. Não há nada mais puro do que o que eles compõem? Rejeito o adjetivo. Nada mais brasileiro? Não estou nem aí. Nada mais belo? Aí, eu concordo integralmente.  Levado pelo ouvido afetivo, ao ouvir o que é tão singela e diretamente dito em “Bato tambor”, todo o corpo se reconhece gozoso em versos tão verdadeiros: não há nada mais belo do que os sambas que vêm do “zumbido da alma” de Candeia, de Nelson, de Cartola...
            Procurei descrever acima uma das portas de entrada – a mais afetiva, isto é, a mais permeada de armadilhas – que me levou a uma entrega total a esse samba de Paulinho Lêmos e Agenor de Oliveira, que posto aqui para meus leitores ouvintes. O segredo desse samba a meu ver magnífico está na força de evocação que cada verso, cada nota, acorde, compasso, cada timbre, cada nuance da voz que canta carrega consigo nessa gravação. É uma canção e uma gravação plena do raro e interminável mistério que tem o samba, os grandes sambas dos grandes criadores de samba.  Neste CD gravado no Brasil em 2006 e lançado na Espanha, onde Paulinho mora e de onde recentemente (há muito tempo tínhamos perdido contato) me enviou pelo Correio o que segundo ele é um dos últimos exemplares que ainda tinha em seu poder, Paulinho se debruça sobre o samba e realimenta em nós o seu sortilégio.  Sortilégio: mistério, gozo e quebranto.  Há nisso muito de invocação também, que vai de braço com a evocação.  Num nível simples entende-se: há quase 30 anos morando fora do Brasil, Paulinho faz nas 12 faixas do CD um estupendo trabalho de ziguezaguear entre  sons que evocam aquilo que, luso ou afrobrasileiros, aprendemos desde sempre sob a rubrica da palavra “saudade”: nessa evocação, a invocação: por exemplo, ao refazer  “Timoneiro”,  de seu ilustre xará Paulinho da Viola (com Hermínio Bello), em ritmo angolano, que no arranjo mescla-se ao samba; ao homenagear em outra faixa, esta de sua autoria, Cesária Évora, na feliz síntese “filha de Clementina irmã de Amália”.  Entre uma e outra, e girando em torno delas, cada passo de cada um dos sambas aqui  evoca o samba como paradigma infinito, formando um dos mais estimulantes repertórios de sambas que tenho ouvido num único CD: e estou convencido que muito de sua força vem da nenhuma preocupação de Paulinho em fazer “samba de raiz”.  No mesmo passo, ele invoca os avatares (espirituais ou de carne e osso, pouco importa) do samba – afinal, o que significa “bater tambor”, não é mesmo? – para chegar a um produto límpido e digno como uma oferenda.  Na expressão feliz de Wisnik, pérolas aos poucos.  Poucos ouvintes talvez; mas também, aos poucos, pérolas que adquiriram uma extraordinária concreção, ao longo de quase 30 anos de estrada (vale notar de passagem que Paulinho se cercou de um grupo  de músicos de primeiro time: Arthur Maia, Marcos Suzano, Carlos Malta e outros do mesmo calibre).
            Essa nenhuma preocupação em obter um resultado a priori – de se fazer um disco de “samba de raiz”, repita-se – me parece um dos grandes achados do CD. É com a enorme familiaridade adquirida por ele  no interior de tal universo que somos levados a percorrer  os sons que nos evocam (e certamente a ele também, que os invocou) Tom Jobim, João Gilberto, Paulinho da Viola, João Bosco (que desmarcou por um imprevisto a participação especial que iria fazer numa faixa), João Nogueira, Gilberto Gil, Caymmi, Baden... não creiam que eu exagero, eu não exagero. E tem mais lá.  Na segunda estrofe  de “Bato tambor” (chamar de estrofes e dividir a letra em três delas é uma arbitrariedade conduzida por um “vício” literário) parece que somos conduzidos ao fraseado melódico característico de samba de terreiro, que se esparramava ainda pelos sambas-enredo até pelo menos uns 30 anos atrás. Isso conduz a um belíssimo fecho na 3ª. parte em que tudo “zanza” magnificamente no embalo de palmas magistralmente colocadas na solução final dada ao arranjo.
