segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

CASSIANO RICARDO

O BANQUETE

            Em meu quarto, o silêncio
e a lâmpada que me divide em dois.
O meu quarto é mais pobre que o de Jó;
duas vezes eu e uma lâmpada só.

            No salão do vizinho,
que não me convidou, a mesa alva;
e os convivas bebendo um vinho triste.
Será sangue de Orfeu? Lacrima-cristi?

            Porém, se o vinho é triste,
há estrelas líquidas em copos altos
que cintilam, qual geométricos lírios,
erguidos no ar à hora dos delírios.

            Sinto-me bem, assim,
não convidado, pois não bebo estrela
nem sangue;  sou enteado da alegria.
A tristeza é o meu pão de cada dia.

            Seria eu, na festa,
um insulto aos demais, algo de cômico.
Uma pedra aos que têm, no ombro, uma asa.
Um carvão quando tudo, ali, é brasa.

            Sinto-me bem, porque
sou um cacto com folhas de silêncio.
Não troco por nenhum gole de vinho
este meu ser noturno e submarinho.

            Que só me cheguem, pois,
o terrincar das taças, o confuso
gorjeio das bacantes.  Só me agrada
beber – rosa num copo – a madrugada.

Ah, se soubessem, todos,
o bem que me fizeram, excluindo-me
do banquete – o mais lógico dos olvidos –
ergueriam um brinde aos excluídos.

In:  Cassiano Ricardo. Antologia poética, 1964.




sábado, 28 de janeiro de 2012

DOIS POEMAS DE A TAL CHAMA O TAL FOGO




A VOLUPTUOSA

me des
abotoava de alto a
baixo e em cada
beijo entre-
    me dizia: só
    curiosidade
    (mais o desejo que
    (ela não dizia (entre
    /meteu a mão as beijo)sim/
    retilínea e in
    greme infrene
    foi até o fim
entre
    colando língua olho
    glande
 -cortando
sedosaesguiame
des




(AINDA) DA CRUELDADE

ela disse que me amava uma
duas e outra vez ainda
jurei segui-la a vida toda esquina
a esquina
o trote bêbado do cara
que eu já tinha visto em seu encalço
noturno
ecoou    tímpano e (de soslaio)
retina – o bastante
o seu adeus meu
tchau nevermore c’est la vie
que plagia e assina


quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

70 ANOS EM 2012 É O MÁXIMO




não, eu não vi ainda o filme de Nelson Pereira dos Santos sobre Tom Jobim
certamente o verei.  se eu tivesse 20 e poucos anos já o teria visto
porque não me desculparia que ele estivesse em cartaz há alguns dias
e eu ignorante dele.
(é bom nos desfazermos das urgências que não o são.
mas me recuso a falar como um velho).

25 de janeiro: aniversário de Tom Jobim, que era de 1927

é tanta informação e informação acumulada , além de falsa informação, de des-
-informação, que me sinto obrigado a anotar uma que é fundamental
pro que eu pretendo rabiscar aqui
– reeditando a tentativa canhestra de imitar a prosa de Augusto de Campos –:
não sei se todos sabem
sei que muitos dos que me lêem são muito novos
mas saibam com urgência que
Tom Jobim, Vinícius de Moraes e João Gilberto são a bossa nova.
informação fundamental

19 de janeiro: Nara Leão teria feito 70 anos

a mais charmosa e inteligente cantora brasileira, musa da bossa nova
que se lançou gravando de cara os caras que nada tinham a ver com a bossa nova
 – sambas da tradição carioca pré-bossanovística
e que depois veio abrindo as portas para a geração dos que estão aí comemorando ou prestes a comemorar 70 anos:
                  a turma do imediato pós-bossa nova

