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domingo, 26 de novembro de 2017

LETRAS ESQUECIDAS, APAGADAS, RASGADAS, ABANDONADAS. O QUE TAMBÉM É UMA FORMA DE TRABALHO

      Me pego meio que vadiando em meio a arquivos que tento ordenar, alguns nem tão velhos assim e me dá vontade de fazer uma postagem também vadia, também relapsa e capaz, não sei, de chatear talvez alguns dos meus parceiros musicais, por revelar o que não está pronto ainda, ou não ficará pronto, ou caiu esquecido em algum desvão, enfim... me pego aqui às voltas com algumas letras que escrevi e que algumas estão musicadas por parceiros, outras não, outras em  processo de feitura, pelo que peço desculpas aos amigos parceiros envolvidos – ou não.  Desculpas não são devidas porque considero cada vez mais o esquecimento, o abandono, a desistência – quando e se deixam de sê-lo movido pelas inescrutáveis leis do acaso – são também uma forma de trabalho de criação.   Vou dispor algumas dessas letras e começo por uma muito antiga, mas muito antiga mesmo, de cuja existência eu sequer lembrava e que foi musicada pelo querido Paulinho Lêmos há uns 30 anos, e gravada num CD que ele fez em 2002 em Portugal.  Como há uns dois anos ele me deu esse CD, eu  vim a lembrar dela.

         Eis:   COMIDA (LUXO)
         Carne de bicho
         carne de lixo
         é luxo
         tripa de trapo
         tripa de sapo
         é sopa
         tripa de luxo
         carne de sopa
         boca aberta
         não entra

         nada 

Com Paulinho Lêmos




       Falando em não lembrar do que escrevi, o que me é muito comum,  me deparei outro dia com uma aqui que gostei de saber que fui eu que escrevi – o que não é assim tão comum.

         OUTONO

         Outono e sua tez
Seu tom
Seu tônus
Outono,  aqui me dês
Tua mão
Tua névoa
Desde a manhã
A limpidez
A luz
Que atravessa a treva
Do que não é outono
E não se sabe dizer
O que seja

         E por falar em antiga, tem uma também que está com o chapa Eduardo Aguiar e que parece que vem por aí em CD que está sendo gravado. Ficou anos engavetada, acabei mostrando a ele, que parece ter se convencido – mais do que eu – de que valia a pena transformar em canção.   É esta, cujo título acaba por assumir uma dimensão quase metapoética ante minha dúvida quanto ao que vale:

PODE SER ILUSÃO

Pode ser ilusão
pode ser que não
pode ser sinal
de que seja vão
pode ser de nascença
solidão

Só de ser talvez
só de se achar
perdida outra vez
doida direção
só de procurar
sofreguidão

Basta vislumbrar
o vulto da mulher
a se multiplicar
em mulher e mais
mulher e mais
nenhuma
nem uma sequer
qualquer

Onde me encontrar
como compreender
o que faz sofrer
o que faz soprar
o que faz morder
quando dá
e quando não dá
pra saber

Tudo de prazer
tudo de gozar
tudo de querer
não parar e ir
mais além do que aqui
jaz.

Uma das primeiras letras que fiz para Fred Martins, no começo dos anos 90 recebeu melodia, um samba ágil que nunca foi gravado (Fred acha que não, mas eu acho que ela tem um probleminha de ajuste letra/melodia, que a gente nunca sentou pra tentar solucionar).  Ela homenageia um bairro de Niterói, cujo nome eu adoro (os niteroienses falam só "Viçoso"), que remete ao Eden e, lastimavelmente, é onde fica o lixão da cidade.  E mais lastimavelmente ainda foi onde em abril de 2010 ocorreu o terrível desmoronamento do que ficou conhecido como Morro do Bumba, uma das nossas mazelas mais renitentes, que acabam sempre resvalando para a conta da fatalidade e da impunidade dos responsáveis.  Mas nosso samba é bem anterior a isso:

