domingo, 26 de março de 2017

NUNCA ESTIVEMOS TANTO EM GOTHAM CITY

 
foto de Rui Mendes
        
        História, crianças:  Setembro de 1969. Para a apresentação da canção “Gotham City”, de Jards Macalé com letra de Capinam, no IV Festival Internacional da Canção, (TV Globo), sobem ao palco do Maracanãzinho o próprio Macalé, completamente desconhecido do grande -  e mesmo  do pequeno – público,  mulato barbudo, óculos fundo de garrafa, vestindo uma bata que mais parecia um camisolão; além dele,  os quatro integrantes da banda de rock Os Brazões, sem camisa, corpos pintados de urucum, com colares em torno da testa, cheios de guizos ruidoso; e mais  ninguém menos que Naná Vasconcelos – parece que incorporado à última hora à troupe – que saltava pelo palco e comandava as tumbadoras.  A orquestra atacou com a solenidade possível – o Padrão Globo começava a sua hegemonia – a introdução, um pastiche irôonico do prefixo de abertura  do seriado Batman em arranjo a cargo de Rogério Duprat.  Logo a seguir as tumbadoras de Naná e as guitarras distorcidas dos Brazões entravam para uma platéia cujo aturdimento chegaria ao ápice nos versos do refrão berrados por Macalé e ecoados pelos músicos:  “CUIDADO! Há um morcego na porta principal/CUIDADO! Há um abismo na porta principal!!!” 
         
            A letra de Capinam era a seguinte:

Aos 15 anos eu nasci em Gotham city
Era um céu alaranjado em Gotham city
Caçavam bruxas no telhado em Gotham city
No dia da independência nacional

Cuidado! Há um morcego na porta principal
Cuidado! Há um abismo na porta principal

Eu fiz um quarto quase azul em Gotham city
Sobre os muros altos da tradição em Gotham city
No cinto de utilidades as verdades:  Deus ajuda
A quem cedo madruga em Gotham city

Cuidado! Há um morcego na porta principal
Cuidado! Há um abismo na porta principal

Só serei livre se sair de Gotham city
Agora vivo o que  vivo em Gotham city
Mas vou fugir com meu amor de Gotham city
A saída é a porta principal

Cuidado! Há um morcego na porta principal
Cuidado! Há um abismo na porta principal

No céu de Gotham city há um sinal
Sistema elétrico e nervoso contra o mal
Meu amor não dorme, meu amor não sonha
Não se fala mais de amor em Gotham city

Cuidado! Há um morcego na porta principal
Cuidado! Há um abismo na porta principal

       Ouça-se a gravação em "ambiente de festival":




Estava ouvindo esta semana mesmo e comentando com amigos e os filhos  essa gravação  ao vivo da apresentação de “Gotham Ciy”.   Há tempos não a ouvia,  a performance eu vi pela TV nos meus 13 anos, entre aturdido e fascinado (é o que Hugo Friedrich chama de “efeito de dissonância) pelo que se passava naquele palco. E não há como deixar de anotar (com auxílio do livro de Zuza Homem de Mello, A era dos festivais: uma parábola)a apresentação de Jards Macalé veio logo na sequência da também atordoante "Charles Anjo 45", com Jorge Ben e o Trio Mocotó.  E foi o festival que teve ainda a deliciosa "Ando meio desligado", dos Mutantes - claro que nenhuma delas recebeu premiação expressiva.  E o que se passava naquele palco apenas  nove meses depois da decretação do AI-5, abrindo o mais terrível período de repressão da história brasileira do século XX , precisa ser dimensionado entre os efeitos traumáticos  dos mais radicais experimentos a que o acirramento do final do  Tropicalismo havia levado a (de)composição de canções – para falar com Tatit – no ano anterior:   naquele palco toda a performance de “Gotham City”  inscreveu-se     no âmbito de uma estridência excessiva que impedia – deliberadamente, diga-se -  sua boa recepção pelo amplo público fora do círculo restritíssimo de iniciados nas discussões envolvendo vanguarda, canções, tropicalismo e, sobretudo, as relações entre arte e política. Não havia como compreender o óbvio:  “há um morcego na porta principal.”  Batman, o justiceiro, quem é ele, quem era ele, quem eram  nossos morcegos justiceiros, que justiça defendiam, já que se queriam  crer onipresentes a partir do sinal nos céus de Gotham City?  Seria o vero custódio ou seria  o que não poderíamos em hipótese alguma deixá-lo escapar?  Não importa, a pergunta é a essa altura retórica, nós o deixamos escapar e não poderia: lá está(va) ele, na porta principal, e não é/era o corvo sobre o busto de Palas da sala escura do poeta. Éra o Estado terrorista, o que se valeu do ato arbitrário para prender, fazer desaparecer, saquear, seqüestrar, matar, na certeza da impunidade.  Que importa a história, que importa um nome a zelar velar  se as balsas cheias dos despojos das cidades saqueadas não interrompem sua furtiva viagem noturna?

