quinta-feira, 26 de maio de 2016

HAROLDO DE CAMPOS (1929-2003)


 

Dois poemas das gatimanhas & felinuras

 
brancura
 
a gata chamada
 
tamborim (tam-
 
bi)
olhos amareloesverdeados
cara chim
gosta de telhados livres
e do calor do colo
 
com miados de cortesia
mandarim
nos cumprimenta toda manhã
solicitando modestíssima
que a recebamos
no interior azulejado
da cozinha
 
na primeira noite de cio
miou por um gato galante
e com seu galã cinzamalhado
enluarou o telhado
branquíssima de paixão
 
 
nênia para tamborim
 
tinha olhos
amarelos
miava mel
era selvagem –
messalina dos telhados –
mas tinha charme:
um gato cinza-macho
de olho azul
que miava Raul
tinha paixão por ela
 
gostava de pessoas
de preferência a outros
félices
(a aristogata lady bi
tinha ciúmes
dos seus olhos ambarinos
de gato – meretriz)
 
alvíssima
quase albina
com lugares rosa
limpava com esmero
a fuligem
que de andanças e atropelos
lhe ficava no pêlo
 
morreu
dama sem camélia
odete sem catléia
- a pobrezinha! – de
câncer na pele:
 
chorei (chorai) por ela
 
 
 
Haroldo de Campos.  Crisantempo: No espaço curvo nasce um.  SP: Perspectiva, 2004.
 
 


quinta-feira, 19 de maio de 2016

DOIS POEMAS DE GEIR CAMPOS (1924-1999)


CANTO DE PEIXE I

Há um jeito de calar que o peixe sabe
de mais efeito onde o falar não cabe:
um jeito de boiar sob as estrelas
quando é mais límpido o instante de vê-las,
um jeito de intuir quando faísca
o aço fatal no cerne doce da isca,
um jeito de espelhar raios de sol
para indicar na tocaia um anzol,
um jeito de carpir o companheiro
ferido ou morto por arpão certeiro,
um jeito de saltar por cima d’água
quando submersa é mais dorida a mágoa,
um jeito de rolar dentro da onda
que se encaixota pesada e redonda,
um jeito de flanar sob o navio
de pesca em calculado desafio,
um jeito de franzir as barbatanas
à vista de armadilhas (des)humanas,
um jeito de mascar a excitação
para agir bem na boa ocasião,
um jeito de minguar sob a tarrafa
atento à brecha por onde se safa,
um jeito de acenar ao camarada
que olha os ocos da rede e não vê nada,
um jeito de alertar que sempre vence o
cortinado mais duro de silêncio,
um jeito de treinar as nadadeiras
nas correntes adversas mais ligeiras,
um jeito de nadar roçando o fundo
nas fronteiras do seu com outro mundo,
um jeito de parar tocando o limo
como frágil e derradeiro arrimo,
um jeito de assumir a cor do lodo
ou do saibro ou da pedra e sumir todo,
um jeito de se encompridar na areia
na esteira de prata da lua cheia,
um jeito de ir e vir pelo cristal
líquido num convite ao natural,
um jeito de rondar a fêmea púbere
sem piscar todavia os olhos túmidos,
um jeito de ser frio entre o calor
como a sentir saudade em pleno amor,
um jeito de ver quando se resume
o ser livre em ser mais preso ao cardume
um jeito de entender ante tudo isso
o engano do que foge ao compromisso,
um jeito de velar o ensinamento
até provar-se chegado o momento
de cantando invocar a luz da aurora
entre os  corais do dia que se enflora,
num jeito de cantar que o peixe sabe
– canto de guerra ou cantiga de amor –
mas não é bom que o saiba o pescador.



Geir Campos. Canto de peixe & outros cantos.  RJ: Civilização Brasileira, 1977.



 


METANÁUTICA

Posso te dar a carta de marinha
mas o traço que nela insinuasse
um entre tantos rumos
não

Posso te dar as tábuas de marés
mas a leve emoção de cavalgar
onda e onda após onda
não.

Posso te dar os índices das águas
conforme as densidades, mas a branda
flutuação do casco
não.

Posso te dar a rosa e o timão
mas o desequilíbrio concertante
ao balanço de bordo
não.

Posso te dar exemplos de ancoragens
mas o galeio do barco seguro
retesando as amarras
não.

Posso te dar o longe no binóculo
mas acolá das lentes e paisagem
convidando à viagem
não.

Posso te dar notícia do mar calmo
mas o rumor das franjas no espelhado
junto à roda de proa
não.

Posso te dar o gorro marinheiro
mas a pressão do linho nos cabelos
enquanto sopra o vento
não.

Posso te dar a direção da chuva
mas o gosto da baga salitrada
escorrendo no rosto
não.

Posso te dar posturas de sextante
mas o fulgor da estrela observada
entre horizonte e prisma
não.

Posso te dar os nomes de alguns peixes
mas o espanto de vê-los acender
fosforescentes rastros
não.

Posso te dar frios conhecimentos
mas o que se acalanta no convívio
amoroso do mar
não.

Geir Campos. Metanáutica. RJ: José Olympio, 1970.
 

 

segunda-feira, 9 de maio de 2016

CHACAL




CEP 20.000


                                           “... arrependei-vos e rejubilai-vos
                                            CEP 20.000 está no ar!”

                                                                       Minotauro


aqui
    da janela desse baú de lata
        - barão de gusmão/Leblon –
           vejo a vida passar inexorável

atropelando o que é velho
    aplicando chapinha no asfalto
        quente e mole
             nessa noite de verão

 o lotação passa batido
    pela haddock lobo pelo Estácio
         dropa aqui desvia ali embala acolá

desfila veloz pela Riachuelo
     no clube dos democráticos
          buzina evoé e vai

pela sinuca galera afiada desfiando versos
     hip hop na zoeira

passa os arcos passa a lapa
     e deixa o fantasma do circo
        sobrevoando a fundição

pelo passeio passa apressado
     glória flamengo botafogo humaitá

é dia de cep
     ali a onda é boa o mundo ali é bom



de repente
     saltei do ônibus
          cheguei ao posto
suor no rosto
      que ela rindo
            me desenxugou

de repente
   boca sem dente
        delinqüente rock and roll
           é o joe.
               o show já começou.
 

 



In: Chacal por Fernanda Medeiros.  Rio: EdUERJ, 2010 (Coleção Ciranda da Poesia)