é motivo de orgulho pra qualquer um ser um compositor lançado por Nara Leão
ou mesmo se não for o caso, fazer 70 anos este ano, assim como
Paulinho da Viola, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Jorge Ben
porque na esteira da bossa nova
porque na esteira do que havia antes da bossa nova
porque na esteira do que havia ao mesmo tempo que a bossa nova
eles ensinaram a cantar quem quis aprender a cantar
o que de melhor se pode cantar para compor e compôs o nosso habitat
– dados os sons que freqüentamos desde que nascemos
e quando eu digo sons eu falo das madeiras
cordas couros metais teclas peles ossos carnes
marfins vogais consoantes hiatos ditongos tritongos
sílabas barbarismos solecismos acertos
todos os muitos acertos incluídos aí os erros
eles nos ensinaram o que é ecologicamente correto
porque com eles não tem conversa mole




claro que é preciso juntar aos setentões
o caçula da turma, Chico, de 1944 – e isso pra ficar só nos 6 grandes
firmados pra valer na década de 70
(quem não acredita ou não conhece que vá conferir – hoje é fácil – os discos
que esses 6 aí fizeram nos anos 70)
mas pra ficar só no mainstream é preciso ainda juntar Edu Lobo, que é de 43
e pra ser verdadeiramente abrangente e pleno de gozo
eu junto a todos a respeitável turma de 1937:
Baden, Menescal, Elomar e Tom Zé – e só a rica diversidade da turma de 37
já fala da força desses todos que andam  aí na casa dos 70

e junto ainda os um pouquinho
mais velhos Sérgio Ricardo e Vandré  e os um pouquinho
menos velhos
Carlos Lyra
Francis Hime
Martinho da Vila
Jorge Mautner
Roberto & Erasmo (e ainda Tim Maia, que em setembro próximo também se tornaria setentão)
e outros que em breve serão setentões também:
Dori
Marcos Valle
Macalé
– Sidney Miller, que não será,  por ter ido cedo demais (ele também lançado por Nara) –
acrescento o canto de Nana, Elis, Gal e Bethânia
mais os poetas Torquato, Capinam e Waly Salomão
pronto: desenhei o que tanto para mim significa
ter aprendido para sempre com o dístico de Paulinho da Viola

“AS COISAS ESTÃO NO MUNDO/
SÓ QUE EU PRECISO APRENDER”
(para mim a frase síntese, projeto geracional)

a frase síntese do projeto geracional:
ela é o fecho da canção que recusa
todo aprendizado cediço, toda visão preconcebida do mundo
- e isso dentro do samba, quer dizer, dentro
de um ambiente propício à proliferação  de estereótipos





mas Paulinho porta ainda
a bandeira: ecolongínquo da primeira bossa nova:
CHEGA DE SAUDADE
e este é o ponto dos que até hoje são os melhores dentre eles
(sim, porque muitos se perderam no caminho – cada ouvinte sabe de si
tem aí entre eles alguns que eu não suporto ouvir há muito tempo)
mas este é o ponto, o ponto é este:
aprender as coisas do mundo para não se render à saudade
à auto-compaixão, à auto-comiseração. 
quando aflora a saudade nas suas canções
 – repito: falo dos melhores dentre eles –
é de um ponto distanciado, é um olhar que fala na verdade de uma
meta-saudade
é comentário
não é queixume.

Waly sempre atento
sabia bem o que dizer quando dizia:

Saudade é uma palavra
Da língua portuguesa
A cujo enxurro
Sou sempre avesso
SAUDADE é uma palavra
A ser banida
(...)
Pra não depositar
Aluvião
Aqui
Nesta ribeira.