         Estamos hoje, 48 anos depois, capazes de enxergá-lo? Aí estão os guardiões simbólicos da ordem,  e todos eles  valem-se do que velam:  caçam bruxas a pretexto de resguardar dias santificados pelo Estado que se faz de laico, enquanto esperam que cumpramos nossos papéis acautelados e amordaçados como múmias atadas em clichês: não pense em crise, trabalhe, mulher vá ás compras e traz o orçamento que eu libero as verbas, “Deus ajuda a quem cedo madruga”.  Certamente não foi à toa que Capinan, o letrista de “Gotham City”, havia escrito antes mesmo, com 20 e poucos anos,  o mais incisivo poema político de toda a década de 60, pouco depois do golpe de 64,   “Inquisitorial”, a que devemos sempre voltar 
(cf. aqui:  http://robertobozzetti.blogspot.com.br/2012/02/jose-carlos-capinan.htmlAli se lê entre tantas passagens admiráveis:

“Pergunto: tu, ante o presente,
Como te defines ao que será passado?

Há urgência de resposta, antes que a noite chegue.

Carregarás fardos para evitar
(Repara que o rio corre e a noite vem como onda)
Ou deixarás que apenas sejamos o tempo
E irreparável memória?

(...)

Ah, como louvamos o tempo
Que nos põe distantes,
Só importando em memória
A nossa escolha e saída.”

Pois aqui estamos nós hoje ante a gravidade do momento presente.  As redes sociais brincam que na verdade são vários morcegos e de fato são.  Mas o peso do tempo é grave.

         Garotos:  José Guilherme Merquior dedicou ao primeiro livro de Capinam, Inquisitorial, uma alentado ensaio, no qual anota com preciosa precisão sobre a dicção do poeta: fala Merquior em uma gravidade sem tristeza. Espantoso que Capinam fosse pouco mais do que um garoto – tinha 25 anos - a despertar a atenção de um crítico da importância de Merquior?  O texto vem assinado “Paris, abril de 1968”.  Merquior tinha 27.  Às portas do maio de 68, Paris.  Tempos.




Na mosca, Merquior: O poeta letrista fala da gravidade do que ocorre no mundo (o plano do conteúdo) em uma elocução (o plano da forma) grave:   seu verso é fluido,  mas tem peso – o que significa precisa e metaforicamente: não afunda - , o que responde, de sua parte, por sua não tristeza – não é empolado, não é pedante, pernóstico ou perdido em retoricismos.  Que se recordem algumas de suas letras: “Jogaram a viola no mundo/mas fui lá no fundo buscar” ou aquela admirável esconjuração da morte: “gritando para assustar a coragem da inimiga”, ou ainda “não deixar nada mais do que as cinzas de um cigarro”, sem falar na sublime síntese em que define o desejo: “ele pesa sobre a terra mais que a lei da gravidade”.  Pois em “Gotham City” essa gravidade não dorme:  a base da letra é a métrica dodecassilábica (com variantes, principalmente para a articulação com a melodia, como de resto é sempre nas canções bem resolvidas) e a extensão e gravidade dos versos é o penhor da espalhafatosa (mas coerente com o momento)  performance de seu parceiro Macalé: “Só serei livre se sair de Gotham city/Agora vivo o que  vivo em Gotham city”.  A “gravidade sem tristeza” para definir a dicção de Capinam é um admirável achado de Merquior, sem mais.