            A letra, que é de Agenor de Oliveira, é perfeita, ao operar de forma magistral os lugares-comuns da poética do samba, num sentido em que “lugar-comum” e “clichê” não são sinônimos.  Francisco Achcar, num livro excelente que trata da herança de alguns temas horacianos na poesia de língua portuguesa (Lírica e lugar-comum. EdUSP, 1994) ajuda-nos a entender a diferença entre uma coisa e outra, formulando como lugar-comum  a operação de buscar (ou achar) no interior de determinada tradição “os pontos de semelhança que ligam umas obras às outras”.  O clichê seria trabalhar de forma meramente convencional, inepta, subserviente tais pontos de semelhança, banalizando-os dentro da tradição e esclerosando-a. “Bato tambor”, inserindo-se como uma celebração do “samba de raiz”, numa obra (o CD em questão) que em absoluto não faz questão de navegar subservientemente e apenas nessas águas, se inicia com o samba abrindo clareira no espaço e no tempo (“começou e não tem hora de acabar”), invoca os instrumentos (além do tambor, tamborim, pandeiro e ganzá), pede passagem(“vem pra cantar e o povo diz”), tece a aliança com a ilusão, o desejo, instaura pela dança o império do corpo e só termina, com um breve “até já”, ou seja, promessa de curta interrupção, “quando o dia clareia” – o que é diferente de “ter hora” –, e  realiza o que Paulinho da Viola sintetizou em seu magnífico “Eu canto samba”:  “há muito tempo eu escuto esse papo furado dizendo/ que o samba acabou/só se foi quando o dia clareou”.  Entenda-se: há um passeio aqui pela recorrência de motivos que permeiam o samba desde sempre.
Preciosa enquanto fatura, a canção (letra-melodia) aumenta sua fluidez na medida em que parte de uma entrada marcadamente percussiva de início, onde se destacam as sonoridades de travamento, oclusivas, acentuadas fortemente pelos tamborins no arranjo (“Bato tambor pra anunciar/que o samba começou/e não tem hora de acabar”), e acaba por desaguar nos versos que figuram o corpo entregue ao embalo de tocar-dançar o samba:  Roda e vai improvisar/E zanza pandeiro e ganzá/E ginga daqui pra acolá/Sobra samba na veia”.  A forma como Paulinho canta evidencia isso: sempre contido, a voz quase “encostada”, semi-sussurrante, de início ela destaca as sílabas, bem marcadas em sua diferenciação. No correr da canção, sem perder em nada a nitidez, como se não houvesse mais obstáculos a vencer, o conjunto melodia-letra-canto é tomado pelo irresistível apelo da integração do corpo ao canto mobilizador da dança, em sonoridades mais soltas, palatalizadas, sibilantes e chiantes – a letra “desliza” naqueles quatro versos destacados ali em cima, o leitor faça-se de cantor e experimente.  São as sonoridades suavizadas que  de fato conduzem a entoação da melodia e se sobrepõem às sonoridades mais duras ou fechadas que se resignam agora a um papel secundário.  Essas consoantes suavizantes vão de par com o predomínio das vogais abertas ou ainda suavizadas pela nasalização,  que atingem seu ponto máximo em “sobra samba na veia” e prossegue até o fim da canção, compondo um todo harmonioso em direção a uma espécie de princípio do prazer infinito ao menos enquanto dure.    Leia-se, cante-se:

Roda e vai improvisar
E zanza pandeiro e ganzá
E ginga daqui pra acolá
Sobra samba na veia
Acho melhor não esperar
É o samba em primeiro lugar
Um beijo gostoso e até já
Logo o dia clareia

Com uma segurança impressionante, que os anos de estrada, aprendizado e convívio lhe deram, Paulinho Lêmos – o circunflexo do sobrenome vale como uma tatuagem -  firma-se como cancionista de primeira linha, em  sambas que são de sua firma reconhecida e reconhecível.
                       
           




quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

RÃ COM BERTALHA, RIM COM JILÓ, MIOLO COM ESPINAFRE

           Achava que tinha lido no Ruy Castro ou no Hermínio, mas andei buscando e não encontrei, uma estorinha deliciosa com Tom Jobim como personagem principal: diz que ele saiu de uma gravação no começo da madrugada com um amigo, e iam os dois caminhando por uma ruazinha lá pelos lados do Jardim Botânico, quando se depararam com um boteco já meio que fechando as portas. Viram que o boteco servia refeição, estavam com fome, entraram. O atendente (boteco tem garçom?), naquela já de querer se mandar, amarrou a cara, mas como a fome apertava, Tom ficou firme, perguntou se dava pra sair alguma coisa pra eles comerem.  Resposta positiva, diz que o maestro perguntou: “E o que que dá pra sair?” “Tudo”, foi a resposta convicta, de dentro da irritação do cara.  “Tudo? Então me traz rã com bertalha.”
            Não sei se Tom gostava de rã com bertalha, provavelmente não.  Pois o inusitado do prato me atrai, qualquer dia arrisco fazer.  Separadamente adoro tanto rã quanto bertalha, a combinação deve ficar interessante, mesmo no meio da madrugada.  Até porque uma receita clássica pra curar ressaca é canja de rã, uma delícia – sei lá se funciona pra ressaca, mas é ótima.  Um partido que Aniceto do Império cantava sempre, Candeia gravou, tem lá: “Você já começa a beber/vou lhe dar caldo de rã...” Já bertalha, a prima pobre do espinafre, que nunca teve um Popeye pra incentivar ser despejada goela abaixo da garotada, a pobre bertalha as pessoas nem sabem mais o que é, difícil até de achar pra comprar. É uma folhinha maravilhosa, trepadeira de verão, sobe em qualquer armação que se faça pra ela, até mesmo pelas paredes, como eu tinha aqui no meu brejo antes que a chuvarada de janeiro levasse tudo.



           A foto que ilustra esta postagem, tosca por conta única e exclusiva do fotógrafo aqui, não é de rã nem de bertalha.  É de miolo de boi.  Envolvido numa mistura de farinha de trigo com cerveja, temperada com sal e salsa, e frito em óleo bem quente.  Fiz aqui pra comer com um cremoso arroz de espinafre, por falar nele.  Aliás, miolo também é difícil, dificílimo de se conseguir, tem que encomendar com antecedência. No Rio eu comia às vezes no Cervantes, que tinha no cardápio (ainda tem?), com batatas fritas.  Cervantes, bom também para se comer rim, que lá eles fritam inteiro, com uma fatia de bacon.  Tinha também no Lucas, no Posto 6, que acabou. Rim é ótimo, gosto de preparar no vinho e comer com jiló lascado fininho e passado na chapa com cebola.
            Deve ter gente que, enojada, já parou há algum tempo de ler isto.  Uma amiga minha, que aliás é seguidora aqui do “Firma”, usou uma expressão ótima do marido para se recusar a comer certas coisas – eu estava explicando como preparo polvo: diz que o marido dela se recusa a comer “comida explícita”.  Uma outra amiga, que adora camarão, se recusa a comer se ele estiver inteiro, “com os olhos me condenando”.  Em compensação, uma antiga sogra, senhora portuguesa, só comia coelho “se eu mesma puder matar ou se puder ver matarem”.  Não compra coelho morto de jeito e maneira, acha sempre que é gato.          
            Engraçadas as diferentes relações que as pessoas mantêm com o que comem.  Acho que pelo que eu digo e escrevo,  as pessoas me têm na conta de um ogro, esganado e pantagruélico.  Talvez seja, mas sou um ogro de alimentação muito balanceada e equilibrada, dentro dos meus padrões.  Como de tudo, desde que considere bem feito, incluindo botecos que sei que tenham comida (PF que seja) de feitura caprichada, embora ainda não tenha encontrado nenhum que sirva rã com bertalha.  Passei alguns meses da minha vida sem comer carne, e muitos legumes que adoro, por conta de um tratamento alternativo que fiz, e não sofri grande coisa: eu mesmo cozinhava e podia confiar.  Na rua, sabia os lugares de boa comida alternativa, macrô ou vegetariana.  Comida bem feita me dá prazer. As comidas explícitas de que falo lá em cima me habituei desde cedo a comê-las, muito antes de serem consideradas “exóticas” ou “bizarras” – aliás, tem um três anos, se tanto, que descobri num programa de TV que eu comia “comidas bizarras”. 
            Mas não sou um devorador de “comidas bizarras” exclusivamente. Se bem que as pessoas tendem a considerar “bizarras” coisas como bertalha, acelga, funcho, aipo, maravilhosos vegetais que freqüentam sempre a minha mesa ao lado dos mais comuns alface, couve, couve-flor, agrião, rúcula... Rúcula que até alguns anos provavelmente seria considerada “bizarra”.  Bizarro talvez fosse o hábito de voltar à noite de Campo Grande a Niterói, ao volante, Avenida Brasil quase inteira,  devorando um molho de rúcula hidropônica, que era cultivada pelo marido de uma colega, e que de vez em quando me presenteava com essa delícia. Tinha uma amiga que às vezes voltava comigo e era parceira nessas bizarrices. E viva o comer bem!