essas canções elas mesmas brilham seu metal
inoxidável imunes à ferrugem ao enxurro
de tudo o que as cerca – agora também dos velhos fãs
que pensam ser legítimo sentir saudade
– “que estamos todos velhos”
e eu queria ter 70 anos como eles para não ser nem um pouco velho
ou sê-lo apenas fisicamente
e não repetir o triste espetáculo que era comum ver
nos anos 60, 70,  de quando se trazia à cena um dos grandes
dos anos 30 ou 40 e a regra era chorar
lamentar o tempo que se foi
o mundo que tanto mudara
a juventude que se extraviara
nada parecido com isso faz a dignidade desses grandes
nem mesmo a saudade inerte e inerme da garotada
de novo permeável  à choramingação de sempre
que não parece à altura do metal de suas melhores canções
(Waly também: “Súbito/a reprimida resplandece/Re-nova cobra rompe o ovo/Da casca velha”)



o que eu faço com os que acabaram não sendo tão grandes como pareciam?
eu ouço o que eles fizeram quando eram grandes
um ouvir sem nenhuma saudade
um ouvir que procura estar à altura dos everests kilimanjaros aconcáguas atingidos
para não lamentar o hoje talvez amiudado
mesquinho
acanhado
que é melhor mesmo apenas silenciar




de volta, pra fechar:  Nara, a musa da bossa nova
só veio a gravar bossa nova mesmo pra valer em 1971
- álbum duplo: Dez anos depois, estúdio, ambiência, design parisiense
(foi aí que pela primeira vez eu me detive e fui descobrir a bossa nova pra valer)
Nara exemplifica o gesto dos setentões de, como queria Eliot,
inventar com suas intervenções não apenas o passado
como seus antepassados:
assim
a bossa nova (que é Tom, João e Vinícius, lembram?) é também uma invenção posterior de Nara
Paulinho da Viola inventou Cartola, Wilson, Nelson, a Velha Guarda da Portela
e tantos outros mais
Caetano também inventou João e o anti-João, além de Carmen, Orlando, Roberto
Gil tirou da gruta da Mangabeira Jackson e Gonzagão, Gordurinha e Batatinha
Chico inventou Tom – com auxílio de Edu – e mais Noel e Ismael e
assim sucessivamente todos inventaram
- invenção e intervenção
(além de Elomar, inventado por vários deles e que os  inventou de volta)


é certo que depois dos setentões vieram os que já estão quase lá
mas entre uns e outros há uma distância que eu não sei precisar
(já que sou eu que estou inventando aqui o meu recorte)
mas que já são outra história: Gonzaguinha, Ivan, Melodia, Djavan, João Bosco, Guinga, Aldir, Sérgio Sampaio, Moraes Moreira, Raul, Lô, Fagner, Alceu...

mas nem de longe quero cobrir com o verniz do ideal
ou com as lantejoulas da louvaminhice  a existência tão real que quase inacreditável
dessa turma
que por si só rompeu com todo esse desejo gagá (que acomete todo mundo, mesmo gente muito mais nova, mas não os jovens setentões), no primeiro dia de 1995, quando
reunidos em torno da celebração da arte e da memória de Jobim na praia de Copacabana
( a visão que remetesse à meta da perfeição só poderia mesmo ser desejada nunca atingida)
aquele ideal se desfez
e parece que um desentendimento doloroso, vindo do fundo histórico coletivo e individual do esplendor da luz e do horror do breu entre eles se instalou e talvez um outro país tenha que vir a ser inventado para que se conserte
– os desconfortáveis ante idealizações e saudades diremos:
Que ótimo!

não tenho 70 anos:  não celebro nada em mim
e não tenho 20 anos nem tenho um cinema perto de mim.  mas em quaisquer circunstâncias
se os tivesse ia correndo, tarefa urgente,  ver o filme de Nelson sobre Tom Jobim e tentar aprender para sempre com mais vagar os detalhes dessa história que apenas se começa a contar.  

isso se for interessante se interessar pelo mundo.




segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

AH, UM SONETO... DO SÉCULO 17 PORTUGUÊS

Quam doce é a um firme enamorado,
Um fingido fugir da doce Dama,
Um dizer que não quer ir para a Cama,
Um ai que me matas, ai malcriado;

Um ai que nos ouvirão, ai que é pecado,
Um ai que minha mãe ouve, e chama,
Um ai de mim que perco honra, e fama,
Um não sejais senhor tão perfiado;

Quam doce é um suar, um cruzar coxas,
Um dar lugar a tudo de cansada,
Um, lembrai-vos Senhor, qual me deixais;

Um encobrir chorosa as nódoas roxas,
Um despedir-se em lágrimas banhada
Considere quem chegar não pode a mais.