Em apresentações mais recentes, Jards Macalé tem cantado “Gotham City”.  Mudou a performance, ficou mais afim a seu histrionismo de malandro-porraloca-letrado-culto-carioca, a pedir que o vaiem ao final de cada apresentação.  Se perde em gravidade, a performance reveste-se  de sentidos matreiros que atestam a permanência de alguma forma do estado geral de coisas flagrado na canção.  Confira-se aqui nesta apresentação em São Paulo, 2015: 



O abismo é inquietante.  Aporia, salto.  Ei-lo.  É a saída, sendo ao mesmo tempo o lócus do morcego. Não saímos de Gotham City, ainda vivemos o que vivemos em Gotham City, é absolutamente urgente que isso fique claro.  Nós não enfrentamos o morcego, ele é o poder do banditismo feito lei, nós sabemos disso, como sabemos o que esses justiceiros fizeram todos esses anos, em que os que viveram felizes em Gotham City habituaram-se chamar de “terrorista” uma mulher que teve a coragem de pegar  em armas e rumar para o abismo. Melhor dizendo:  chamaram – e chamam – de terroristas todos os que tiveram a coragem de lutar contra o arbítrio, ainda que alguns tenham se beneficiado – e continuem se beneficiando – disso. O fato de Dilma Roussef não constituir um caso isolado atesta essa funesta permanência.

         É preciso fechar estas descosturadas anotações  pedindo desculpas pela magnífica foto (infelizmente não achei os créditos) de tão medonha criatura.  Melhor tradução para o que tentei dizer não há.


quarta-feira, 8 de março de 2017

TRÓPICOS PARA HOLANDÊS VER COMO BRASILEIRO VÊ


           Este texto,  “Grandeur en misère van het tropicalisme”,   foi publicado na revista holandesa DE GIDS em seu número de janeiro/fevereiro deste ano (o link vai abaixo).  A revista, em formato tablóide, formato  de tão significativa memória para quem foi leitor da imprensa alternativa durante a ditadura implantada com o golpe de 1964,  é a mais antiga revista dedicada à literatura em terras holandesas, tendo sido fundada em 1837, ou seja, tem 180 anos de existência.   Em seu  expediente, aliás,  assim está escrito (aqui, um viva ao Google Translator com o auxílio luxuoso do discernimento): “ De Gids [‘O Guia’] é a mais antiga revista de cultura literária e geral dos Países Baixos e uma das revistas deste tipo estabelecidas  há mais tempo no mundo. O Guia concentra-se em literatura, filosofia, sociologia, arte, política, ciência, história; em suma, tudo o que é interessante, desde que inédito. A revista é publicada bimestralmente e traz ensaios sobre temas atuais políticos, históricos e culturais, prosa holandesa e traduzida, e poesia estrangeira.”
         Quando o antropólogo Matthjis van de Port (atualmente radicado na Bahia, onde estuda cultura e religiosidade popular e faz pequenos e valiosos  curta-metragens sobre esses assuntos) e o editor, o romancista e ensaísta Edzard Mik,  me convidaram para integrar um dossiê sobre os trópicos que a revista lançaria no número(que acabou levando por título “Trópicos?  Os trópicos não existem mais”),  o que eles me pediram foi um texto que abordasse  a identidade possível de uma reflexão sobre a cultura tropical feita por um “nativo”, pois a visão européia,  e holandesa em particular,  sobre a cultura tropical  já era familiar a eles e já estava bem clicherizada (e ambos me citaram o clichê “não existe pecado ao sul do Equador”).  Falaram-me para eu pensar em algo como “usos e abusos da idéia de tropical”.  Foi precisamente este o mote.
         Me disseram ainda: você pode optar por um ensaio ou por uma abordagem poético-literária do tema, a revista gosta e investe nessas hibridizações de gênero.  E aqui aconteceu algo curioso.  Quando perguntei que espaço eu teria e soube que seriam três páginas, resolvi que seria impossível um ensaio sobre o assunto em três páginas (aliás, qualquer ensaio sobre qualquer assunto não dá para ser em três páginas).  Assim, optei  pela abordagem poético-literária.  Depois eu soube que nos referíamos a espaços diferentes; eu raciocinava na nossa formatação acadêmica  habitual, A 4, o editor me falava em espaços referentes às páginas da revista, o que me proporcionaria na verdade 7 ou 8 páginas.  Mas disso eu só soube com o trabalho já bem adiantado, e estava gostando de poder lidar com a imaginação desataviada, além do que sabia que a revista gosta desses textos livres.  E assim segui. E, para minha alegria, o texto foi bastante bem recebido, depois de traduzido (imagino  a trabalheira!) por Ane Lopes Michielsen.
         Em suma: isto não é um ensaio.  Como defini num certo momento na troca de correspondências é  uma “fantasia sobre os devaneios e pesadelos de um país tropical”.  O texto, que começa citando, sem mencionar,  o Catatau,  de Leminski  também não é uma reflexão, ou sequer um devaneio, sobre o tropicalismo, como a programação visual que acabou tomando na revista sugere.  Mas não tomo mais tempo aqui não.  Encaminho vocês, leitores, ao texto.  Em tempo:  a versão da revista online não está com o meu texto disponível: a íntegra da revista é da edição impressa; aos poucos é que vão sendo disponibilizados todos os textos online.





