quarta-feira, 28 de setembro de 2016

OSWALD DE ANDRADE (1890-1954)


Dois Poemas da Colonização
Escravo pendurado vivo -
Autoria desconhecida

"Castigos domésticos", Rugendas
 
 
medo da senhora



A escrava pegou a filhinha nascida
Nas costas
E se atirou no Paraíba
Para que a criança não fosse judiada


 


levante


Contam que houve uma porção de enforcados
E as caveiras espetadas nos postes
Da fazenda desabitada
Miavam de noite
No vento do mato


Oswald de Andrade. Poesias  reunidas. 4 ed.   Rio: Civilização Brasileira, 1974.
 
Violência - Foto de Luiz Morier, 1983
 

domingo, 18 de setembro de 2016

H. DOBAL (1927)


O BOM SAMARITANO

 

Ajudar os outros a morrer
era a prática piedosa
de Benedito Mendes.
Contra as trevas da morte
acendia nas mãos dos moribundos
a vela de carnaúba.
(Os pingos de cera,
os pingos grossos
queimavam as mãos
dos moribundos.)
Exortava os que morriam
à pureza do arrependimento.
Trazia à tona
das consciências
que se apagavam
as culpas e pecados
há muito sepultados
nos alçapões da memória.
Forçava o arrependimento, fácil
na hora extrema.
Ganhava sua paz
preparando os que partiam
desta vida para melhor.


 
                            H. Dobal. A província deserta.  Rio: Artenova, 1974.

domingo, 11 de setembro de 2016

MURILO MENDES (1901-1975)

Ilustração de  Talarico






MURILO MENDES (1901-1975)

 

A LAGARTIXA

Sentado ao sol num banco de jardim romano observo uma lagartixa no seu contínuo vaivém.  Tento inutilmente agarrá-la; mesmo que sim, ela escorregaria logo das minhas mãos; digo escorreria porque a lagartixa tem algo de líquido.

Inaferrável pequeno sáurio! procuro captar um milésimo-luz do seu olhar, certamente de uma estranheza sem igual.

Que brinquedo propor à lagartixa?  Cabra-cega, pique, chicote-queimado, talvez os únicos brinquedos adaptáveis à sua condição, forma, agilidade, e aos seu gosto do enigma.  O ideal seria dançar com ela uma ciranda, mas afasto este pensamento cruel: a lagartixa não tem mãos como as nossas.  Além disso, trata-se de uma anarco-individualista: nunca vi lagartixas em bando; magnificamente só, a lagartixa esgueira-se entre as pedras, os muros, as folhagens, perseguindo não se sabe bem o quê; indecisa entre o sol e a sombra, talvez encontre na pedra a síntese que mira: com efeito, a pedra resume unidade e dureza.

Falando lagartixa,  falo infância onde lagartixa foi doce companheira  das minhas horas juiz-foranas, nos jardins e pomares daquele tempo.  Falando infância, (adolescência, mocidade, madureza e próxima velhice), não poderia deixar de apontar aqui uma figura feminina; sem as figuras femininas duraria o mundo, de que também a lagartixa é flexível comparsa?

**

É a tarde de uma segunda-feira de carnaval; devo ter doze anos; estou sentado ao sol num banco, no pomar da casa paterna, considerando os movimentos de uma lagartixa  que espreitava desde semanas.  Isto é, seria a mesma de antes?  Quem distingue ao certo as lagartixas, quem distinguiria as meninas chinesas?  E se houver lagartixas chinesas, meu Deus! então o caso se complicará muitíssimo.  Eu, que gosto de dar nome a todas as coisas, não poderia batizar uma lagartixa.  Assim, quantas Heloísas, Elisabetes e Mercedes não-nascidas!

De repente desponta entre os jambeiros e os cambucazeiros minha namorada Dolores, filha do advogado N... Vieira, fantasiada de princesa oriental; um vestido com muitos babados e refolhos, entre verde, vermelho, azul, alaranjado; coberta de lantejoulas; à cabeça um turbante de seda amarela.  Eu gostava de Dolores, gostava demais do carnaval, gostava de fantasias (se bem que nunca as usasse) mas não pude tolerar aquele absurdo travesti que desfigurava minha linda ex-amiga, dando-lhe mesmo – coisa terrível – um ar flácido.

Súbito Dolores passou a inexistir para mim.  Refletida nas lantejoulas eu via a vulgaridade do clã Vieira.  A lagartixa ia e vinha; não parou;indiferente em absoluto à fantasia de Dolores, revelava, sem querer, bom gosto.  Resolvi seguir sua lição, passando-a para o plano dos homens.

A menina-moça voltou para mim surpreendida:

- Estão todos te esperando para a batalha de confete na rua Halfeld.

Lancei os dados, decidido a intransigir, a quebrar a rotina, a me afirmar como gente:

- Desculpe, Dolores, mas não posso ir.

- Porque?

- Estou muito interessado em estudar os movimentos daquela lagartixa.

Dolores nem mordeu os lábios, como de praxe: partiu a todo o galope para avisar a minha tribo que eu enlouquecera. Vieram todos, arlequins, pierrôs, pierretes, colombinas, dominós, índios, feiticeiras, rajás armados de lanças-perfume, sacos de confete, rolos de serpentinas; rodeando-me entre afeto, censura e espanto.

Confirmei minha informação anterior; ninguém conseguiu me arrancar dali. Com a movimentação em torno dela, minha querida lagartixa, sardanita ou sardanisca, desapareceu.  Voltei em vão ao pomar nos dias sucessivos; e perdi Dolores para sempre.

Murilo Mendes. A idade do serrote. RJ: Sabiá, 1968.

sábado, 3 de setembro de 2016

CECÍLIA MEIRELES (1901-1964)



Do Romanceiro da Inconfidência

ROMANCE LXXXI OU DOS ILUSTRES ASSASSINOS

Ó grandes oportunistas,
sobre o papel debruçados,
que calculais mundo e vida
em contos, doblas, cruzados,
que traçais vastas rubricas
e sinais entrelaçados,
com altas penas esguias
embebidas em pecados!

Ó personagens solenes
que arrastais os apelidos
como pavões auriverdes
seus rutilantes vestidos,
- todo esse poder que tendes
confunde os vossos sentidos:
a glória, que amais, é desses
que por vós são perseguidos.
 
Levantai-vos dessas mesas,
saí das vossas molduras,
vede que masmorras negras,
que fortalezas seguras,
que duro peso de algemas,
que profundas sepulturas
nascidas de vossas penas,
de vossas assinaturas!
 
Considerai no mistério
dos humanos desatinos,
e no pólo sempre incerto
dos homens e dos destinos!
Por sentenças, por decretos,
pareceríes divinos:
e hoje sois, no tempo eterno,
como ilustres assassinos.

Ó soberbos titulares,
tão desdenhosos e altivos!
Por fictícia austeridade,
vãs razões, falsos motivos,
inutilmente matastes:
- vossos mortos são mais vivos
e, sobre vós, de longe, abrem
grandes olhos pensativos.



Cecília Meireles. Romanceiro da Inconfidência.  SP: Abril (Círculo do Livro), 1975.