                                                    Dr. Antonio Barbosa de Bacelar


In: Maria do Socorro Fernandes de Carvalho.  Poesia de agudeza em Portugal.  EdUSP, 2007.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

IESSIÊNIN

Na postagem imediatamente anterior, publiquei o poema de Vladimir Maiakóvski, “A Sierguei Iessiênin” (ver em http://robertobozzetti.blogspot.com/2012/01/maiakovski.html),
mencionando ainda brevemente as circunstâncias em que fora escrito .  Segue agora um poema do homenageado.

A CONFISSÃO DE UM VAGABUNDO

Nem todos sabem cantar.
Não é dado a todos ser maçã
Para cair aos pés dos outros.

Esta é a maior confissão
Que jamais fez um vagabundo.

Não é à toa que eu ando despenteado,
Cabeça como lâmpada de querosene sobre os ombros.
Me agrada iluminar na escuridão
O outono sem folhas de vossas almas,
Me agrada, quando as pedras dos insultos
Voam sobre mim, granizo vomitado pelo vento.
Então, limito-me a apertar mais com as mãos
A bolha oscilante dos cabelos.

Como eu me lembro bem então
Do lago cheio de erva e do som rouco do amieiro,
E que nalgum lugar vivem meu pai e minha mãe,
Que pouco se importam com meus versos,
Que me amam como a um campo, como a um  corpo,
Como à chuva que na primavera amolece o capim,
Eles, com seus forcados, viriam aferrar-vos
A cada injúria lançada contra mim.

Pobres, pobres camponeses,
Por certo, estão velhos e feios,
E ainda temem a Deus e aos espíritos do pântano.
Ah, se pudessem compreender
Que o seu filho é, em toda a Rússia,
O melhor poeta!
Seus corações não temiam por ele
Quando molhava os pés nos charcos outonais?
Agora ele anda de cartola
E sapatos de verniz.

Mas sobrevive nele o antigo fogo
De aldeão travesso.
A cada vaca, no letreiro dos açougues,
Ele saúda à distância.
E quando cruza com um coche numa praça,
Lembrando o odor de esterco dos campos nativos,
Lhe dá vontade de suster o rabo dos cavalos
Como a cauda de um vestido de noiva.

Amo a terra.
Amo demais minha terra!
Embora a entristeça o mofo dos salgueiros,
Me agradam o focinho sujo dos porcos
E, no silêncio da noite, a voz alta dos sapos.
Fico doente de ternura com as recordações da infância.
Sonho com a névoa e a umidade das tardes de abril,
Quando o nosso bordo se acocorava
Para aquecer os ossos no ocaso.
Ah, quantos ovos dos ninhos das gralhas,
Trepando nos seus galhos, não roubei?
Será ainda o mesmo, com a copa verde?
Sua casca será rija como antes?

E tu, meu caro
E fiel cachorro malhado?!
A velhice te fez cego e resmungão.
Cauda caída, vagueias no quintal,
Teu faro não distingue o estábulo da casa.
Como recordo as nossas travessuras,
Quando eu furtava o pão de minha mãe
E o mordíamos, um de cada vez,
Sem nojo um do outro.

Sou sempre o mesmo.
Meu coração é sempre o mesmo.
Como as centáureas no trigo, florem no rosto os olhos.
Estendendo as esteiras douradas de meus versos
Quero falar-vos com ternura.

Boa noite!
Boa noite a todos!
Terminou de soar na relva a foice do crepúsculo...
Eu sinto hoje uma vontade louca
De mijar, da janela, para a lua.