FANTASIA SOBRE OS DEVANEIOS E OS PESADELOS DE UM PAÍS TROPICAL

                                           (Sobre usos e abusos de tropical)


1.
Renatus Cartesius pirou e antes de expirar sonhou o horror da natureza que o vácuo tenta encher em vão;  na verdade, dizendo melhor,  Cartesius vivenciou-o.   Parece que passara boa parte de sua  vida,  até os 40 anos,  obcecado com as questões relativas à produtividade da dúvida, é possível até que tenha escrito  um discurso sobre o método, alguns frangalhos  de latim parecem atestá-lo, talvez tivesse até, quem sabe, chegado a bom termo em sua enorme empreitada,  mas ao  aceitar o convite, numa manhã de 1636,   para vir aos trópicos com o Príncipe Nassau,  acabou por desembarcar  e finalmente se estabelecer por aqui,  dedicando-se competentemente a afazeres dispersos mas muito profícuos,  ainda que um tanto obscuros, adquirindo ao fim certa fama, certa notoriedade – embora não obtivesse reconhecimento oficial, o que impediu de ser a sua glória –  ao  desenvolver um tipo de atividade lúdica valendo-se  uma pelota feita de couro de paca, num afã que espantava e provocava o riso de seus contemporâneos mas  que séculos mais tarde os ingleses patenteariam,   e que  se expandiria pelo mundo como o  jogo dos pés,  do pé na bola,  o balípodo, o ludopédio.  Esse jogo concretizou todas as projeções sonhadas por Cartesius na conjugação entre a geometria e a álgebra, as coordenadas longitudinais e latitudinais no retângulo euclidiano em direção a sua superação – para o quadrado já havia o xadrez, em concentração e fúria equivalentes, mas em velocidade muito mais lenta.  Foi depois, muito depois, que vieram Rinus Michels, Johan Cruyff  e Romário – e  assim se pode  resumir boa parte de uma longa história.

2.
Frequentemente sonhamos que a tudo o trópico devora,  em sua entropia de plantas carnívoras  de raízes semoventes.  A síntese a que chegamos tantas vezes não passa em absoluto pela análise: fica brilhando, zênite sem nadir.  Assim nos desentendemos, assim pensamos que nos entendemos, assim pensamos que o Outro nos entende.  E somos ficção, o sumo dela. 

3.
As dualidades nos constituem perversamente:  nós as vemos  como contrastes, assim como transformamos toda diferença em oposição, todo signo em vetor sequioso de seu oposto:  Euclides da Cunha falou em litoral e interior, Oswald de Andrade  em floresta e escola, os tropicalistas em formiplac & céu de anil, tudo sendo a herança barrocatólica que poucas vezes recebeu a profundidade do corte sacrificial e redentor: mas momentos  houve de  exceção,  anotando aqui, entre poucos outros:  Euclides, por exemplo, deveria ser mais lembrado não pela profecia que registrou, da boca do monumento que criou com  Antonio Conselheiro:  “o mar vai virar sertão o sertão vai virar mar”, mas por seu próprio dilaceramento como intelectual,  que abjurou seus equívocos de Bildung  para engrandecer  a humanidade com uma  obra assombrosa de  denúncia e invenção lingüística.  Machado de Assis, pouco dado a explicitar contrastes, o fez como se fosse a vingança suprema de seu obsessivo macho a incriminar a mulher com o epíteto falsamente doce da cigana oblíqua e dissimulada – na verdade,  quem se vingava da estupidez dominante do macho era  Machado, o que demorou pelo menos uns 50 anos para que se começasse a perceber: em Machado o contraste não se externa, mas ali está, zênite sem nadir: seus Bento Santiago e Brás Cubas são os estúpidos postos no ponto cego da estupidez circundante, por isso invisíveis.  Uma das nossas apostas otimistas  é que o Brasil ainda possa a vir a ser uma nação a altura de honrar o nome de Machado de Assis.  E de Euclides da Cunha.

4.
Sabia Oswald, instruído por Blaise Cendrars: “Tendes as locomotivas cheias, ides partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O menor descuido vos fará partir na direção oposta ao Vosso destino.” Carregamos ainda hoje a dúvida de saber se já  não cometemos grandemente o tal menor descuido.   Nesse caso, nosso destino terá sido jogado, como aconteceu com Macunaíma, no sumidouro da Uiara, só nos restando desde então, parece,  repetir sua narrativa na voz do papagaio.  Oswald e Mário de Andrade sofreram os trópicos com sinais trocados – e para acrescer a este drama, outro: sinais por vezes  intercambiáveis.