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

EM TORNO D' "A MISSA" DE BEHR E DE MIM

            Postei aqui ontem o poema de Nicolas Behr, “A missa”.  É raro que me aconteça diante de um poema o que me acontece diante desse: é como se ao lê-lo, operando uma pausa absoluta no fluir do tempo, o poema fundasse de súbito uma ilha de memória, não exatamente uma ilha índice de solidão, porém sim de abrigo precário em meio a possíveis tormentas, logo, por precário, também sujeito a tormentas.  E principalmente: índice de alguém com quem eu possa dividir a ilha.
            Esse alguém não é o poeta Behr, que não conheço pessoalmente: é o seu poema e todas as vozes que o povoam. É  todo o mundo que essas vozes vão criando ao longo dos versos, assim disposto, esse mundo, de forma estudadamente desleixada em termos formais, meio que num fluxo um tanto à la poesia beat, num desatavio também muito próprio aos poetas que vêm da geração 70, como é o caso dele, Behr.  São as palavras da liturgia católica derrubadas de súbito aqui, ali, no rasteiro do chão pelos pensamentos do menino que não lhes capta o sentido ou o transfigura, são as vozes muitas da desatenção do menino ante o ritual, à espera de poder voltar à vida lá fora, fora da igreja, vozes de outras crianças que se entrecruzam, sussurradas no interior da nave, e que aqui o leitor lê em pé de igualdade – na verdade, superioridade – com as palavras vazias do padre. . Divido a ilha com esse poema, com essas vozes, na medida em que sei exato o que é isso. Ou seja, acho que na verdade o poema me faz compartilhar a ilha... comigo mesmo, com minhas memórias, que ele acende.
            “A missa” de Behr, poema que conheço há não muito tempo, me transportou, na primeira vez que o li, diretamente não tanto para as missas, poucas, que assisti na vida e das quais quase não tenho lembrança.  Levou-me sim de início a uma situação análoga, se bem que mais angustiosa, do jovem adulto perturbado pelo mundo das formas no poema de Murilo Mendes:

            “Não consigo ultrapassar a linha dos vitrais
            pra repousar nos teus caminhos perfeitos.
            Meu pensamento esbarra nos seios, nas coxas e ancas das mulheres, pronto.
(...)     
            Vestidos suarentos, cabeças virando de repente,
            pernas rompendo a penumbra, sovacos mornos,
            seios decotados não me deixam ver a cruz.

            Me desliguem do mundo das formas!”

“A missa” me levou aqui para a igrejinha próxima a este brejo, onde, não sei por que cargas d’água, me inscreveram há muito tempo para assistir às aulas de catecismo, numa segunda tentativa de fazer a primeira comunhão, visto que a primeira tinha sido frustrada por uma reprovação na São Paulo Apóstolo em Copacabana.  A segunda também se frustraria e justo pelo que está como no poema de Behr: todos os versos me são próximos, melhor, me são meus, em especial um dos últimos: “e eu não quero ser goleiro outra vez”.  Ruim de bola (doente do pé e ruim da cabeça também, vá lá), só me restava ir para o gol.  Agarrar no gol é destino de todo perna-de-pau nos rachas.  Agarrar no gol era muito melhor do que as aulas de catecismo. Muito antes de abandonar os rachas – que carioca chama de pelada – abandonei a idéia de comunhão católica.  Nem na segunda tentativa eu fiz a primeira.  No dia da cerimônia perdi por W.O.
           