Luz azul, luz tão azul!
Com tanto azul, até morrer é zero.
Que importa que eu tenha o ar de um cínico
Que pendurou uma lanterna no traseiro!
Velho, bravo Pégaso exausto,
De que me serve o teu nome delicado?
Eu vim, um mestre rigoroso,
Para cantar e celebrar os ratos.
Minha cabeça, como agosto,
Verte o vinho espumante dos cabelos.

Eu quero ser a vela amarela
Rumo ao país para o qual navegamos.
           

(tradução de Augusto de Campos)


In: Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Boris Schnaiderman.  Poesia russa moderna: nova antologia. 4 ed. Brasiliense, 1985.



sábado, 14 de janeiro de 2012

MAIAKÓVSKI

A SIERGUEI IESSIÊNIN *

Você partiu,
            como se diz,
                        para o outro mundo.
Vácuo...
            Você sobe,
                        entremeado às estrelas.
Nem álcool,
            nem moedas.
Sóbrio.
            Voo sem fundo.

Não, Iessiênin,
            não posso
                        fazer troça –
Na boca
            uma lasca amarga,
                        não a mofa.
Olha –
            sangue nas mãos frouxas,
você sacode  
            o invólucro
                        dos ossos.

Pare,
            basta!
                        Você perdeu o senso?
Deixar
            que a cal
                        mortal
                                   lhe cubra o rosto?
Você,
            com todo esse talento
para o impossível,
            hábil
                        como poucos.

Por quê,
            para quê?
                        Perplexidade.

– É o vinho!
            – a crítica esbraveja.
Tese:
            refratário à sociedade.
Corolário:
            muito vinho e cerveja. –
sim,
            se você trocasse
                        a boêmia
                                   pela classe,
a classe agiria em você,
            e lhe daria um norte.
E a classe
            por acaso
                        mata a sede com xarope?
Ela sabe beber –
            nada tem de abstêmia.

Sim,
            se você tivesse
                        um patrono no “Posto” , –
ganharia
            um conteúdo 
                        bem diverso:
todo dia
            uma quota
                        de cem versos,
longos
            e lerdos
                        como Dorônin.

Remédio?
            Para mim,
                        despautério:
mais cedo ainda
                        você estaria nessa corda.
Melhor
            morrer de vodca
que de tédio!

Não revelam
            as razões
                        desse impulso
nem o nó,
            nem a navalha aberta.
Talvez,
            se houvesse tinta no “Inglaterra”,
            não cortaria
                        os pulsos.
Os plagiários felizes
            pedem: bis!
Já todo
            um pelotão
                        em auto-execução.
Para que
            aumentar
                        o rol de suicidas?
Antes
            aumentar
                        a produção de tinta!

Agora
            para sempre
                        tua boca
                                   está cerrada.
Difícil
            e inútil
                        excogitar enigmas.
O povo,
            o inventa-línguas,
perdeu
            o canoro
                        contramestre de noitadas.
E levam
            versos velhos
                        ao velório,
sucata
            de extintas exéquias.
Rimas gastas
            empalam
                        os despojos, –
é assim
            que se honra
                        um poeta?

Não
            te ergueram ainda um monumento, –
onde
            o som do bronze
                        ou o grave granito? –
E já vão
            empilhando
                        no jazigo
dedicatórias e ex-votos:
                        excremento.

Teu nome
            escorrido no muco,
teus versos,
            Sóbinov os babuja,
voz quérula
            sob bétulas murchas –
“Nem palavra, amigo,
            nem o so-o-luço”.
Ah,
            que eu saberia dar um fim
a esse
            Leonid Loengrim!
Saltaria
            – escândalo estridente:
– Chega
            De tremores de voz!
Assobios
            nos ouvidos
                        dessa gente,
ao diabo
            com suas mães e avós!

Para que toda
            essa corja explodisse
inflando
            os escuros
                        redingotes,
e Kógan
            atropelado
                        fugisse,
espetando
            os transeuntes
                        nos bigodes.

Por enquanto
            há escória
                        de sobra.
O tempo é escasso –
                        mãos à obra.
Primeiro
            é preciso
                        transformar a vida,
para cantá-la –
                        em seguida.