5.
A dualidade flagrada por Euclides da Cunha nos constitui ainda numa outra dimensão , a de um desengonço continental:  como periferia, buscávamos até a segunda guerra a Europa francesa e cruzávamos os mares de volta para lá estar, como cruzamos hoje os céus para ir aos USA, mas ignoramos quase completamente nossos vizinhos tropicais:  Peru, Bolívia, Colômbia, Venezuela...nomes da  América que nos cerca, exótica,  estranha e longínqua,  que fala outra língua, o castelhano tão distante do português –  mentira de dimensão andina,  que gostamos de repetir  – preferíamos no passado maltratar o perroquet francês, hoje até aprendemos o inglês, o que também não importa muito, valendo muitas vezes só  a sonoridade e o embromation.

6.
Antes que dormíssemos apaziguados pelo lusotropicalismo freyreano, a antropofagia oswaldiana nos manteve aberto pelo menos um dos olhos: enquanto o outro, pálpebra cerrada,  foi para a  anunciação da Virgem sobre todos os outeiros,  a pupila vigilovoraz  fixou-se no bispo Sardinha.  Saía de cena o bom selvagem,  arrombava a festa o mau selvagem.   São histórias do último século que passou – passou, mas não é tão certo que tenha acabado de todo.  Talvez o nosso exílio de nós mesmos continue, como em célebre primeira página nos  assinalava Sérgio Buarque de Holanda.

7.
O tropical frondoso, pluviante e flutual,  geograficamente situado logo abaixo do equatorial amazônico,  parece por vezes querer dar o  tom de seu exclusivismo no tropical Brasil.   Mas não é assim. Esse universal, como todo universal, não resiste a que se cutuque por baixo.   Não há apenas Jorge Amado e José Lins, há Graciliano Ramos e sua ascese não religiosa, recusando o “resto de janta abaianada”, a mesma recusada por João Cabral.  Esse tropical é milenarista, árido, em ascese comunista ou religiosa, transgressora ou conservadora, força tropical semidesértica, da carência, da pedra, do estoicismo e do messianismo, da moral rígida a vigorar entre as festas do calendário cristão.  A matriz euclideana (da Cunha) deixa-se ver em tudo isso, em tudo  o que há de vigoroso  em Elomar Figueira Mello, em Ariano Suassuna, em Luiz Gonzaga, em Glauber Rocha. Encontrando-se com a  verticalidade setecentista do  Aleijadinho chega às frondes de Guimarães Rosa, mergulha nas montanhas, grutas e igrejas de Minas, desperta a lâmina assombrosa da voz de Milton Nascimento, a lâmina seca da poesia de Drummond, as plantas alucinógenas dos Murilos, Mendes e Rubião.  E aqui já estamos entrando nas cidades, na vocação urbana e urbanística de Minas, rara entre nós, que acabou por resultar em JK e Niemeyer. Como antes a Mauritsstadt de Pernambuco não deu apenas a pedra de João Cabral, deu dele mesmo o rio e o mangue, como de Alceu Valença, como da Nação Zumbi, na periferia de Recife e Olinda.


8.
Mas antes é preciso considerar o mais lembrado:  o tropical mais permeável ao exótico, mais permissivo e complacente. Do húmus, dos liquens, dos manguezais, pantanais – Manoel de Barros! – e litorais. Estereótipos de outros Caribes, de outros Hawaiis, que encontraram no gênio de Dorival Caymmi quem os eternizasse – o que obviamente implica anular sua estereotipia –  e na potente sabedoria de Antonio Risério quem o balizasse e mostrasse o nexo que a partir daí se construirá para o urbano do pós-guerra, para além, novamente, da compreensão dos sobrados e mocambos de Freyre.  Esse tropical dá em Jorge Amado também, claro, em João Ubaldo, bem como resulta no palimpsesto onde foram renitentemente apagadas e reescritas e, mais recentemente, gravadas fonomecanicamente – e nem sempre lidas ou ouvidas, o que é uma das dimensões da nossa face trágica -  os veios e as vozes negras e indígenas, de Solano Trindade, Abdias, Clementina de Jesus, Juruna e Terena. Quilombos e MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). 