VIÇOSO JARDIM

Depois que o Jardim do Eden fechou as portas
A gente ficou circulando por ali
Perambulando sem ter muito o que fazer
Andando pra lá e pra cá
Só pra ver o que ia dar:
Homem ou mulher?
Sorte ou azar?
Noite ou dia?
Andar por andar
Depois a cada passo só pra espairecer
Passou a noite inteira e de cansaço
A gente se sentou num banco
Posto ali pelo acaso
Até adivinhar o dia vir nascer
Acumulando ratos
Molambos
E os carros da limpeza urbana
Ensolarados acordaram os jardins da cidade



Vista do Morro do Bumba, foto de Marcos de Paula

       Já “Madame Maldade” resultou numa canção das mais bem sucedidas, não somente pela letra, mas também pela melodia maravilhosa que lhe pôs Fred Martins, um samba buliçoso, debochado e sacana.  Já a postei aqui no blog, vocês acham fácil – e a canção está também aí pelos youtubes da vida.  O que não sei é se cheguei a mostrar ao Fred uma retomada da saga da detestável personagem, dondoca de cuja estirpe, pessoal e infelizmente ,  conheço tantas.  Comecei a escrever e deixei pra lá, mas cheguei a rascunhar assim:

Madame guardou as panelas
Já não precisa mais delas
Um tanto amassadas ao fundo
E os cabos soltando as ruelas
Madame guardou as panelas
E toda a revolta do mundo
E diz que a Judite
É que sabe o que fazer com elas

Diz que leva fé na mudança
Contribui para o criança-esperança
E se sente como quem financiou
(e financiou)
Agora é tratar de ajeitar
As suas próprias as finanças
Que não tá  fácil pra quem não vive de  herança
Mas Madame demonstra confiança
E mesmo levando ferro Madame diz que tudo mudou
(pra melhor, sim senhor)

Madame guardou as panelas
Porque
Já não precisa mais delas
Um tanto amassadas ao fundo
E os cabos soltando as ruelas
Madame guardou as panelas
E diz que a Judite vai dar jeito nelas

(Voltou tudo a ser como antes
Quem manda no quartel de Abrantes
É o Abrantes)

Diverti-me bastante também, neste país enlouquecido, com a maravilhosa estorinha inventada por Chico Buarque dos autores secretos de suas canções, que ele conscienciosamente compra em troca de sigilo, em especial de um Ahmed, excelente artesão cujos serviços ele não tem como dispensar.  Que uma molecagem bem-humorada dessas tenha sido levada a sério por inúmeras pessoas, diz bem da nossa piração nacional, convidativa num primeiro momento à galhofa e, na sequência, ao suicídio. Com vocês...

PRAZER, AHMED (DELAÇÃO PREMIADA)

[Introdução falada: Meu prêmio é o reconhecimento de  vocês
chega de Chico Buarque, meu nome é Ahmed
chegou a minha vez]

Olá
eu sou o Ahmed
meu caro amigo
resolvi me apresentar
cansei
do anonimato
saiu barato
esse tempo todo  sem poder
cumprimentar
sequer um fã
a cada vez
que eu o ouvia
alegremente
assoviar   uma melodia minha
vendida a preço vil na camarinha
mafiosa da canção popular

A gente cansa de não ser conhecido por  vocês
desde que “A banda” estourou   em 66
depois “Roda viva”, “Sabiá” , “Construção”
tantos anos de exílio e de perseguição
daqueles caras que fizeram sua glória
e o nosso nome  na sombra triste da história

Então
já nada impede
o esconderijo
eu decidi abandonar
e mais além
de tudo isso
o compromisso
ficou difícil demais de poder
segurar
e no afã
de cada vez
que eu escutava
alguém chegar e elogiar
o que eu fiz bem em  caprichar
pra vender a preço vil
e ser o amigo barato
do grande gênio popular

Sei que errei  e por isso me penitencio
hoje eu venho delatar e não mais me silencio
falo em meu nome e no de mais  gente
que precisa se mostrar urgentemente
e denunciar esse conglomerado vil
feito de Chico, Caetano, Milton, Gil
(e outros mais)

Pois é
vou  te contar
o ghost writer
resolveu se aposentar
viver
de b em com a vida
desimpedida
de curtir o prazer que a vida
pede e dá
e sempre deu
a quem comprou
e assinou
impunemente
(breque):
E fez seu nome com as nossas criações
e agora perante o juiz
eu reconheço
sou réu confesso e bem pago
por meus pecados
e pelas minhas confissões.