Os tempos estão duros
                        para o artista:
Mas,
            dizei-me,
                        anêmicos e anões,
os grandes,
                        onde,
                        em que ocasião,
escolheram
            uma estrada
                        batida?

General
            da força humana
                        – Verbo –
marche!
            Que o tempo
                        cuspa balas
                                   para trás,
e o vento
            no passado
                        só desfaça
um maço de cabelos.

Para o júbilo
            o planeta
                        está imaturo.
É preciso
            arrancar
                        alegria
                                   ao futuro.
Nesta vida
            morrer não é difícil.
O difícil
            é a vida e seu ofício.

                        (Tradução de Haroldo de Campos)
           
In: Boris Schnaiderman.  A poética de Maiakóvski através de sua prosa.  Perspectiva, 1971.
           




O poeta Sierguei Iessiênin




* Sierguei Iessiênin (1895-1925) era contemporâneo do autor, ambos integrando o círculo de jovens poetas russos do começo do século XX que viriam a revolucionar – dentro do espírito vanguardista que varria a Europa e se propagou para as Américas no período – as concepções poéticas do século.  No mesmo período,  e com ligações estreitas com esses escritores, é bom lembrar que se desenvolviam as pesquisas em lingüística e poética do que viria ser conhecido como o Formalismo Russo, que é praticamente a corrente inaugural da moderna Teoria da Literatura.  A propósito, há uns cinco anos a Cosac-Naify lançou a edição brasileira de A geração que esbanjou seus poetas, importante ensaio do lingüista Roman Jakobson, talvez o mais famoso integrante do grupo.
            Vladimir Maiakóvski (1893-1930) escreveu o poema acima praticamente em desagravo às homenagens póstumas que foram dedicadas a Iessiênin,  que se suicidara por enforcamento pouco antes (esse desagravo precisa ser percebido pelo leitor, que numa leitura ingênua pode apenas concluir que Maiakóvski condena o suicida) no Hotel Inglaterra – citado numa passagem do poema –  em Leningrado (hoje novamente São Petersburgo), pela  cultura oficial do que já estava se tornando o Estado burocrático soviético após a revolução de 1917. Maiakovski, que participara ativamente da revolução e dedicara seu ofício de poeta em prol do projeto de uma nova sociedade, mais e mais se via em dificuldades políticas ao lidar com a burocracia e a moral proletária que se apossavam do aparelho de  Estado, principalmente a partir da ascensão de Stálin ao poder em 1922, sucedendo a Lênin. O poema traduz muito dessa inconformidade maiakóvskiana, aliada ao desregramento e à inadaptação célebres também do desafortunado homenageado. Há algumas referências bem circunstanciais no texto, das quais escolho esclarecer duas delas (os esclarecimentos na verdade são do tradutor Haroldo de Campos, que aborda ainda outras circunstâncias):
1.    No verso “Sim, se você tivesse um patrono no ‘Posto’”: o “Posto” era, informa Haroldo, a revista da Associação russa de escritores proletários;
2.    No verso “e Kógan atropelado fugisse”, Kógan era o crítico P.S. Kógan, representante máximo do sectarismo dogmático comunista, com quem Maiakóvski se atritara inúmeras vezes, informa a mesma fonte.

Outras referências circunstanciais podem ser importantes, mas creio que o leitor de poesia saberá pelo menos deduzir, uma vez captada a lógica do texto, os papeis cumpridos pelos agentes em cena.  Vale a pena ainda comentar que, especialmente em seu final, o poema de Maiakóvski dialoga explicitamente com o pequeno último poema escrito com sangue e deixado ao lado do corpo por Iessiênin por ocasião de seu suicídio.  O poema de Iessiênin, na tradução de Augusto de Campos, é facilmente localizado na rede.
Em tempo: cinco anos após Iessiênin, também Maiakóvski viria a cometer suicídio,  com um tiro no peito.