9. 
Melhor talvez do que ninguém, é Caetano Veloso quem sempre chega  às iluminadas sínteses do muito que somos, do que precisamos ser, incluído aí o desalento da hipótese de que não venhamos a ser jamais: “Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína.”  Quando andamos por nossas periferias, olhamos o casario dos moradores que a muito custo conseguem levantar algumas paredes, olhamos para as escolas que ali subsistem, os templos religiosos que ali se esgueiram... ou vamos para as construções suntuosas, erguidas com o dinheiro público para glória de nossos faraós, comerciantes e banqueiros ou  para os magníficos eventos de índole esportiva e midiática, sejam viadutos, arenas... tudo parece assim, ruínas, ruínas, ruínas que não chegaram a ser construções.  Presídios de nossas almas. Os shoppings, não.  Estes em geral, intactos.  Como as imensas igrejas marmorizadas.

10.
Olhar para a metrópole hoje exige o esforço de  tentar vê-la pelas lentes do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto). Fenômeno recentíssimo de organização e politização de trabalhadores despossuídos, estes, que estão em sua origem,  vêm de longe em tempo e espaço: Quilombos e MST, por certo, mas também o processo de gentrificação que está na base do Rio de Janeiro de Lima Barreto, que se haussmannizou desumanizando-se há mais ou menos um século. Hoje explodem arsenais entre o mar e  os morros. Baionetas calam descontentes.  O crime organizado empreende um êxodo rural às avessas.

11.
Mas que não se perca de início o fio do que de melhor a cultura – e dentro dela  a arte –  burguesa e das classes médias urbanas logrou  obter.  A cidade dos modernistas, a rigor, não era ainda a cidade que sairá do processo de  industrialização levado a cabo por todo o período getulista – de 1930 a, com um breve interregno, 1954.  São Paulo passa a existir de fato aí, a partir desse período, em velocidade vertiginosa,  para se tornar cidade a mais populosa das Américas, uma das dez maiores do mundo. Em diferença marcante, o Rio, Salvador e Recife abrigavam em seu seio  tradições culturais enraizadas desde o século XVI – São Paulo fez-se sobretudo de trânsito e trocas. Seja como for, mesmo nos paulistas  Mário e  Oswald, e assim também  em Bandeira, recifense que se radicou no Rio,  é visível nas suas obras a permanência de passados de certa forma nostálgicos em construções de memória e de história, mesmo em se tratando de passado não totalmente vivenciado por eles.  É só com a poesia de Drummond que o urbano despede as últimas nostalgias do passado rural. E é com a prosa de Clarice Lispector também, um pouco mais tarde. Sem reminiscências nostálgicas, sem exteriorizações ou anotações tropicais, sequer pelo avesso,  em Clarice emerge  a voz urbana da mulher.  Em Drummond não há nostalgia,  mas há as marcas quase raivosas  da passagem do indivíduo do interior do país para o urbano, do recolhimento opressivo mineiro para o espanto atordoado do litoral carioca.  É o Rio, sem dúvida, que acolherá essa poesia, como acolhe hoje a estátua do poeta à beira mar em Copacabana.  A poesia de Drummond foi acolhida de inicio pelos dois grandes artífices do construtivismo urbano na portentosa música mediatizada que se fez a partir da década de 1960, sobretudo no Rio,  em torno  de Antonio Carlos Jobim e João Gilberto.  Aos quais se deve acrescentar Vinícius de Moraes, habitué da alta poesia como seu mestre e confrade  Drummond. A bossa nova era ponto de chegada e partida:  ali desembocou  a tradição do samba e do choro, gêneros musicais populares criados a partir da matriz das musicalidades negro-mestiças cariocas desde o  começo do século XX.  No meio do caminho o encontro com a lírica modernista culta, de fundo neo-romântico,  com acentuada consciência de construção,  em Vinícius.  Musicalmente se deu o mesmo, com Jobim, maestro onde desaguavam Debussy e Villa-Lobos além – e por causa – do  ímpeto zen-provocativo de Koelreutter; daí  a bossa nova partiu para o mundo, conquistou o mundo, influenciou o jazz, que ela mesma,  em low profile, com a voz sussurrante e o violão em surdina de João,  havia devorado e depurado em suas entranhas discretamente antropófagas, como recomendava e profetizava Oswald.  Biscoito fino para as massas. Nossa alma tropical cantava ao ver o Rio de Janeiro. Como sempre, em nossa tradição poética sentimental e sublimadora, onde se lê “alma”, leia-se “corpo”.  Rio de Janeiro, cidade mulher.  Lirismo de homens machos.  Másculos.

