domingo, 28 de setembro de 2014

QUEM VIVER


Há muito tempo que no vento sopram
as respostas que nunca responderam
a nada que queremos

O que será que ao fim que pode ser
e ao cabo será que  não seja mesmo
nada  demais

Quando enfim a hora ansiada e anunciada
chegar às badaladas e nos dentes rubros  de metralha
nada a não ser
 
talvez

algumas gaivotas e outras asas
de vôo carniceiro revelem indiferentes
o vão resultado de nossas
certezas

 

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

AH, UM SONETO... DE AUGUSTO DOS ANJOS


ASA DE CORVO

 

Asa de corvos carniceiros, asa
De mau agouro, que nos doze meses,
Cobre às vezes o espaço e cobre às vezes
O telhado de nossa própria casa...

Perseguido por todos os reveses,
É meu destino viver junto a essa asa,
Como a cinza que vive junto à brasa,
Como os Goncourts, como os irmãos siameses!

É com essa asa que eu faço este soneto
E a indústria humana faz o pano preto
Que as famílias de luto martiriza...

É ainda com essa asa extraordinária
Que a Morte – a costureira funerária –
Cose para o homem a última camisa!

 

In:  Augusto dos Anjos. Toda a poesia.  RJ: Paz e Terra, 1978.

 
 
 

domingo, 21 de setembro de 2014

MARCELO REIS DE MELLO DUAS VEZES


BREVE DISCURSO EM DEFESA DA INDECÊNCIA

 
nem no monástico silêncio dos cegos, nem no escuro
sonoro dos surdos
há mundos tão mudos
ou palavras tão plenas
                 de nada
e vazias
      de sentido
como na língua lânguida & engalanada
                          desses eruditozinhos
de beira de estrada
                 [com sua voz sisuda
e semi-tonada
pros nossos ouvidos-palatos
                    de alfa anal fabetos
ex-
pulsos
como flátulos
do paraíso
poético

apenas porque o nosso corpo é mais proteico
                                       do que o nosso espírito
 
            ou seria porque o nosso falo famélico
fecunda mais fêmeas que a sua filistéica fala?

declaram que não sabemos
sânscrito nem lingala,
nem grego antigo nem alemão, vociferam
                           que a métrica
é mais importante que
o nosso tesão e

o dark, dark, dark. they all go into the dark.
até a joana dark
até o clark kent
até descartes
até a pop art é mais cult, oh my heart!
 
mas
um prepúcio vale mais que um precipício
um boquete vale mais do que um bouquet
mais valem duas vulvas voando que um verso na mão
uma suruba vale mais que mil palavras
e um poema, no mais das vezes
não vale nada

pois, senhores, o que gritamos é a vida
e não a regra
            ; nem a que se escreve
nem a que se caga.
                    - as palavras, senhores
são águias rapinas
          não trinos da moda;
                                  e as rimas,
               [mesmo as pobres, oh camões!
                           são ricas
quando cantadas com a ponta
                 da pica,
                na cadência bonita da
foda.

 

In: Esculpir a luz. RJ: Cozinha Experimental, 2010.




DEUS EX MACHINA

Boquinhas fechadas. Pálidas.
Dentro, a escavação. Os escombros.
Porque a boca é o sótão do corpo.
E o que uma boca tem de mítico
tem de ridículo. Não cabe nenhuma boca
dentro de uma manga. Não há caroços
brancos nos dentes. Os dentes são
estalagmites e estalactites. A boca
é sempre cavernosa. Os dentes são morcegos.
A boca é notívaga. A boca parece um rato
com asas. Numa boca cabe
uma porção de terra.
O caixão é pequeno, é um caixão
de anões. Há muitas
bocas numa morte pequena.
Uma boca é uma grande cova
sem mistério. É onde se enterra
o silêncio. É onde se pesca o silêncio.
É onde o mau hálito, é onde
as obturações, é onde os vermes.
Dentro, a escavação. Há muita coisa
lá dentro, mas nenhuma imagem.
As boquinhas fechadas dormem
sem sonhar. Bocejos
são seres fantásticos e contagiosos,
mas o bruxismo gasta os caninos
de madrugada e os cisos doem
quando inflamam.
A boca é uma máquina ruim.
 
Poema inédito de Elefantes dentro de um sussurro (no prelo)

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

ÁLVARES DE AZEVEDO DUAS VEZES


Poema VI de Spleen e charutos

 

O POETA MORIBUNDO

 
Poetas! Amanhã ao meu cadáver
Minha tripa cortai mais sonorosa!...
Façam dela uma corda e cantem nela
Os amores da vida esperançosa!

Cantem esse verão que me alentava...
O aroma dos currais, o bezerrinho,
As aves que na sombra suspiravam
E os sapos que cantavam no caminho!

Coração, por que tremes?  Se esta lira
Nas minhas mãos sem força desafina,
Enquanto ao cemitério não te levam,
Casa no marimbau a alma divina!

