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domingo, 26 de março de 2017

NUNCA ESTIVEMOS TANTO EM GOTHAM CITY

 
foto de Rui Mendes
        
        História, crianças:  Setembro de 1969. Para a apresentação da canção “Gotham City”, de Jards Macalé com letra de Capinam, no IV Festival Internacional da Canção, (TV Globo), sobem ao palco do Maracanãzinho o próprio Macalé, completamente desconhecido do grande -  e mesmo  do pequeno – público,  mulato barbudo, óculos fundo de garrafa, vestindo uma bata que mais parecia um camisolão; além dele,  os quatro integrantes da banda de rock Os Brazões, sem camisa, corpos pintados de urucum, com colares em torno da testa, cheios de guizos ruidoso; e mais  ninguém menos que Naná Vasconcelos – parece que incorporado à última hora à troupe – que saltava pelo palco e comandava as tumbadoras.  A orquestra atacou com a solenidade possível – o Padrão Globo começava a sua hegemonia – a introdução, um pastiche irôonico do prefixo de abertura  do seriado Batman em arranjo a cargo de Rogério Duprat.  Logo a seguir as tumbadoras de Naná e as guitarras distorcidas dos Brazões entravam para uma platéia cujo aturdimento chegaria ao ápice nos versos do refrão berrados por Macalé e ecoados pelos músicos:  “CUIDADO! Há um morcego na porta principal/CUIDADO! Há um abismo na porta principal!!!” 
         
            A letra de Capinam era a seguinte:

Aos 15 anos eu nasci em Gotham city
Era um céu alaranjado em Gotham city
Caçavam bruxas no telhado em Gotham city
No dia da independência nacional

Cuidado! Há um morcego na porta principal
Cuidado! Há um abismo na porta principal

Eu fiz um quarto quase azul em Gotham city
Sobre os muros altos da tradição em Gotham city
No cinto de utilidades as verdades:  Deus ajuda
A quem cedo madruga em Gotham city

Cuidado! Há um morcego na porta principal
Cuidado! Há um abismo na porta principal

Só serei livre se sair de Gotham city
Agora vivo o que  vivo em Gotham city
Mas vou fugir com meu amor de Gotham city
A saída é a porta principal

Cuidado! Há um morcego na porta principal
Cuidado! Há um abismo na porta principal

No céu de Gotham city há um sinal
Sistema elétrico e nervoso contra o mal
Meu amor não dorme, meu amor não sonha
Não se fala mais de amor em Gotham city

Cuidado! Há um morcego na porta principal
Cuidado! Há um abismo na porta principal

       Ouça-se a gravação em "ambiente de festival":




Estava ouvindo esta semana mesmo e comentando com amigos e os filhos  essa gravação  ao vivo da apresentação de “Gotham Ciy”.   Há tempos não a ouvia,  a performance eu vi pela TV nos meus 13 anos, entre aturdido e fascinado (é o que Hugo Friedrich chama de “efeito de dissonância) pelo que se passava naquele palco. E não há como deixar de anotar (com auxílio do livro de Zuza Homem de Mello, A era dos festivais: uma parábola)a apresentação de Jards Macalé veio logo na sequência da também atordoante "Charles Anjo 45", com Jorge Ben e o Trio Mocotó.  E foi o festival que teve ainda a deliciosa "Ando meio desligado", dos Mutantes - claro que nenhuma delas recebeu premiação expressiva.  E o que se passava naquele palco apenas  nove meses depois da decretação do AI-5, abrindo o mais terrível período de repressão da história brasileira do século XX , precisa ser dimensionado entre os efeitos traumáticos  dos mais radicais experimentos a que o acirramento do final do  Tropicalismo havia levado a (de)composição de canções – para falar com Tatit – no ano anterior:   naquele palco toda a performance de “Gotham City”  inscreveu-se     no âmbito de uma estridência excessiva que impedia – deliberadamente, diga-se -  sua boa recepção pelo amplo público fora do círculo restritíssimo de iniciados nas discussões envolvendo vanguarda, canções, tropicalismo e, sobretudo, as relações entre arte e política. Não havia como compreender o óbvio:  “há um morcego na porta principal.”  Batman, o justiceiro, quem é ele, quem era ele, quem eram  nossos morcegos justiceiros, que justiça defendiam, já que se queriam  crer onipresentes a partir do sinal nos céus de Gotham City?  Seria o vero custódio ou seria  o que não poderíamos em hipótese alguma deixá-lo escapar?  Não importa, a pergunta é a essa altura retórica, nós o deixamos escapar e não poderia: lá está(va) ele, na porta principal, e não é/era o corvo sobre o busto de Palas da sala escura do poeta. Éra o Estado terrorista, o que se valeu do ato arbitrário para prender, fazer desaparecer, saquear, seqüestrar, matar, na certeza da impunidade.  Que importa a história, que importa um nome a zelar velar  se as balsas cheias dos despojos das cidades saqueadas não interrompem sua furtiva viagem noturna?

