domingo, 12 de fevereiro de 2017

LEONARDO FRÓES (1941), QUATRO VEZES

          Graças ao lançamento do volume a ele dedicado na Coleção Postal da Azougue e da Cozinha Experimental, reato meu contato com a poesia de Leonardo Fróes.  O volume, como os demais da coleção, reúne 30 poemas e uma entrevista com o poeta.  Fico muito feliz ainda em saber que o poeta lançou recentemente sua poesia completa e que foi muito bem recebido em sua participação na FLIP do ano passado.  Meu contato com essa poesia precisava mesmo ser reatado, vou caminhar nessa direção, eu, que dele só tinha até então o ótimo livro de 1973, Esqueci de avisar que estou vivo, com sua capa flagrando um detalhe do quadro Crucificação de Cristo, de Bosch.  Fora isso, esbarrava volta e meia com um poema seu por aí, apenas.
         O livro da Coleção Postal reúne poemas de todos os seus  livros publicados,  de Língua franca (1968) a Trilha (2015).  Entre os três do livro de 1973 os organizadores não incluíram,   e por isso o posto aqui, “Paisagem voando para o orgasmo”, de que muito gosto…  alías, me surpreendi ao ver que não o havia postado já neste blog, por sinal que nunca tinha postado nada do poeta antes.  Sinal de que estava mesmo precisando desse reencontro com sua poesia que a Coleção Postal veio a proporcionar.
         Não conhecia o primeiro desses poemas, “Inspirado por um vaso”, que me causou um enorme impacto – foi difícil me desgrudar dele e ler os demais do volume.  E aí fui buscando também em outros –  felizmente encontrei – o que nele me encantara.  Sobretudo a sintaxe de largo fôlego – à exceção do último, todos os outros, assim como muitos no livro,  são constituídos por apenas um período - , que se desenrola, se espraia e recolhe imageticamente, em parataxe e hipotaxe, associações, acenos, analogias incríveis, aproximações afetivas e intelectuais, numa visão  acima de tudo humanista, generosa, a que precisamos ser dignos – parece apontar o poeta – de pelo menos pormos a mão: como o caqui que ele oferece à amada, como a meditação sobre o constructo humano debruçado às margens do rio central da Renascença.  Vaso e caqui (aqui é preciso ler a entrevista para entende direitinho a trajetória do poeta e tradutor cosmopolita que se torna agricultor  e assim permanece há mais de 40 anos, sem abrir mão de ser poeta e tradutor) são ambos constructos:  na agricultura e no que chamamos mais habitualmente cultura. 
         Curtam Leonardo Fróes.






INSPIRADO POR UM VASO
Assim como os oleiros que se entregam  em pasmo à
estafante percepção de uma forma girada nos próprios
dedos, assim como os pintores que se dão por completo
à fantasia que evola do verniz dessa forma e criam, no
seu bojo, uma tensão contraditória de músculos,

assim como os humildes que a conservam em uso,
carregam essa forma nos ombros,
afeiçoam-se a ela -
- e não são nada,

senão um par de olhos contemplando as figuras
cujo mágico poder faz do labor um prêmio,

assim como os devotos que a honram
e a demonstram em pânico, fiéis servos da morte,
ao cínico juízo dos deuses,
assim como os guerreiros que o seu brilho confunde,
os reis que a acariciam e se tornam escravos do luxo
ou os marujos que a embarcam no generoso destino
de suas frotas
batidas pelos mares incógnitos
para depois, acaso, abandoná-la
numa angra de sólidos ciprestes,

assim como os que lidam com essa forma,
vazam a linha de contorno, buscam
no campo ilimitado, mas não raro ilusório,
de suas tantas aparências esdrúxulas
uma indicação de sentido para os gestos humanos
que a elaboram e transmitem á vida,

assim como os que indagam seu gênio,
e a ele se curvam, confrangidos
à dura aceitação da realidade,
assim, minha existência, eu te persigo
na beleza da tarde e me debruço
em doce curvatura sobre o Arno.

                   (de Língua franca, 1968)



PAISAGEM VOANDO PARA O ORGASMO

Trens sonolentos resfolegam
na gare do escuro rostos antigos se alumbram
e nos sorriem discreta-
mente a razão se estilhaça os sentidos
se destampam os cheiros se condensam os sabores
se associam ao cuspe a vida nos penetra o vento
nos penteia e espalha
por coloridas areias os dias nos dividem
os horários nos limitam a memória escasseia o mar
devolve ondas vazias
em que já fomos levados
nas noites frias de outrora o outro espia o outro espera o outro
nos sedimenta em nosso desvario
e ensina um corpo à solidão
o outro ampara nossa queda beija
nossos pudores e a boca
sempre entupida de espanto o canto explode
o galo canta a cama range o ar se fende o riso
nos comunica o gosto diferente
desse gesto largado o riso alarga eleva desarruma as gavetas
da nossa servidão cotidiana.

                   (de Esqueci de avisar que estou vivo, 1973) *




O APANHADOR NO CAMPO

Fruta e mulher no mesmo pé de caqui
no qual espantando os mosquitos eu trepo
para apanhar como um garoto a fruta
e apreciar, comendoá lá no alto, a mulher
que ficou lá embaixo me esperando subir
e agora vejo se mexendo entre as folhas,
com seus olhos de mel, seus ombros secos,
enquanto me contorciono todo subindo
entre línguas de sol, roçar de galhos,
para alcançar e arremessar para ela,
no ponto mais extremo, o caqui mais doce.

                   (de Argumentos invisíveis, 1995)




A LAGOA DOS OLHARES

No fundo, ninguém conhece
ninguém.  A não ser por alto.
Mas na hora dos encontros,
quando os litígios se afogam
na lagoa dos olhares,
quando surge entre dois a igualdade
de um ponto de vista ao ponto
sem ônus de animosidade,

nos momentos assim, que até nos ônibus
lotados podem acontecer de repente,
se aos solavancos ali olhos se cruzam
no mais perfeito entendimento possível,

nos momentos amenos em que as pessoas
(uma no mar da outra mergulhadas
por atração ou forte simpatia)
deixam de perceber que se ignoram,
isso é tudo no que podem no tocante
ao que existe para conhecer do outro lado.

Quando nos vemos, de nós embevecidos
na serena permuta de um instante
em que a emoção de viver nos aglutina,
a presença da espécie rarefaz-se, nosso amor pacifica
qualquer onda de susto ou qualquer guerra.

Depois, contudo, cada qual volta ao seu casulo,
solucionando-se, ou não, na solidão.
É bom se ver, distrai se entreolhar
e é ótimo se conhecer, assim por alto.
Ninguém porém entrega a senha do mistério
que é humano ser um só na multidão. 

                   (de Trilha, 2015)


* com exceção “Paisagem voando para o orgasmo”, os demais poemas encontram-se no volume Leonardo Fróes da Coleção Postal.