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

NICOLAS BEHR

A MISSA

em nome do pai, do filho e do espírito santo
depois da missa vou jogar bola e pescar
cantemos todos o canto de entrada, de pé
tenho vara, linha, chumbada e isca boa, minhoca
bendito seja deus que nos reuniu no amor de cristo
eu e Inácio vamos pescar naquele trecho do rio, difícil
deus pai todo poderoso tenha compaixão de nós
mamãe veio me visitar e fomos tomar guaraná
leitura da carta de são Paulo apóstolo aos romanos
ela vem de novo mês que vem e vamos tomar
guaraná de novo, ela disse, ela prometeu
senhor tende piedade de nós
não sei o que faço para aprender matemática
evangelho de Jesus cristo segundo são Lucas
é tempo de manga na casa da dona alair
glória a deus nas alturas
só que na casa dela agora tem cachorro bravo
e paz na terra aos homens de boa vontade
só faltam três semanas pra gente sair de férias
nós vos damos graça por vossa imensa glória
meu irmão puxou minha orelha, sangrou, doeu
vós que tirais os pecados do mundo
tende piedade de nós
aquele cacho de banana que escondi na roça
dos padres deve estar bem maduro
vós que estais à direita do pai tende piedade de nós
vou lá sozinho comer aquele cacho de banana sozinho
vinde a mim os que têm fome glória a vós senhor
não subo mais em pé de abacate caí quase morro
segura na mão de deus que ele te sustentará
que pena vão derrubar o muro da casa do seu João
não vai mais ter graça roubar manga lá
oh meu bom Jesus que a todos conduz
olhai as crianças do nosso brasil
ah mas ainda tem muitos outros quintais
pra gente roubar manga
o senhor esteja convosco ele está no meio de nós
quando eu for na fazenda quero andar a cavalo
senhor, eu não sou digno que entreis em minha morada
mas dizei uma só palavra e serei salvo
que palavra será essa meu deus! a palavra cavalo serve?
e se meu pai vendeu o cavalo?
cordeiro de deus que tirais o pecado do mundo
será que tô com bicho-de-pé de novo?
no amor e na comunhão do espírito santo
estou arrependido de ter tocado fogo no sapo
abençoai-vos deus todo poderoso
pai, filho e espírito santo
aleluia! aleluia! aleluia!
a missa está no fim
e eu não quero ser goleiro outra vez
ide em paz e o senhor vos acompanhe
amém! gol! amém! gol! amém! gol!

pela primeira vez meu time ganhou
do time dos anjos

            (in: Laranja seleta. Língua Geral, 2007)

domingo, 20 de fevereiro de 2011

AH, UM SONETO... DE CRUZ E SOUSA

SINFONIAS DO OCASO

Musselinosas como brumas diurnas
Descem do ocaso as sombras harmoniosas,
Sombras veladas e musselinosas
Para as profundas solidões noturnas.

Sacrários virgens, sacrossantas urnas,
Os céus resplendem de sidéreas rosas,
Da Lua e das Estrelas majestosas
Iluminando a escuridão das furnas.

Ah! por estes sinfônicos ocasos
A terra exala aromas de áureos vasos,
Incensos de turíbulos divinos.

Os plenilúnios mórbidos vaporam...
E como que no Azul plangem e choram
Cítaras, harpas, bandolins, violinos...

            (in: Missal e Broquéis.  Martins Fontes, 2001)

sábado, 19 de fevereiro de 2011

SURABAYA JOHNNY: CIDA MOREYRA



SURABAYA JOHNNY

            Kurt Weil – Bertolt Brecht
            Versão: Silvia Vergueiro

Dezesseis anos só eu tinha
E pra longe você me levou
E dizendo que a sorte era minha
A lua você me jurou
Perguntei como você vivia
E do mar você não me falou
“Eu trabalho numa ferrovia, baby
Marinheiro não, eu não sou”

Você falou muito, Johnny
E não falava a verdade, Johnny
Você me traiu desde o começo
Eu te odeio, Johnny
Não fique aí parado com essa cara
Tire esse cachimbo da boca, cachorro

Surabaya Johnny
Não me trate assim
Surabaya Johnny
Meu amor não tem fim
Surabaya Johnny
Sou tão infeliz
Amando assim meu Johnny
Que não chora por mim

No começo era tudo certinho
Desde que eu te fizesse carinho
Mas o tempo passou e a vida
O vento do mar me levou
A imagem perdida no tempo
Da cidade, do cais e do mar
Aparece na frente do espelho
Repetindo  meu próprio olhar

Você não queria amor, Johnny
Você queria dinheiro, Johnny
Você pediu tudo, Johnny
Eu te dei até mais
Eu te odeio, Johnny
Não fique aí parado com essa cara
E tire esse cachimbo da boca, seu rato