         Estamos hoje, 48 anos depois, capazes de enxergá-lo? Aí estão os guardiões simbólicos da ordem,  e todos eles  valem-se do que velam:  caçam bruxas a pretexto de resguardar dias santificados pelo Estado que se faz de laico, enquanto esperam que cumpramos nossos papéis acautelados e amordaçados como múmias atadas em clichês: não pense em crise, trabalhe, mulher vá ás compras e traz o orçamento que eu libero as verbas, “Deus ajuda a quem cedo madruga”.  Certamente não foi à toa que Capinan, o letrista de “Gotham City”, havia escrito antes mesmo, com 20 e poucos anos,  o mais incisivo poema político de toda a década de 60, pouco depois do golpe de 64,   “Inquisitorial”, a que devemos sempre voltar 
(cf. aqui:  http://robertobozzetti.blogspot.com.br/2012/02/jose-carlos-capinan.htmlAli se lê entre tantas passagens admiráveis:

“Pergunto: tu, ante o presente,
Como te defines ao que será passado?

Há urgência de resposta, antes que a noite chegue.

Carregarás fardos para evitar
(Repara que o rio corre e a noite vem como onda)
Ou deixarás que apenas sejamos o tempo
E irreparável memória?

(...)

Ah, como louvamos o tempo
Que nos põe distantes,
Só importando em memória
A nossa escolha e saída.”

Pois aqui estamos nós hoje ante a gravidade do momento presente.  As redes sociais brincam que na verdade são vários morcegos e de fato são.  Mas o peso do tempo é grave.

         Garotos:  José Guilherme Merquior dedicou ao primeiro livro de Capinam, Inquisitorial, uma alentado ensaio, no qual anota com preciosa precisão sobre a dicção do poeta: fala Merquior em uma gravidade sem tristeza. Espantoso que Capinam fosse pouco mais do que um garoto – tinha 25 anos - a despertar a atenção de um crítico da importância de Merquior?  O texto vem assinado “Paris, abril de 1968”.  Merquior tinha 27.  Às portas do maio de 68, Paris.  Tempos.




Na mosca, Merquior: O poeta letrista fala da gravidade do que ocorre no mundo (o plano do conteúdo) em uma elocução (o plano da forma) grave:   seu verso é fluido,  mas tem peso – o que significa precisa e metaforicamente: não afunda - , o que responde, de sua parte, por sua não tristeza – não é empolado, não é pedante, pernóstico ou perdido em retoricismos.  Que se recordem algumas de suas letras: “Jogaram a viola no mundo/mas fui lá no fundo buscar” ou aquela admirável esconjuração da morte: “gritando para assustar a coragem da inimiga”, ou ainda “não deixar nada mais do que as cinzas de um cigarro”, sem falar na sublime síntese em que define o desejo: “ele pesa sobre a terra mais que a lei da gravidade”.  Pois em “Gotham City” essa gravidade não dorme:  a base da letra é a métrica dodecassilábica (com variantes, principalmente para a articulação com a melodia, como de resto é sempre nas canções bem resolvidas) e a extensão e gravidade dos versos é o penhor da espalhafatosa (mas coerente com o momento)  performance de seu parceiro Macalé: “Só serei livre se sair de Gotham city/Agora vivo o que  vivo em Gotham city”.  A “gravidade sem tristeza” para definir a dicção de Capinam é um admirável achado de Merquior, sem mais.



