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terça-feira, 26 de maio de 2015

PAULO MENDES CAMPOS


 
MOSCOU-VARSÓVIA
(26 de maio de 1956)

 
 
Se este avião caísse, crispado entre os ouros, as copas e as espadas eu ficaria; sarrafos nas pálpebras, para que se mantivessem abertas durante o incêndio, colocaria;

 
Se este avião caísse, as madrugadas de meu filho de um terror violeta se elucidariam; na tarde calcinada, a sombra de minha mulher se inflamaria; minha filha não me encontraria deitado sobre o feno, escondido atrás da porta, acima dos cata-ventos com os braços carregados de bonecas; mais do que a minha garra em um livro e um lírio não encontraria; um gesto no espelho, uma espátula de osso, um pensamento; 

 
Se este avião caísse, em uma esquina de Ipanema, eu nunca mais esperaria;

 
Se este avião caísse, só uma pessoa não diria “que pena” (a que caía e se esquecia e se consumia, e só se libertaria quando de todo caísse e se esquecesse e se consumisse);

 
Se este avião caísse, de mim o firmamento em torvelinho se afastaria; os mortos da Lituânia e da Masuria a mim viriam, e no silêncio rodeado de verdura me receberiam; soldado quase desconhecido, mãos desligadas do corpo – exangues e sem armas – ah, a terra de ninguém eu atravessaria;

 
Se este avião caísse, de arquitetar a condição de criatura um arquiteto a mais desistiria; certos de que outros chegarão a construir a humana arquitetura (o que se faz há muitos anos e se fará em um dia);  pousado sobre o meu peito o pássaro cruento do meio-dia; o criptógrafo egípcio afinal se explicaria; em fragmentos candentes, a minha carne emigraria; espantalho em farrapos, só o vento de leve me espantaria;

 
 Se este avião caísse, sob as arcadas do pátio a poça de sal se extinguiria; a minha túnica amarela entre os anjos se sortearia; sob as telhas dos dragões dourados, os seus flocos, indiferente, a paineira sacudiria;  na colina resplendente, quem soubesse ler, leria: “aqui pousou uma criança que quase nada compreendia”; até que outra morte nos separe, o meu nome no tronco se resignaria;

 
Se este avião caísse, este papel em cinzas arderia; a estrela rubra do poema nenhum jornal publicaria; fosse cair daqui a pouco, ainda assim o escreveria; a vida e a morte são as amantes, são a esposa, da poesia;

 
Se este avião caísse, os meus vizinhos compreenderiam; lembrando-se dos meus cabelos no elevador, uma intuição qualquer no ar lhes diria que só não fui um amigo por falta de tempo ou covardia; mas pode alguém perfeitamente amar o seu vizinho se apenas, grave, pela manhã lhe diz “bom dia”; e então, sentimentais e sem razão, de mim, coitados, se apiedariam; e de se sentirem tão sensíveis, em fino prazer espiritual tudo (de mim) enfim se acabaria;

 
Se este avião caísse, a música de meu apartamento ensurdeceria; os volumes nas estantes, de já não ter quem os lesse como eu os lia, pardos e fechados ficariam; outros mais sábios vir e servir-se poderiam; mas o meu jeito de ler e pensar desapareceria; no entanto, se este avião caísse, daquilo que é apenas meu a orgulhar-me não chegaria;

 
Se este avião caísse, já ninguém mais meditaria na ave que passou gemendo contra o vento na bruma fria; o segredo que não cheguei a tocar a ninguém mais preocuparia; só se a meu filho legasse a vocação da tristeza e o heroísmo da alegria;

 
Se este avião caísse, decerto me compadeceria dos que caíssem comigo sem a coragem da poesia; embora talvez fosse eu quem mais saudades levaria; poentes roxos de Minas, praias aéreas da Bahia; chapéu de palha de Leda, olhos castanhos de Lilia; pubescência de Teresa, experiência de Maria; prosadores da Irlanda, poetas da Andaluzia; Etna fumegando em Taormina, em Siena a Piazza della Signoria; manhãs de iodo na praia, noites etílicas de boemia;  bailarinas de Leningrado, gaivotas da Normandia; sorriso da menina, do menino a euforia; Wagner compondo o Parsifal, Nietzsche uivando em Sirls Maria; a mulher que foi comigo, a que não foi mas iria; tantas que, mais houvera, para que de vez caísse, pediria;

 
Se este avião caísse com ele cairia um homem que pelo menos entenderia a fábula da folha que se desprendeu e desaparecia; e assim seu coração na terra, no mar e no céu, como de triste e maduro caísse, não se surpreenderia, nem reclamaria; pois esse aflito coração, de ter amado e sofrido, na amplitude da morte se conformaria;

 
Se este avião caísse, em um domingo azul do mar um peixe até a pedra nadaria;  não encontrando o meu anzol, ao alto-mar regressaria; desse desencontro tecido de tão lindos equívocos, a sua carne se salvaria; e o domingo azul do mar ainda mais azul reluziria.
 

 
In: Fernando Ferreira de Loanda (Org.). Antologia da nova poesia brasileira. 2 ed. Orfeu, 1970.
 

quinta-feira, 6 de março de 2014

AH, UM SONETO... DE PAULO MENDES CAMPOS


AMOR CONDUSSE NOI AD UNA MORTE

 

Quando o olhar adivinhando a vida
Prende-se a outro olhar de criatura
O espaço se converte na moldura
O tempo incide incerto sem medida

As mãos que se procuram ficam presas
Os dedos estreitados lembram garras
Da ave de rapina quando agarra
A carne de outras aves indefesas

A pele encontra a pele e se arrepia
Oprime o peito o peito que estremece
O rosto o outro rosto desafia

A carne entrando a carne se consome
Suspira o corpo todo e desfalece
E triste volta a si com sede e fome.

 

            Poemas de Paulo Mendes Campos.  Civilização Brasileira/MEC, 1979.



Paolo e Francesca. Sergio Ferro

 

sábado, 25 de dezembro de 2010

IT'S BETTER TO BE HAPPY

Sentada às vezes sobre a relva boa,
Ia rever os álbuns de pintura,
Amava a criação e a criatura
Com seus olhos de amor que amar perdoa.

Se o relógio cantava no salão,
Levava susto e ria-se depois:
A manga é para mim, para nós dois
O roseiral, a rede, o sol, o pão.

Pela manhã, saltando na piscina,
Aos saltos acordava o sapo-boi;
E tempo-que-será, tempo-que-foi
Davam-se as mãos dançando na colina.

                               Paulo Mendes Campos