Surabaya Johnny
Não me trate assim
Surabaya Johnny
Meu amor não tem fim
Surabaya Johnny
Sou tão infeliz
Amando assim meu Johnny
Que não chora por mim

Eu jamais descobri o mistério
Nem por que te chamavam assim
Mas as noites e os hotéis eram nossos
E isso bastava pra mim
Acordar numa cama barata
E ouvir o barulho do mar
Teu navio partindo pra longe
Indo embora pra qualquer lugar

Você não presta, Johnny
Você é um canalha, Johnny
Por que você me abandonou, Johnny
Você pode me dizer por quê?
Eu te odeio quando você me olha assim
E tire esse cachimbo da boca, seu porco

Surabaya Johnny
Não me trate assim
Surabaya Johnny
Meu amor não tem fim
Surabaya Johnny
Sou tão infeliz
Amando assim meu Johnny
Que não chora por mim


                             (do disco Cida Moreyra, Abolerado Blues. Lira Paulistana/Continental, 1983)

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

HOJE É QUINTA

Hoje é quinta, amanhã é menos,
súbito a conta é subtração.
Enquanto vivemos, a ponta
da seta sempre aponta
em nossa direção:
É o de somenos
é um truísmo
rebarba que redonda
mente ao nosso medo
de dissipação. O diapasão
dá a nota rombuda
que o ouvido não capta
 − melhor: capta e deixa
vazio, eco ao fim
de fundo sem som.
Célere não percebemos
o quanto o tempo
desacelera o que a espera
não  cumpre e fica
baldio, resquício
quintal dos fundos
caco de entulho
quarto imprestável
onde se adentra
só pra saber
que não se encontra
o que faria falta
se não fosse menos.
Amanhã é menos
hoje é quinta
de ontem não lembramos.


            Marcelo Diniz me repreendeu suavemente (como é de seu feitio), aqui outro dia por ter postado o rascunho de um soneto que ele me enviara por email [http://robertobozzetti.blogspot.com/2011/02/ah-um-soneto-inedito.html]. No que fez muito bem, assim como eu tinha feito muito bem em tê-lo postado.  Estamos quites.  Ele disse que eu tenho “mania de rascunho”, o que é verdade, mas é meia verdade.  É que eu brinquei com a idéia de rascunho no meu  Firma irreconhecível (o livro) – o que sempre pode e deve ser visto, suspeitosamente, como uma maneira de justificar algum desleixo.  Mas aqui no blog eu vou postar mesmo rascunhos meus.  Penso que uma das coisas legais – há várias, dia desses escrevo sobre isso – de se ter um blog é poder postar textos assim meio desleixadamente mesmo, quem sabe como uma espécie de aquecimento para o que depois pode vir a ser propriamente publicado em livro.  E só isso já dá pano pra muita reflexão entre, por exemplo, a palavra impressa e a palavra virtual.  Mas poder postar meio que rascunhos (de autoria própria e numa qualidade que se possa julgar minimamente aceitável) acho que também implica uma atitude afirmativa, ainda que irresponsável, que se justifica do seguinte ponto de vista: desconfio que tenho mais leitores aqui do que aqueles que leram ou lêem  meus livros.  E há sempre a esperança e a possibilidade de esses leitores discutirem, comentarem, criticarem pra valer os rascunhos que aqui estejam postados.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

OS QUE VOAM

           No céu, no seu azul de dia claro, não enxergo trânsito.  De noite indiferente sei que há vez por outra uma luz que pisca  lá por cima e raro volto os olhos: só o ruído, nem a sua fonte.  Muito menos trânsito. No claro do dia percebe-se que bem mais baixo do que em todo aquele azul voam os que voam, cujo vôo mal percebemos, eles não fazem ruído.  Suas asas podem nos roçar, mal vemos, mal vemos as asas, apenas sempre soubemos que são asas, sempre intuí que seriam asas. Grandes poetas e também poetas sem muita imaginação deleitam-se com o voar dos pássaros (Cabral preferia os fios de cobre aos pássaros). Diante de nós voam os pássaros e mais imperceptíveis ainda voam os insetos.  Imperceptível esse trânsito, o quanto ele é intenso, intenso trânsito de insetos.  Surpreende que não haja colisões.  Ou que delas não saibamos. Ou não as percebamos. Os documentários sobre a vida animal os captam com suas lentes em múltiplas tomadas.  Me ponho às vezes diante da janela e a depender da angulação da luz solar rebatida sobre o verde do fundo deleito-me com eles, com os que voam.  Me surpreendi a primeira vez que os captei.  Mas posso garantir: o trânsito é enorme a poucos metros de nós, acima ou mesmo à altura de nossos tufos de cabelo, os pássaros de que os poetas gostam e que parecem voar ao léu, garanto: não voam ao léu nem se preocupam em desenhar cromos que nos encantam quando os percebemos contra o céu.  O vôo é luta incessante atrás de insetos e é a vida feroz da caça, do trânsito – rotas aleatórias da sobrevivência.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Das odes de RICARDO REIS