Em apresentações mais recentes, Jards Macalé tem cantado “Gotham City”.  Mudou a performance, ficou mais afim a seu histrionismo de malandro-porraloca-letrado-culto-carioca, a pedir que o vaiem ao final de cada apresentação.  Se perde em gravidade, a performance reveste-se  de sentidos matreiros que atestam a permanência de alguma forma do estado geral de coisas flagrado na canção.  Confira-se aqui nesta apresentação em São Paulo, 2015: 



O abismo é inquietante.  Aporia, salto.  Ei-lo.  É a saída, sendo ao mesmo tempo o lócus do morcego. Não saímos de Gotham City, ainda vivemos o que vivemos em Gotham City, é absolutamente urgente que isso fique claro.  Nós não enfrentamos o morcego, ele é o poder do banditismo feito lei, nós sabemos disso, como sabemos o que esses justiceiros fizeram todos esses anos, em que os que viveram felizes em Gotham City habituaram-se chamar de “terrorista” uma mulher que teve a coragem de pegar  em armas e rumar para o abismo. Melhor dizendo:  chamaram – e chamam – de terroristas todos os que tiveram a coragem de lutar contra o arbítrio, ainda que alguns tenham se beneficiado – e continuem se beneficiando – disso. O fato de Dilma Roussef não constituir um caso isolado atesta essa funesta permanência.

         É preciso fechar estas descosturadas anotações  pedindo desculpas pela magnífica foto (infelizmente não achei os créditos) de tão medonha criatura.  Melhor tradução para o que tentei dizer não há.


segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

TORQUATO NETO TRÊS VEZES



1.    De “literato cantábile”

a)    A virtude é a mãe do vício
conforme se sabe:
acabe logo comigo
ou se acabe.

b)    A virtude e o próprio vício
- conforme se sabe –
estão no fim, no início
da chave.

c)    Chuvas da virtude, o vício,
conforme se sabe:
é nela propriamente que eu me ligo,
nem disco, nem filme:
nada, amizade.  Chuvas de virtude:
chaves.

d)    (amar-te/a morte/morrer:
há urubus no telhado e a carne seca
é servida: um escorpião encravado
na sua própria ferida, não escapa: só escapo
pela porta da saída).

e)    A virtude, a mãe do vício
como eu tenho vinte dedos,
ainda, e ainda é cedo:
você olha nos meus olhos
mas não vê nada, se lembra?

f)     A virtude
mais o vício: início da
MINHA
transa, início, fácil, termino:
“como dois mais dois são cinco”
como Deus é precipício,
durma,
e nem com Deus no hospício
(durma) nem o hospicio
É refúgio.  Fuja.


2.    COGITO

Eu sou como eu sou
pronome
pessoal instranferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

Eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

Eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

Eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim.



3.    PESSOAL INTRANSFERÍVEL

Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos.  É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela.  Nada no bolso e nas mãos.  Sabendo: perigoso, divino, maravilhoso.
Poetar é simples, como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena, etc.  difícil é não correr com os versos debaixo do braço. Difícil é não cortar o cabelo quando a barra pesa.  Difícil, pra quem não é poeta, é não trair a sua poesia, que, pensando bem, não é nada, se você está sempre pronto a temer tudo, menos o ridículo de declamar versinhos sorridentes.  E sair por aí, ainda por cima sorridente mestre de cerimônias, “herdeiro” da poesia dos que levaram a coisa até o fim e continuam levando, graças a Deus.
E fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar: citação: leve um homem e um boi ao matadouro.  O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi.  Adeusão.
                        (In: Os últimos dias de paupéria, 1973)
           