Uma possível identidade secreta de Ahmed


        Esse mesmo país enlouquecido fez com que eu escrevesse esta, amarga, sem espírito de galhofa possível:

         PESADELO CIVIL

Vivo em pesadelo civil
melhor nem dormir
diz o amigo
melhor não acordar
digo comigo
tanto acordo
quanto durmo
em pesadelo civil
sigo e prossigo
em pesadelo civil
Lá fora e aqui dentro tudo
se eu durmo
ou se vigio
Acordrumo drumacordo
drama bruma pesada
morto vivo
morro e vivo
em pesadelo civil
Sono sem sonhos
só sustos e arrancos
de colapsos
trapaças
catástrofes, trancos
tiros nas trancas
arrombos arroubos
de podres torpezas
trincos nos dentes
sangue nas tranças
das crianças
em pedaços
como cães
raivosos
Pesadelo civil
Pesadelo civil
Pesadelo civil

         É claro que as letras sempre pressupõem um trabalho de ajuste, o que escrevo ou – mais raramente,  mas por vezes também acontece – a canção delineada em melodia com ideia e/ou rascunhos de letra que venha do parceiro passa por um processo de re-feitura, que às vezes se radicaliza.  Foi o que aconteceu com um poema – e já aconteceu mais de uma vez - que postei aqui mesmo, chamado “Os desvisíveis”, de que Fred pegou e musicou.  Mexemos no texto, acho que ficou a contento, não sei exato o que ele pensa, mas ele me diz que gravou num CD que anda produzindo  com o incrível percussionista Marcos Suzano, não sei se com a letra como dou abaixo.  Vou postar o poema que, depois de virar letra mudou de titulo:  “Desvisíveis nunca mais”.

         OS DESVISÍVEIS (poema)

Onde não havia ninguém
         - nem vestígio
                  indício 
                            perdido de vista no fundo do
                            precipício
só silêncio abafando
         o suplício de todo
         dia até o fim desde
o início
dos tempos coloniais

-  então quando os invisíveis se tornam
visíveis

impossível será torná-los
desvisíveis

não mais




DESVISÍVEIS NUNCA MAIS (letra)

Onde não tinha ninguém
Nem ruído nem  indício
Perdido de vista no fundo
Do precipício

Só o silêncio abafando
O suplício de todo dia
Todo dia até o fim
Desde o início
Dos tempos coloniais

Invisíveis dessangrando
No suplício de todo dia
Todo dia até o fim
Desde o início
Desvisíveis nunca mais


Com alguns dos envolvidos:  em pé, Marcelo Diniz (Mestre nunca igualado!), sentados Fred Martins e Eduardo Aguiar

terça-feira, 29 de março de 2016

CAETANO VELOSO: NÃO VERÁS UM PARIS COMO ESTE


[dos textos do exílio londrino]

 

