sábado, 29 de março de 2014

ELESBÃO RIBEIRO TRÊS VEZES



concebido sem pecado

ao verem-se diante do filho concebido sem pecado
outros filhos de deus sentiram-se sujos

filhos de putas
porque concebidos por conjunção carnal

filhos de putas
revoltados em parte
pelo enxovalhamento em que deus pai os jogara

filhos de putas
e por inveja de outra parte
pelo irmão concebido sem pecado

cobriram de porrada o filho de deus

 

baudelairiana

diz a minha bela
doce e graciosa
querida e amada
precisamos ter pobres
precisa haver pobres

pergunta-me então
quem há de varrer as ruas
por onde passamos
 

 
concordância

a minha namorada não deve gostar de mim
tem lá suas razões
é doutora por cá e pós por lá
poliglota fala inglês francês e português
 
não sabe cozinhar
propus-lhe um trato
eu cozinho e tu lavas o prato
não aceitou
medo da louça lhe estragar as unhas
 
definitivamente não sei

 

                        Elesbão Ribeiro.  Estação Piedade. Rio: TextoTerritório, 2013.

terça-feira, 25 de março de 2014

H. DOBAL




 

MELANCHOLIA RURAL

 

Aqui as reses vêm chorar os seus mortos,
O sangue ferido que encharcou   a terra.
Aqui os pássaros tristes
no verão interminável
choram a vida difícil
a morte fácil
e os dependentes da terra
dobrados sobre si mesmos
seis dias na semana
vão cavando os seus túmulos.
 

 

                                   In: A província deserta. RJ: Artenova, 1974.


sábado, 22 de março de 2014

EDUARDO STERZI



 

RETRATOS

                        [Com o Tarso, antes; e, agora, para o Tarso]

 

1

mundo mundo
ou país
            bloqueado
de onde a poesia,
drástico estrume,
escapa –
recolhe o
             tentáculo:
o tempo é
             de fezes
 
 
2

uma flor desponta
em subsolo (humana,
medrosa): pétala, refém
de sapatos,
            afronta
o sol – o asfalto
me veste, estrito
paletó: a argila
o sigilo, o selo
do só

 
3

sigo,
             pressinto
a noite
                  – corrosiva –
                                          em mim:
tempestade
               anulando a
paisagem,
              estado
de emergência,
                        enxurrada
(que não
               me leva,
que não
               me lava)
 
 
4

mãos imundas,
melhor devastá-las:
que o papel receba,
tímida chuva,
partículas suspensas
(mãos
              pensas),
o chumbo
               dos ares
inspirados
                (à sombra esguia
                 de uma
                 girafa intolerável)
 
 
5

no quarto
de nus, ferido
e calvo, depois
do assalto –
vigília ou
velório, cabis-
baixo, noite
em falso
 
 
6
 
nas entranhas
desata
              o cadarço,
aos pés –
de onde
              país
bloqueado,
valsa de mortos,
em curto-
circuito,
vai (não
vai)
 
 
7
 
trouxeste o mapa?  por
quais estradas
fugir ao
vasto (devastado)
coração?  toda
estrada é
pedra
            seqüestrada,
estrago
            de ossos,
rumor de
            máquina

 
Eduardo Sterzi.  Aleijão. RJ: 7 Letras, 2009.
 


segunda-feira, 17 de março de 2014

FABIANO CALIXTO



E-MAIL A MURILO MENDES

 

colibris, nos cílios do vento,
bebem de rios inventados

formigas vermelhas carregam lascas de pinho
sobre a pele glacial de um arlequim morto

poemas beijam a copa das árvores
e, estas, em êxtase, estendem os ruídos do outono

as três marias doam brancuras às horas azuis
a procissão está grávida de quantos milagres?

as frutas sobre a mesa, próximas à colher de prata,
supremas e humanas, em cor, água e gesto

a morte também nos leva as canções?
a morte nunca esquece?

a letra-harpa foi morar na fábula
dias frágeis abandonam insônia no piano

 

 

                                   Fabiano Calixto. Música possível. 7Letras/CosacNaify, 2006.

 

sexta-feira, 14 de março de 2014

ANDRÉ CAPILÉ


RAPACE

se liga
no babado

é forte

fim de bossa
fim de bamba
fim de balanço
      balaço

                                   :

                        eu sou rapace e de quem rapace é





                                               André Capilé.  Rapace. TJ: TextoTerritório, 2012. 