Ouvi  contar que outrora, quando a Pérsia
Tinha não sei qual guerra,
Quando a invasão ardia na Cidade
E as mulheres gritavam,
Dois jogadores de xadrez jogavam
O seu jogo contínuo.

À sombra de ampla árvore fitavam
O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus
Momentos mais folgados,
Quando havia movido a pedra, e agora
Esperava o adversário,
Um púcaro com vinho refrescava
Sobriamente a sua sede.

Ardiam casas, saqueadas eram
As arcas e as paredes,
Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos,
Traspassadas de lanças, as crianças
Eram sangue nas ruas...
Mas onde estavam, perto da cidade,
E longe do seu ruído,
Os jogadores de xadrez jogavam
O jogo de xadrez.

Inda que nas mensagens do ermo vento
Lhes viessem os gritos,
E, ao refletir, soubessem desde a alma
Que por certo as mulheres
E as tenras filhas violadas eram
Nessa distância próxima,
Inda que, no momento que o pensavam,
Uma sombra ligeira
Lhes passasse na fronte alheada e vaga,
Breve seus olhos calmos
Volviam com atenta confiança
Ao tabuleiro velho.

Quando o rei de marfim está em perigo,
Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças?
Quando a torre não cobre
A retirada da rainha branca,
O saque pouco importa.
Quando a mão confiada leva o xeque
Ao rei do adversário,
Pouco pesa na alma que lá longe
Estejam morrendo filhos.

Mesmo que, de repente, sobre o muro
Surja a sanhuda face
Dum guerreiro invasor, e breve deva
Em sangue ali cair
O jogador solene de xadrez,
O momento antes desse
(É ainda dado ao cálculo dum lance
Pra a efeito horas depois)
É ainda entregue ao jogo predileto
Dos grandes indif’rentes.

Caiam cidades, caiam povos, cesse
A liberdade e a vida,
Os haveres tranqüilos e avitos
Ardem e que se arranquem,
Mas quando a guerra os jogos interrompa,
Esteja o rei sem xeque,
E o de marfim peão mais avançado
Pronto a comprar a torre.

Meus irmãos em amarmos Epicuro
E o entendermos mais
De acordo com nós-próprios que com ele,
Aprendamos na história
Dos calmos jogadores de xadrez
Como passar a vida.

Tudo o que é sério pouco nos importe,
O grave pouco pese,
O natural impulso dos instintos
Que ceda ao inútil gozo
(Sob a sombra tranqüila do arvoredo)
De jogar um bom jogo.

O que levamos desta vida inútil
Tanto vale se é
A glória, a fama, o amor, a ciência, a vida,
Como se fosse apenas
A memória de um jogo bem jogado
E uma partida ganha
A um jogador melhor.

A glória pesa como um fardo rico,
A fama como a febre,
O amor cansa, porque é a sério e busca,
A ciência nunca encontra,
E a vida passa e dói porque o conhece...
O jogo do xadrez
Prende a alma toda, mas, perdido, pouco
Pesa, pois não é nada.

Ah! Sob as sombras que sem qu’rer nos amam,
Com um púcaro de vinho
Ao lado, e atentos só à inútil faina
Do jogo de xadrez
Mesmo que o jogo seja apenas sonho
E não haja parceiro,
Imitemos os persas desta história,
E, enquanto lá fora,
Ou perto ou longe, a guerra, a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença.

                        Ricardo Reis
                        (in: Fernando Pessoa: Obra poética. Aguilar, 1965)