Torquato Neto (1944-1972) era piauiense, ligado ao grupo tropicalista, trabalhava como jornalista e agitador cultural, sendo ainda um letrista importante, com parcerias de vulto com Caetano Veloso (“Mamãe, coragem: “Ai de mim Copacabana”...), Gilberto Gil (“Geleia Geral”, “Domingou”...), Edu Lobo (“Pra dizer adeus”...), Jards Macalé (“Let’s play that”), entre outros. 
Torquato suicidou-se no dia de seu aniversário de 28 anos. Tinha diversas internações em hospitais psiquiátricos, e seus escritos dispersos (poemas, letras, cartas, anotações, diários etc) foram reunidos pela primeira vez por Waly Salomão na obra póstuma Os últimos dias de paupéria, cuja primeira edição foi lançada no ano seguinte ao de sua morte (uma 2ª. edição, revista e ampliada, saiu em 1982).   Em 2004, Paulo Roberto Pires lançou Torquatália, em dois volumes (Do lado de dentro e Geleia geral) reunindo muito material inédito que se acrescentou ao que já havia antes saído. 
Torquato é um poeta-letrista dos mais ricos de sua geração: como poeta, é nitidamente marcado por Drummond, a que eu acrescentaria ainda Oswald e a presença do experimentalismo concretista.  Mas talvez o mais interessante do que deixou escrito é a constante preocupação de enlaçar ética e estética, fazer da linguagem um território a ser explorado de forma inseparável dos compromissos éticos com os quais severamente sua geração – e sua “turma “ – teve que se haver. Essa postura, “vitalista”, por assim dizer, faz com que possa pensar em Torquato como um nome chave (talvez junto com Waly) de transição entre a geração experimentalista das neovanguardas dos anos 60 e a geração dos poetas marginais da década seguinte. 
No disco Cinema transcendental, de 1979, Caetano inclui “Cajuína”, uma canção homenagem-recordação de/a Torquato.  Sérgio Brito, dos Titãs, põe melodia no texto de “Go back”, até então inédita, e a canção vira um dos grandes sucessos da banda em 1988.



quinta-feira, 28 de julho de 2011

O MAIS-QUE-PERFEITO: JARDS MACALÉ E VINÍCIUS DE MORAES



Como se sabe, Vinícius de Moraes teve quatro parceiros principais (pela ordem de entrada em cena, Tom, Carlinhos Lyra, Baden Powell e Toquinho), além de ter composto com muita gente uma canção ou outra, ou às vezes até um número bem significativo  (casos de Edu Lobo, Francis Hime e Chico).  Mas entre aqueles parceiros bem fortuitos, um deles em especial, Jards Macalé, compôs com o poeta uma das canções que mais me tocam de tudo o que Vinícius fez. Poderosa pepita em termos de letra e melodia, composta parece em meados dos anos 60, “O mais-que-perfeito”  é exemplo de um tipo de canção em que Macalé é craque, possivelmente o melhor de sua geração:  a canção melodiosa, derivada dos gêneros ancestrais da modinha e da seresta. Clara Nunes a gravou, mas posto aqui a gravação do próprio Jards Macalé no extraordinário CD O q faço é música, lançado em 1998.
A letra:
Ah quem me dera ir-me
contigo agora
a um horizonte firme
comum embora

Ah quem me dera amar-te
sem mais ciúmes
de alguém nalgum lugar
que nem presumes

Ah quem me dera ver-te
sempre a meu lado
sem precisar dizer-te
jamais: Cuidado!

Ah quem me dera ter-te
como um lugar
plantado num chão verde
para eu morar-te

Ah quem me dera ter-te
morar-te até morrer-te.

                O meu leitor aqui já deve ter se tocado de que uma das minhas grandes admirações musicais é Jards Macalé.  Porque é mesmo.   Sua elegância melodiosa, seu senso extraordinário de estar à vontade no meio de intrincadas harmonias com seu violão cortante e explosivo – quando a canção e a performance  assim o exigem – ao lado de sua voz e seu canto pouco convencionais, num tom a um só tempo sombrio, doce e gutural, tudo isso faz com que a audição de seus CDs seja sempre fonte de prazer e descoberta.