(confiram as publicações da TextoTerritório e toda a agenda em http://www.textoterritorio.pro.br/site/index.php)

sábado, 8 de março de 2014

JOHNNY VAI À GUERRA

Cena de Johnny vai à guerra, de Dalton Trumbo



JOHNNY VAI À GUERRA


 

Thanatos, o vencedor.
Cristo, o impotente.

Cristo, o que assevera:
Nada tenho com isto
nada posso, desisto, os atos
quaisquer que sejam não deterão
o trem dos mortos,
(um truque de cartas barato
o ar vertido em whisky
e é só isso)

 zang-tumb-tuuum
zang-tumb-tuuum
o trem dos mortos prossegue
e dentro
corpos de plena vida
aguardam a baldeação
para o trespasse,
jogando cartas, sonhando a tortura
e seu conforto
(apenas algumas horas
até o fim)

zang-tumb-tuuum
zang-tumb-tuuum 

cadáver de criança  espreita
entre pilares de De Chirico
e sonha
uma ordenação do mundo, um sonho
em que será esquecida.

 Em breve todos
- esqueletos desmembrados
na paz de lodo parecem sorrir
rumo ao fundo lodo
libertos das dores
de cinzas, cicatrizes
lodo onde não importa
a vara do pai perdida
o perdão do pai
o alistamento voluntário
o Merry Christmas
a morfina 

Não há retórica possível
não há estratagema, a não ser 

(usar a cabeça, usar a cabeça!) 

conformar-se em estar vivo
conceder perdão ao abismo.
 

Roberto Bozzetti. Firma irreconhecível.  RJ: Oficina Raquel, 2009.

quinta-feira, 6 de março de 2014

AH, UM SONETO... DE PAULO MENDES CAMPOS


AMOR CONDUSSE NOI AD UNA MORTE

 

Quando o olhar adivinhando a vida
Prende-se a outro olhar de criatura
O espaço se converte na moldura
O tempo incide incerto sem medida

As mãos que se procuram ficam presas
Os dedos estreitados lembram garras
Da ave de rapina quando agarra
A carne de outras aves indefesas

A pele encontra a pele e se arrepia
Oprime o peito o peito que estremece
O rosto o outro rosto desafia

A carne entrando a carne se consome
Suspira o corpo todo e desfalece
E triste volta a si com sede e fome.

 

            Poemas de Paulo Mendes Campos.  Civilização Brasileira/MEC, 1979.



Paolo e Francesca. Sergio Ferro

 

sábado, 1 de março de 2014

MORGENSTERN DUAS VEZES


VICE-VERSA

 

Um coelho parou no descampado
certo de que não fora notado.

 Porém, segurando um óculos de alcance
um homem observa a cada lance

do alto de um monte atentamente
o orelhudo anão à sua frente.

Por sua vez ele é visto sobretudo
por um Deus distante, meigo e mudo.
                                   

                                                Tradução de  Montez Magno

 

VICE VERSA

 
Ein Hase sitzt auf einer Wiese,
des Glaubens, niemand sähe diese.

Doch, im Besitze eines Zeisses,
betrachet voll gehaltnen Fleisses

vom vis-à-vis gelegnen Berg
ein Mensch den kleinen Löffelzwerg.

Ihn aber blickt hinwiederum
ein Gott von fern, mild und stumm.

 




 
NO PLANETA DAS MOSCAS
 
No planeta das moscas, o homem
não se acomoda nada bem:
pois o que aqui faz às moscas
elas lhe fazem lá, também.

 
Grudar em cartões melados
uma pessoa atrás de outra
e sendo muitos condenados
a boiar em cerveja doce.

 
Só num ponto se mostram as moscas
aos homens superiores: elas não
nos assam em broas ao forno,
nem nos bebem por distração.
 
                                                Tradução de Sebastião Uchoa Leite
 
AUF DEM FIEGENPLANETEN
 
Auf dem Fliegenplaneten,
da geht es dem Menschen nicht gut:
enn was er hier der Fliege,
die Fliege dort ihm tut.
 
An Bändern voll Honing kleben
die Menschen dort allesamt,
und andre sind zum Verleben
in süssliches Bier verdammt.

 
In Einem nur scheinen die Fliegen
dem Menschen vorauszutehn:
Man bäckt uns nicht in Semmeln,
Noch trinkt man uns aus Versehn.
 
                       
            In: Christian Morgenstern.  Canções da forca. SP: Roswitha Kempf, 1983.