          Cremúsculo.  O sol, a só, despe de si, digo, despede-se, desce pé ante pele, descalço, dá-se e sobe, digo, sob, ou melhor, sobre as bandas cremoças das mulheres alfíssimas do hemisferno nhorte.  Kolinas sonrisam no horizonte.  Mastros desdesenham-se no ocidonte. Acapulcos e havaís tampouco.  Tranquislidade.  Moite.  Não há dúvida: é chagada a hera dos maiares desgrossos.  Não há dúdiva: ele virá, sentará de pé sobre a poldrona enfernizada onde tandos senturame fera o seu elequante discorso: sua eterna dádiva; nossa eterna dívida.  Assim pressunto trudo que já estrá aquantessendo encuanto camino por las calles de esta casa grande mansão da minha hotess.  Sua majestade, sua desclarada, sua cachorra de minha adolescênica, por que nunca me declaraste nenhum amor enquanto eu era virgem e voraz?  Eres uma pública.  Y yo te quiero, yo te quiero... Mas como eu ia rizendo: alguns mastrodantes circruzavam pela prehisteria na hora da ave maria.  Cai a tarde tristonha e serena, em macio e suave langor, despertando no meu coração as saudades do primeiro amor.  Um gemido e se esvai lá no espaço nesta hora de lenta agonia quando o sino saudoso murmura badaladas apropriadas. Braçal, ano dos maus.  Brastel, amo dos meus.  Passou o ano dos gols.  Bravil, anda com ferro e gorgulho a terra onde Maciste, criança, enfrentou João Lúcio Godar: não verás nenhum Paris como este.  Olha que Shell, que mer, querida, que forgets! Papo furado.  Acordar tarde demais é que é fogo. A mulher que eu amo realmente me disse que eu acordasse mais cedo um pouco. Ao crespúsculo é demais.  Fossa na certa.  Merci bocu.  O bandeide da luz vermelha rides again.  Qualquer negócio.  Hoje em dia, minha filha, tanto faz como tanto fez.  Entretanto não adianta resposta.  Há dias em que adias tudo.  Ou: há dias tudo. ADIO GRINGO! Here comes the Sun king.  Ringo, João, Paulo e Jorge.  Ringo nunca foi santo...João houve dois e agora há, pelo menos, 23.  Paulo parlava molto.  Jorge adaptou-se tão bem aos pegis brasileiros que o Vaticano despediu-o.  Eis tudo o que sei sobre religião, perguntarão.  E jamais saberão.  E nunca sabão.  E nem são. E não. Hão? Rima rica do meu verso, minha canção preferida, melodia do meu samba, vida da minha própria vida.
 
          - Ouvi passos lá fora.
          - Quem será?
          - A essa hora.
          - Anda, Luzia, pega um travesseiro e vai ver lá no quintal.
          - Eu? Mas nem morta.
          - Anda logo. E fale baixo aqui pra ele não ouvir.
          - Ele quem?
          - Sei lá... o ladrão, ora.  Quem fez o barulho lá fora.
          - Que barulho?
          - Você não ouviu?
          - Ah. Não encha o saco.

          Luzia levantou-se, andou até o banheiro, acendeu a luz.  Uma estranha serenidade invadiu a sua alma.  Lá estavam as escovas de dente sobre a pia, a banheira rachada, o chão molhado em volta da latrina, todas as pequenas coisas das quais dependia a sua felicidade.  Será que a palavra latrina sairia na revista Querida? Trentarei, noventarei.  Eu sou um escritor cujo estilo é uma tentativa de realizar o irrealizável: um Nelson Rodrigues prafrentex.


Publicado n’O PASQUIM, edição de 4 a 10/12/1969.  In: Caetano Veloso.  Alegria, alegria: uma caetanave organizada por Waly Salomão.  Salvador: Pedra Q Ronca, 1977.

 

sábado, 7 de setembro de 2013

RUBEM BRAGA DUAS VEZES



A Mariana Quadros, linda, amada e sólida fortaleza ética



CONVERSA DE COMPRA DE PASSARINHO

          Entro na venda para comprar uns anzóis e o velho está me atendendo quando chega um menino da roça, com um burro e dois balaios de lenha. Fica ali, parado, esperando. O velho parece que não o vê, mas afinal olha as achas com desprezo e pergunta: “Quanto?” O menino hesita, coçando o calcanhar de um pé com o dedo de outro. “Quarenta”. O homem da venda não responde, vira a cara. Aperta mais os olhos miúdos para separar os anzóis pequenos que eu pedi. Eu me interesso pelo coleiro do brejo que está cantando. O velho:

          – Esse coleiro é especial. Eu tinha aqui um gaturamo que era uma beleza, mas morreu ontem; é um bicho que morre à toa.