domingo, 1 de maio de 2011

LUPICÍNIO RODRIGUES NO FAROL DE FARO






            QUEM HÁ DE DIZER
Quem há de dizer
Que quem vocês estão vendo
Naquela mesa bebendo
É o meu querido amor
Reparem bem que
Toda vez que ela fala
Ilumina mais a sala
Do que a luz do refletor
O cabaré se inflama
Quando ela dança
E com a mesma esperança
Todos lhe põem o olhar
E eu, o dono,
Aqui no meu abandono
Espero louco de sono
O cabaré terminar

“Rapaz, leva esta mulher contigo”
Disse uma vez um amigo
Quando nos viu conversar
“Vocês se amam
E o amor deve ser sagrado
O resto deixa de lado
Vai construir o teu lar”
Palavra, quase aceitei o conselho
O mundo, este grande espelho,
Que me fez pensar assim:
Ela nasceu com o destino da lua
Pra todos que andam na rua
Não vai viver só pra mim

In: A música brasileira por seus autores e intérpretes. v.1 - SESC-SP


            O mau-gosto é uma questão complicada em arte.  Pode ser detectado na imperícia, na inépcia, na falta de formação consistente ao lidar com técnicas e  materiais, na “naïveté”, nas formas cediçamente degradadas de se buscar atingir o “gosto comum” médio, na atração pelo “trash”, enfim, pode se originar de uma porção de fatores, mas não é esta a sua principal complicação, e sim porque esbarra de forma inexorável no lado do receptor, que é quem decide, discerne, descortina, rebaixa, desqualifica o que assim é taxado. 
            Relendo o que escrevi aí em cima, não gosto. Ficou rombudo. Mas não vou apagar não. Vou em frente e vou no meio de todos os riscos.  Digo que enorme parte do que é veiculado pela mídia atualmente no Brasil é de um mau-gosto monumentalizado, um tsunami de breguice, no qual o esforço de pescar algo que se mantenha vivo e vigoroso demanda paciência na hora de separar o joio do trigo e optar... pelo joio – que é como Caetano uma vez respondeu à acusação de que gravava muitas banalidades.
            Releio, reescrevo, releio.  Está só um pouquinho menos rombudo.  Dane-se: quero falar aqui de Lupicínio, e quero que o meu leitor seja mais uma vez ouvinte do que postei aqui na vitrolinha.  Porque Lupicínio em certo sentido é uma radicalização do mau-gosto. E é estupendo compositor, o cantor por excelência do sentimento da “cornitude”, como dele escreveu Augusto de Campos em 1967.  Num texto inaugural de apreciação da obra lupicínica (o adjetivo é estranhamente apropriado) feito por um dos intelectuais mais “alta cultura” do Brasil, Augusto acerta na mosca em vários momentos (em alguns outros, já não acho tanto), como quando diz que após a onda “clean, “cool” da bossa nova, a obra de Lupicínio passa a ser olhada retrospectivamente “relegada à faixa do samba-canção bolerizado e descaracterizado, quando o seu caso não é realmente esse.  Suas músicas podem lidar com o banal, mas não são banais.” O universo muito particular de Lupicínio é curioso porque justamente não é nada de muito particular em ambiência: é o “bas-fond”, isto é, o cabaré, o puteiro, o pé-sujo, lugares onde transitam seus personagens amargurados, vingativos, ressentidos ou às vezes tão-somente resignados, cada um com sua “mala suerte”.  Particular é sua arte não-sublimada, carregada nas tintas, suas letras recheadas de senso comum que explodem aqui e ali em imagens surpreendentes, que passam uma incrível veracidade.  Sobre isso, Luiz Tatit escreveu: “O talento desse compositor manifesta-se, sobretudo, na descoberta de formas específicas para traduzir o lugar-comum visando, não à particularidade, mas à ampliação\o do consenso.  Ele procura fisgar o essencial de sua experiência para que mais gente sinta a autenticidade dos seus sentimentos e mais gente se identifique com sua posição narrativa.”
            Como um exemplo do que Tatit acertadamente diz veja-se na canção postada a posição narrativa do eu que canta: ele dirige-se àqueles todos que estão no cabaret para contar sua vida com a mulher que todos eles admiram: “vocês estão vendo...” o mundo, por sua vez,  lhe fala pelo conselho do amigo, para que preserve o “amor sagrado”, que ele, no entanto, só é capaz de preservar de maneira bem pouco sagrada, como “o dono” daquela que “dança no cabaré” (aqui vai uma concessão ao decoro).  Esse “dono” assumido tem a ver com o indisfarçável (que não quer mesmo se disfarçar) mau-gosto de que eu falei antes.  Os versos acasalam a vulgaridade da cena com o inusitado das imagens: “toda vez que ela fala ilumina mais a sala do que a luz do refletor”.  O respeito à mulher que é de “todos que andam na rua” é um respeito a si próprio, para evitar o afastamento que provavelmente lhe seria fatal.
            Na entrevista concedia a Fernando Faro em 1973, de onde pincei o material desta postagem, todas as declarações de Lupicínio são impressionantes.  Com sua voz que se equilibra entre mansa e insidiosa, Lupi conta estórias incríveis a respeito de quase todas as canções que canta.  A maneira de falar, de contar as desilusões que motivaram cada canção mantém perfeita continuidade com o que ele canta em seguida.  Optei por uma canção sobre a qual ele nada fala.  Vale a pena conhecer o CD.
            Por fim, vale registrar que Lupicínio fascina a música brasileira pós-bossa nova com uma efetiva força de permanência.  De Paulinho da Viola, que gravou magistralmente “Nervos de aço” e sempre a canta em seus shows (“eu só sei é que quando a vejo me dá um desejo de morte ou de dor”), a Arrigo Barnabé (que anda levando em vários palcos – que eu saiba ainda não gravou em CD, embora haja vídeos por aí pelos youtube – a “Caixa de ódio”, projeto dedicado a Lupi), passando por Caetano, Bethânia, Gal, Gil, Jards Macalé e ainda Arnaldo Antunes, que gravou num CD “Judiaria” (que tem o verso terrível “estou lhe mostrando a porta da rua para que você saia sem eu lhe bater”), e outros que provavelmente desconheço ou estou esquecendo, Lupi continua vivo.  Certamente por muito tempo ainda. E ainda bem.  