Eu morro qual nas mãos da cozinheira
O marreco piando na agonia...
Como o cisne de outrora... que gemendo
Entre hinos de amor se enternecia.

Coração, por que tremes? Vejo a morte,
Ali vem lazarenta e desdentada...
Que noiva!... E devo então dormir com ela?...
Se ela ao menos dormisse mascarada!

Que ruínas!  Que amor petrificado!
Tão antediluviano e gigantesco!
Ora, façam idéia que ternuras
Terá essa lagarta posta ao fresco!

Antes mil vezes que dormir com ela,
Que dessa fúria o gozo, amor eterno...
Se ali não há também amor de velha,
Dêem-me as caldeiras do terceiro inferno!

No inferno estão suavíssimas belezas,
Cleópatras, Helenas, Eleonoras;
Lá se namora em boa companhia,
Não pode haver inferno com Senhoras!

Se é verdade que os homens gozadores,
Amigos de no vinho ter consolos,
Foram com Satanás fazer colônia,
Antes lá que no Céu sofrer os tolos!

Ora!  E forcem um’alma qual a minha,
Que no altar sacrifica ao Deus-Preguiça,
A cantar ladainha eternamente
E por mil anos ajudar a missa!

 

TERZA RIMA

 
É belo dentre a cinza ver ardendo
Nas mãos do fumador um bom cigarro,
Sentir o fumo em névoas rescendendo,

Do cachimbo alemão no louro barro
Ver a chama vermelha estremecendo
E até... perdoem-me... respirar-lhe o sarro!

Porém o que há mais doce nesta vida,
O que das mágoas desvanece o luto
E dá som a uma alma empobrecida,
Palavra d’honra, és tu, ó meu charuto!

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

CLÁUDIA ROQUETTE-PINTO



ALMA CORSÁRIA
 

De tanto sono me baixa uma lucidez estranha
em que a amendoeira pousa, luminosa, rara,
sob o fundo escuro da noite meio baça
(cilíndrica, roliça, bizarra)
seu vulto verde acocorado sobre a água
da piscina que não tem um pensamento.

Eu sinto inveja dessas águas anuladas
tão plácidas, idênticas ao próprio contorno
enquanto eu mesma nem sei onde começo,
quando acabo
e sofro o assédio de tudo o que me toca.

O mundo ora me engole, ora me vara
e tudo o que aproxima me desterra.
Chorei, ao ver no chão da cela,
o botão arrancado na contenda,
os óculos pisados do escritor judeu.

Tenho um coração que estala
com o peteleco das palavras de Clarice.
Numa vila miserável na Bahia,
um negro lindo, lindo,
dança ao som do corisco
_ e só me apaixono por casos perdidos,
homens com um quê de irremediável.

Mais de uma vez, imóvel, circunspecta,
vi abrir-se a máquina do mundo
sob a luz inclinada de Ipanema,
na Serra da Bocaina, no meio da floresta,
no alto da escada no topo do morro
por onde a moça seqüestrada vinha subindo
debaixo das lágrimas do pai.

Mais de uma vez meu coração trincou feito vidro
diante da página impressa,
e sempre que a palavra justa vem tirar seu mel
de dentro da copa do desespero de amor.
Acredito, do fundo das minhas células,
que uma amizade sincera "é o único modo de sair da solidão
que um espírito tem no corpo".
Sim, eu acredito no corpo.

Por tudo isso é que eu me perco
em coisas que, nos outros,
são migalhas.
Por isso navego, sóbria, de olho seco,
as madrugadas.
Por isso ando pisando em brasas
até sobre as folhas de relva,
na trilha mais incerta e mais sozinha.

Mas se me perguntarem o que é um poeta
(Eu daria tudo o que era meu por nada),
eu digo.
O poeta é uma deformidade.

 

In: Ciranda da poesia.  Cláudia Roquette-Pinto por Paulo Henriques Britto.  EdUERJ, 2010.



sexta-feira, 5 de setembro de 2014

PAULO HENRIQUES BRITTO





UM POUCO DE STRAUSS

 

Não escreva versos íntimos, sinceros,
como quem mete o dedo no nariz.
Lá dentro não há o que compense
todo esse trabalho de perfuratriz,
só muco e lero-lero.

Não faça poesias melodiosas
e frágeis como essas caixinhas de música
que tocam a “Valsa do Imperador”.
É sempre a mesma lengalenga estúpida,
sentimental, melosa.

Esquece o eu, esse negócio escroto
e pegajoso, esse mal sem remédio
que suga tudo e não dá nada em troca
além de solidão e tédio:
escreve pros outros.

Mas se de tudo que há no vasto mundo
só gostas mesmo é dessa coisa falsa
que se disfarça fingindo se expressar,
então enfia o dedo no nariz, bem fundo,
e escreve, escreve até estourar. E tome valsa.

  

Paulo Henriques Britto.  Trovar claro.  Companhia das Letras, 2006.