           Um pescador de bigodes brancos chega-se ao balcão, murmura alguma coisa: o velho lhe serve cachaça, recebe, dá troco, volta-se para mim: “- O senhor quer chumbo também?” Compro uma chumbada, alguns metros de linha. Subitamente ele se dirige ao menino da lenha:

           – Quer vinte e cinco? Pode botar lá dentro.

           O menino abaixa a cabeça, calado. Pergunto:

           – Quanto é o coleiro?

           – Ah, esse não tenho para venda, não…

           Sei que o velho esta mentindo; ele seria incapaz de ter um coleiro se não fosse para venda; miserável como é, não iria gastar alpiste e farelo em troca de cantorias. Eu me desinteresso. Peço uma cachaça. Puxo o dinheiro para pagar minhas compras. O menino murmura: “- O senhor dá trinta…?” O velho cala-se, minha nota na mão.

          – Quanto é que o senhor dá pelo coleiro?

          Fico calado algum tempo. Ele insiste: “- O senhor diga…” Viro a cachaça, fico apreciando o coleiro.

          – Se não quer vinte e cinco vá embora, menino.

          Sem responder, o menino cede. Carrega as achas de lenha para os fundos, recebe o dinheiro, monta no burro, vai-se. Foi no mato cortar pau, rachou cem achas, carregou o burro, trotou léguas até chegar aqui, levou 25 cruzeiros. Tenho vontade de vingá-lo:

          – Passarinho dá muito trabalho…

          O velho atende outro freguês, lentamente.

          – O senhor querendo dar quinhentos cruzeiros, é seu.

          Por trás dele o pescador de bigodes brancos me fez sinal para não comprar. Finjo espanto: “- Quinhentos cruzeiros?”

          – Ainda a semana passada eu rejeitei seiscentos por ele. Esse coleiro é muito especial.

          Completamente escravo do homem, o coleirinho põe-se a cantar, mostrando sua especialidade. Faço uma pergunta sorna: “- Foi o senhor quem pegou ele?” O homem responde: “- Não tenho tempo para pegar passarinho.”

          Sei disso. Foi um menino descalço, como aquele da lenha. Quanto terá recebido esse menino desconhecido, por aquele coleiro especial?

          – No Rio eu compro um papa-capim mais barato…

          – Mas isso não é papa-capim. Se o senhor conhece passarinho, o senhor está vendo que coleiro é esse.

          – Mas quinhentos cruzeiros?

          – Quanto é que o senhor oferece?

           Acendo um cigarro. Peço mais uma cachacinha. Deixo que ele atenda um freguês que compra bananas. Fico mexendo com o pedaço de chumbo. Afinal digo com voz fria, seca: “- Dou duzentos pelo coleiro, cinquenta pela gaiola.”

           O velho faz um ar de absoluto desprezo. Peço meu troco, ele me dá. Quando vê que vou saindo mesmo, tem um gesto de desprendimento: “Por trezentos cruzeiros o senhor leva tudo.”

           Ponho minhas coisas no bolso. Pergunto onde é que fica a casa de Simeão pescador, um zarolho. Converso um pouco com o pescador de bigodes brancos, me despeço.

           – O senhor não leva o coleiro?

           Seria inútil explicar-lhe que um coleiro do brejo não tem preço. Que o coleiro do brejo é, ou devia ser, um pequeno animal sagrado e livre, como aquele menino da lenha, como aquele burrinho magro e triste do menino. Que daqui a uns anos quando ele, o velho, estiver rachando lenha no inferno, o burrinho, menino e o coleiro vão entrar no Céu – trotando, assobiando e cantando de pura alegria.

 

In: Quadrante. RJ: Editora do Autor. 1962.
 