12.
Mas de repente foram os bárbaros que vieram.  Porque, como no poema de  Kaváfis, já estavam entre nós.  No lirismo misógino popular, revestido de admoestações morais de duplo sentido e de sensualidade explícita e matreira.  A mulher que não tem decoro.  A mulher que gosta de apanhar.  A mulher que é decorosa porque sabe que apanhar do seu homem é a prova de amor.  O homem que sabe respeitar a mulher do outro homem  e (por isso) bate só na sua.  Nos infinitos  entrecruzamentos sócio-psicanalíticos aí implicados, uma mitopoética de sangue, beijo e mordaça escorre do lirismo dos sambistas, Noel Rosa&Ismael Silva&Wilson Batista, das vielas das favelas, das ruas dos subúrbios, dos lares da falsa moralidade pequeno-burguesa do teatro de Nelson Rodrigues, das taras de Dalton Trevisan, do hiper-realismo de Rubem Fonseca, do bas-fond de João Antonio.  O que veio aos poucos se adocicando, como nos engenhos de Gilberto Freyre, foi-se solidificando em duros tijolos que o método Paulo Freire tentou ensinar a empilhar para erguer lares de libertação.  Mas o conservadorismo vencedor do golpe em 64 convenceu que os tijolos eram de rapadura, doces.  Ou pastéis de carne humana com caldo de cana caiana. Trevas da alma lírica brasileira, dirá de novo Caetano, mulheres de coronel, dirá Gilberto Gil.  Perdoa-me por me traíres, dirá Chico Buarque.  As coisas estão no mundo, só que é preciso aprender, dirá Paulinho da Viola. Mas este já será um outro momento.

13.  
Será o momento em que os tropicalistas, equipados com altas doses de coragem e potência inventiva musical e poética – IN-VEN-ÇÃO -, a reivindicarem para si o adjetivo radical  “tropical” ensinaram várias lições básicas de sobrevivência na metrópole.  Nos vãos e desvãos das cidades, a partir de São Paulo, com o esteio trazido da vivência da Bahia e da “cidade da Bahia” (Salvador), aliados à vanguarda da Poesia Concreta do Trio Noigandres e da música contemporânea dos maestros paulistas além do rock de altíssimo calibre dos Mutantes, até  pode não ter sido o ensinamento para a vida empírica mais pragmático  em nossa  sociedade tropical sombria, mas foi a espessura de uma vivência artística que nos antenou e desprovincianizou, não sem pagar  alto preço, incluindo prisão e exílio, condenação pela  direita e desconfiança e desconforto para sempre incorporados pela esquerda, conectando-nos ao mundo contemporâneo, estética e politicamente – no sentido de politização do cotidiano: tarefa levada a cabo com pioneirismo e com o destemor de incorporar a discussão e as possíveis vivências diferentes de família, sexo, gênero, raça, drogas, suplementares a uma  arte ousada e libertária,  correndo sempre por entre escaramuças da vanguarda e do mercado: o pop na veia do mundo, a neo-vanguarda sem revival sacralizante.  Que heranças incorporar, que vivências recusar?  Saber separar o joio do trigo e tantas vezes aproveitar o joio. Exemplos?  Sobretudo o que sempre fora associado no gosto do receptor intelectualizado, por preconceitos classistas,  ao pior da indústria do entretenimento, o rock barato de Roberto & Erasmo Carlos, o sam(bluesrocksoul)BA de Jorge Ben Jor e Tim Maia, o cinema barato, “chanchada”,  paródico dos musicais hollywoodianos. Na estética tropicalista acentua-se ainda  o contraste – nisso ele é neo-antropófago, sim – entre o rural e o urbano, e o rural permanece (ou retorna), mas ora como lembrança nostálgica, ora como pesadelo de onde não conseguimos sair.

14.
Seria  esse o seu ponto fraco, apontado por um marxista agudo e inteligente como Roberto Schwarz.  Mas parece que teimamos em nos reconectar a pesadelos de que não conseguimos sair, dando um nó nas tripas do marxismo por mais inteligente que seja.  E o  rural, o arcaico, o errado serão o defeito de fabricação – Tom Zé! – perfeito para o que queremos.  Ou para o que quiseram os tropicalistas.  Reproposição da contribuição milionária de todos os erros, de que falava, outra vez, Oswald.   Guerrilha, luta armada contra marchas de famílias movidas por conservantismo cristão e medo de um comunismo caricato. Toques de recolher, cachorros mortos nas ruas, policiais vigiando. War, children, it was just a shot away, happiness was a warm gun,  era preciso estar atento e forte,  não tivemos tempo de temer a morte.

