Mostrando postagens com marcador Manoel de Barros. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Manoel de Barros. Mostrar todas as postagens

domingo, 7 de dezembro de 2014

MANOEL DE BARROS



O MORTO

 I

A chuva lavou
As pessoas do morto
E lavou o morto
Com a sua fisionomia
De torto
E com seus pés de morto
Que arrastava um rio seco
E suas mãos de morto
Onde se dependurou
Insistente, um gesto oco.
À noite enterrou-se
O homem
Na raiz de um muro
Com sua roupa no corpo.
E a chuva regou no horto
Desse vitorioso
Homem morto
Enormes violetas
E uns caramujos férteis...
 
 
II

Veja esse morto como esgotou um por um seus segredos.
Sentando como um doutor
Veja que respeito nutre pelo silêncio...
Que morto!
Um piano dormindo no fundo de um poço
Não é mais cômodo que um homem morto num porto.
Veja que comodidade:
Ele não usará seus dedos nunca mais para pegar em moças...
Que morto!
 
 
Manoel de Barros. Gramática expositiva do chão (poesia quase toda). Civilização Brasileira, 1990.

 

domingo, 9 de junho de 2013

MANOEL DE BARROS


De RETRATO APAGADO EM QUE SE PODE VER PERFEITAMENTE  NADA

 

III

Chove torto no vão das árvores.
Chove nos pássaros e nas pedras.
O rio ficou de pé e me olha pelos vidros.
Almoço com as mãos o cheiro dos telhados.
Crianças fugindo das águas
Se esconderam na casa.
Baratas passeiam nas formas de bolo...
 A casa tem um dono em letras.
Agora ele está pensando –
            no silêncio líquido
            com que as águas escurecem as pedras...
Um tordo avisou que é março.

 

VII

O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa liberdade com a luxúria convém.

 

VIII

Nas Metamorfoses, em duzentas e quarenta fábulas, Ovídio mostra seres humanos [transformados em pedras, vegetais, bichos, coisas.
Um novo estágio seria que os entes já transformados falassem um dialeto coisa, [larval, pedral etc.
Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural –
Que os poetas aprenderiam – desde que voltassem às crianças que foram
Às rãs que foram
Às pedras que foram.
Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a errar a língua.
Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma nos mosquitos?
Seria uma demência peregrina.

 

 
                             In: Gramática expositiva do chão (Poesia quase toda). Civilização Brasileira, 1990

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

MANOEL DE BARROS

De MATÉRIA DE POESIA


Muita coisa se poderia fazer em favor da poesia:

a – Esfregar pedras na paisagem.

b – Perder a inteligência das coisas para vê-las.
            (Colhida em Rimbaud)

c – Esconder-se por trás das palavras para mostrar-se.

d – Mesmo sem fome, comer as botas.  O resto em Carlitos.

e – Perguntar distraído: – O que há de você na água?

f – Não usar colarinho duro. A fala de furnas brenhentas de Mário-pega-sapo era nua.  Por isso as crianças e as putas do jardim o entendiam.

g – Nos versos mais transparentes enfiar pregos sujos, teréns de rua e de música, cisco de olhos, moscas de pensão...

h – Aprender a capinar com enxada cega.

i – Nos dias de lazer, compor um muro podre para os caramujos.

j – Deixar os substantivos passarem anos no esterco, deitados de barriga, até que eles possam carrear para o poema um gosto de chão – como cabelos desfeitos no chão – ou como o bule de Braque – áspero de ferrugem, mistura de azuis e ouro – um amarelo grosso de ouro da terra, carvão de folhas.

l – Jogar pedrinhas nim moscas...

Manoel de Barros. Gramática expositiva do chão (Poesia quase toda). Civilização Brasileira, 1990.