sábado, 12 de fevereiro de 2011

MOVIMENTO DOS BARCOS: JARDS MACALÉ



Canção de Jards Macalé com letra de Capinam

Estou cansado e você também
vou sair sem abrir a porta
e não voltar nunca mais
desculpe a paz que eu lhe roubei
e o futuro esperado que eu não dei
é impossível levar um barco sem temporais
e suportar a vida
como um momento além do cais
que passa ao largo do nosso corpo
não quero ficar dando adeus
as coisas passando
eu quero
é passar com elas
eu quero
e não deixar nada mais
do que as cinzas de um cigarro
e a marca de um abraço no teu corpo
não
não sou eu quem vai ficar no porto
chorando não
lamentando o eterno movimento
movimento dos barcos
movimento
movimento dos vbarcos
movimento

Uma canção linda, sombria, lançada por Maria Bethânia no show “Rosa dos Ventos”, de 1971, e que aqui podemos ouvir na gravação do próprio Macalé em seu primeiro disco individual, de 1972 (ele a regravou em seu disco de 1998, o magistral O q faço é música).
Jards Macalé vem compondo, ao longo de mais de 40 anos de trajetória, algumas muitas obras-primas, com parceiros como Capinam (com quem fez ainda, entre outras, “Gotham City”, escândalo no festival de 1969), ), “Let’s play that” (com Torquato Neto), Waly Salomão (“Vapor barato”, possivelmente sua canção mais conhecida) , além de ostentar uma remota e arrebatadora parceria com Vinícius de Moraes (“O mais-que-perfeito”) e muitas outras.

Em 2005 a Biscoito Fino lançou o CD Real Grandeza, reunindo as parcerias de Macalé com Waly Salomão. Mais recentemente, Marcos Abujamra dirigiu Jards Macalé: Um morcego na porta principal, que acaba de ser lançado em DVD. Vale a pena conhecer este que é um dos mais refinados violonistas e compositores do cenário musical brasileiro.