15.
Só nesta semana em que escrevo foram mais 99 mortos em massacres em dois presídios. A média nacional por presídio este ano já  é de 12 mortos.  Em 1992, na maior penitenciária de São Paulo, o Carandiru – hoje desativado – ,  uma invasão da tropa mais violenta da Polícia Militar para conter um motim resultou em 111 mortos. No presídio desta semana que teve 60 mortos, o comandante da PM disse não ter invadido para contenção do motim  para “evitar outro Carandiru”.  Ou seja, admitiu incapacidade de controlar suas forças de repressão. As autoridades dos dois estados onde ocorreram as matanças se eximem de responsabilidade, dizendo que se trata de “guerra de facções rivais”, como se não coubesse ao estado zelar pela segurança dos apenados.    Os números que apresento aqui  são oficiais, o que vale dizer: despertam sempre a suspeita de serem minimizados.  De qualquer forma, mais de vinte anos se passaram e prossegue o que estava no terrível rap-canção “Haiti”, de Caetano e Gil, de 1993: “mas presos são quase todos pretos/ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres/e pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos”.  O que ecoa também em “Diário de um detento” do extraordinário grupo paulistano hip-hop Racionais MCs: “Cachorros assassinos, gás lacrimogêneo.../quem mata mais ladrão ganha medalha de prêmio/o ser humano é descartável no Brasil/como modess usado ou bombril/Cadeia? Claro que o sistema não quis/esconde o que a novela não diz/Ratatatá! sangue jorra como água/do ouvido, da boca e nariz/O Senhor é meu pastor.../perdoe o que seu filho fez/morreu de bruços no salmo 23/sem padre, sem repórter/sem arma, sem socorro/vai pegar HIV na boca do cachorro/cadáveres no poço, no pátio interno/Adolf Hitler sorri no inferno!/o Robocop do governo é frio, não sente pena/só ódio e ri como a hiena/mas quem vai acreditar no meu depoimento?/Dia 3 de outubro, diário de um detento."  O descaso não é apenas por presos, como está no retrato de um Rio muito diferente daquele da bossa nova, num samba de 1987 de um dos mais caros filhos do movimento, Chico Buarque: “Rio de ladeiras/civilização encruzilhada/cada ribanceira é uma nação/à sua maneira com ladrão, lavadeiras, honra, tradição/fronteiras, munição pesada/São Sebastião crivado/nublai minha visão/na noite da grande/fogueira desvairada.”  Recuar no tempo a procura de monstruosidades e seus testemunhos não é difícil.  Difícil é lidar com o lado sombrio da “alma brasileira”, que não consegue superar os binarismos maniqueístas mais corriqueiros e dar um passo mínimo em direção à dialética.  Renatus Cartesius piraria de vez em travar contato com nossa deriva relativista em direção desembestada ao absoluto obscurantismo. Tantas tradições religiosas com o vigor do politeísmo africano vicejaram por aqui e se dobraram à intolerância neopentecostal que  ocupa cada passo e nos espreita de forma a cada dia mais ameaçadora.

16.
O tropical pantaneiro da poesia  de Manoel de Barros parece estar com os dias contados,  condenado aos campos de grãos transgênicos do agronegócio.  Os avanços sociais dos governos de Lula & Dilma não resistiram às sanhudas investidas conservadoras de sempre e foram a nocaute, menos por seus erros – que foram muitos – e muito mais por seus acertos, poucos mas decisivos,  de inclusão social.  O Congresso que assim selou  nossa sorte, afastando a presidenta legitimamente eleita e contra a qual nada se comprovou de desabonador, o fez numa indescritível sessão na qual imperou a grotesquerie mais abusiva, mais cínica:  votaram pelo impeachment, com os discursos demagógicos mais inacreditáveis em seus fáceis efeitos melodramáticos, personagens  políticos sobre os quais pairam suspeitas e mesmo  sérias acusações de lenocínio, pedofilia, tráfico de drogas e de gente, trabalho escravo, apropriação indébita de propriedades, malversação de dinheiro público, falências fraudulentas, extermínio de pessoas, estelionato, além de muitos serem  adúlteros contumazes, homossexuais homofóbicos, apologistas da tortura e de torturadores.  E o fizeram em nome de Deus, da pátria e da família, valores supremos para resguardar a moralidade pública.  O pesadelo tropical, contraluz da euforia trágica tropicalista, prossegue.

17.
Nosso sumo não é ficção.


(originalmente em https://de-gids.nl/2017/no1