 
 

 

 
           Penso sinceramente que depois de um tal texto, qualquer adendo é completamente dispensável.  Mas não me furto a dois dedos de observações um tanto vadias, tendo sempre como guia as palavras muito claras que Davi Arrigucci Jr. escreveu certa vez a respeito da prosa de Braga: “Rubem Braga é um autor de acesso fácil e imediato para quem o lê,  mas extraordinariamente difícil para quem quer falar criticamente do que leu.  Nessa naturalidade complexa lembra ainda muito um poeta que quase sempre ele lembra no trato do cotidiano, da carne concreta e dos estados fugidios do espírito, das coisas comuns e humildes, mas espinhosas de se dizer literariamente: Manuel Bandeira.”  Arrigucci ainda observa que não se trata apenas – embora efetivamente se trate também – de escritores pertencentes a uma mesma família, de parentesco entre tons e temas.  Trata-se de que “o velho Braga não só é um poeta lírico, ainda que seja um dos maiores que surgiram aqui.  Que a sua andadura de prosa não nos engane.  Ele é essencialmente lírico.”
            Nesse sentido, esta  crônica aí em cima é perfeita, o silêncio final do narrador – dizer o quê diante da absoluta falta de compaixão e solidariedade, diante da indiferença pela sorte alheia, tão familiar em nosso cotidiano, tão concreta e perceptível o tempo todo em cada fração de segundo nas atitudes mais cotidianas? O lirismo de Braga, aliado ao profundo e claro senso ético de sua escrita – e aqui ela sempre me remete ao antilírico Graciliano – parece não envelhecer.  É de se arriscar mesmo dizer que não envelhecerá. 
Complemento esta postagem com um dos poucos textos que Rubem Braga publicou  em versos, seu poema mais conhecido, “Ode aos calhordas”.  A calhordice de que trata o velho Rubem não se restringe a uma suposta elite econômica, como talvez fosse cômodo, apressado e equivocado ler: a gosma gelatinosa e fétida que genialmente emana de seu poema nos faz lembrar que invade a tudo, se não tratarmos de construir uma sociedade e um mundo capazes de eticamente recusar o status quo calhorda.  Mas não vou ficar aqui nestes resmungos que, de resto, remetem muito mais a um estado de espírito um tanto pessimista e sombrio em que me vejo envolvido.  Melhor mesmo é ler o grande Rubem.  Que, sempre que se fizer necessário,  voltará a freqüentar este blog.


 
 
ODE AOS CALHORDAS
 Os calhordas são casados com damas gordas
Que às vezes se entregam à benemerência:
As damas dos calhordas chamam-se calhôrdas
E cumprem seu dever com muita eficiência

Os filhos dos calhordas vivem muito bem
E fazem tolices que são perdoadas.
Quanto aos calhordas pessoalmente porém
Não fazem tolices — nunca fazem nada.

Quando um calhorda se dirige a mim
Sinto no seu olho certa complacência.
Ele acha que o pobre e o remediado
Devem procurar viver com decência.

Os calhordas às vezes ficam resfriados
E essa notícia logo vem nos jornais:
"O Sr. Calhorda acha-se acamado
E as lamentações da Pátria são gerais."

Os calhordas não morrem — não morrem jamais
Reservam o bronze para futuros bustos
Que outros calhordas da nova geração
Hão de inaugurar em meio de arbustos.

O calhorda diz: "Eu pessoalmente
Acho que as coisas não vão indo bem
Pois há muita gente má e despeitada
Que não está contente com aquilo que tem."

Os calhordas recebem muitos telegramas
E manifestações de alegres escolares
Que por este meio vão se acalhordando
E amanhã serão calhordas exemplares.

Os calhordas sorriem ao Banco e ao Poder
E são recebidos pelas Embaixadas.
Gostam muito de missas de ação de graças
E às sextas-feiras comem peixadas.


                                                               1953

 
In: BRAGA, Rubem. Livro de versos. Ilustrações de  Jaguar e Scliar. Rio de Janeiro: Record, 1993.