quarta-feira, 28 de agosto de 2013

AH, UM SONETO... DE ANTONIO CÍCERO



VITRINE

Que divisa o olhar desse moreno?
Namora os tênis atrás da vitrine?
Ou a vidraça que os devassa e inibe
os seus reflexos serve-lhe de espelho
e ele recai na imagem de si mesmo,
igualmente visível e intangivel?
É assim tantálica que ela me atinge
obliquamente e ao mesmo tempo em cheio
e mesmeriza, e sinto meio como
se eu o despisse e ele mal percebesse.
Quando olha para trás um instante, atino
sonhar e, salvo engano, ter nos olhos
cacos de um campo de futebol verde
feito o pano das mesas dos cassinos.
 
In: A cidade e os livros. RJ: Record, 2002.

domingo, 25 de agosto de 2013

CANÇÃO DE NAMORADOS


Quem nos vê assim endomingados
duvido que imagine, e se  imagina
(ela por baixo eu por cima
ela por cima eu por baixo) se per-
signa,  que é um dentro de um
e dentre o outro e é concomi-
tantemente tanto nós por cima
metendentes  e  dedos em corpotodo
dédalo e latente,  e lactantes
jatos  e humores, laços até lasso
o corpo  distender-se e nós
ganharmos a rua restaurados.


Agora que estamos tão pracinha
como ousar sequer pensar em pensar
que é  amiúde no seu cu que o olho
cego e  a minha famélica língua
lá pratica os verbos todos de in-
saciedade, e na cidade
da igreja à curva da esquina
(onde sumimos a toda brida
ante os olhos dos pacatos
e em pó da rua  pactários
nos tornamos), vigora o mesmo ímpeto
em que pela manhã nos acordamos
e da cantada à cantata e daí aos
jorros cachoeiras e cascatas
como num antigo samba
exaltação dos sentidos

 
oh epifania féerie paisagem
tropical ave-maria salve
nostalgia mortos do domingo

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

MANUEL BANDEIRA





A VIRGEM MARIA

 

O oficial do registro civil, o coletor de impostos, o mordomo da Santa Casa e o administrador do cemitério de São João Batista
Cavaram com enxadas
Com pás
Com as unhas
Com os dentes
Cavaram uma cova mais funda que o meu suspiro de renúncia
Depois me botaram lá dentro
E puseram por cima
As Tábuas da Lei

Mas eu lá de dentro do fundo da treva do chão da cova
Eu ouvia a vozinha da Virgem Maria
Dizer que fazia sol lá fora
Dizer  i n s i s t e n t e m e n t e
Que fazia sol lá fora.
 

Manuel Bandeira. Poesia e prosa v. I. RJ: Nova Aguilar, 1958.

domingo, 18 de agosto de 2013

OBVERSÃO

ilustração de Talarico

 
 
farsas existem.
um pelo sinal
um beijo nos ombros
um gemido
tudo pode ser
ou não ser
 
pegar a muque
gozar a entre
beijar a dente
pode ser não
ou tudo ser
 
como converter.

 

 

Roberto Bozzetti. Firma Irreconhecível. SP: Oficina Raquel, 2009.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

MURILO MENDES



A MULHER ANÔNIMA

 

Lembra-te daquela mulher
Que um dia te acenou do alto de uma varanda.
Daquela forma admirável mas sem nome
Que uma tarde te disse adeus
Enquanto o automóvel parou um minuto na estrada.


Lembra-te da mulher pouco decorativa, mulher simples
Que não tiveste coragem de arrancar violento ao espaço
E que certamente nunca mais tornarás a ver.
Lembra-te da bela mulher que estremeceu por ti
E sê-lhe fiel até o último dia da tua vida.
 

Murilo Mendes. Poesia completa e prosa. RJ: Nova Aguilar, 1994.

Ilustração de Talarico
 

sábado, 10 de agosto de 2013

OS PEREGRINOS


Ilustração de Talarico


A Vinícius de Moraes

 

Por desfiladeiros erodidos entre lixões
queimadas e pavimentação muros em ruínas
escombros trailers banheiros químicos
passam armentos alegres de peregrinos
que lindos ver meninas e meninos
que lindo vê-los
daqui de onde o mundo me retira saúdo-os em silêncio
adivinho o vento nos seus cabelos
imprimo meus dedos em seus pensamentos
que trepem... trepem  bastante os meninos
e as meninas uns com os outros e com outras
e outras e outras e outros outros tanto se chupem
mordam-se bebam-se extenuem-se fodam-se e caiam
desfalecidos sem mais energia alguma
para com o Senhor
e não se lembrem mais das contas a prestar
ao Senhor
e desfaçam-se os armentos do Senhor.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

INFAUSTO


 

 
Mais Pessoa do que Pessoa, o tempo
soa: me advirto

-

preguiça, poema, de escrever-te
(desvirtude troa)

-

vício virgem, sangrenta solitude,
peste, o tempo
voa até que nada
reste e o mais
que reste o mesmo
(ou outro) tempo
roa

-

preciso recriar-me, saber
multiplicar-me

-

viver alheias mortes e vidas
ou (se não) dividir
lápides, chão
poeira, pó,

-

lá onde o nome anônimo
se esbroa.


sábado, 3 de agosto de 2013

BERTOLT BRECHT


 
 
O CHANCELER ABSTÊMIO

 

Eu soube que o Chanceler não bebe
Não come carne e não fuma
E mora em uma casa pequena.
Mas também soube que os pobres
Passam fome e morrem na miséria.
Bem melhor seria um Estado em que se dissesse:
O Chanceler está sempre bêbado nas reuniões
Observando a fumaça de seus cachimbos
Alguns iletrados mudam as leis
Pobres não há.

 

Tradução de Paulo César Souza

 

In: Brecht poemas 1913-1956. Sel. e trad. de Paulo César Souza.  SP: Brasiliense, 1986.

 

*Adolf Hitler foi empossado Chanceler da Alemanha em janeiro de 1933.  Um mês depois incendiou o prédio do Reichstag (Parlamento).  No dia seguinte ao incêndio, Brecht, então já militante comunista, exila-se, só voltando a viver na Alemanha em 1949.