Era uma vez um pintor que tinha um
aquário e, dentro do aquário, um peixe encarnado. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela
sua cor encarnada, quando a certa altura começou a tornar-se negro a partir –
digamos – de dentro. Era um nó negro por
detrás da cor vermelha e que, insidioso, se desenvolvia para fora,
alastrando-se e tomando conta de todo o peixe.
Por fora do aquário, o pintor assistia surpreendido à chegada do novo
peixe.
O problema do artista era este: obrigado a interromper o quadro que pintava e
onde estava a aparecer o vermelho do seu peixe, não sabia agora o que fazer da cor preta que o peixe lhe
ensinava. Assim, os elementos do problema
constituíam-se n a própria observação dos factos e punham-se por uma ordem, a
saber: 1º. – peixe, cor vermelha, pintor, em que a cor vermelha era o nexo
estabelecido entre o peixe e o quadro, através do pintor; 2º. – peixe, cor
preta, pintor, em que a cor preta formava a insídia do real e abria um abismo
na primitiva fidelidade do pintor.
Ao meditar acerca das razões por que o
peixe mudara de cor precisamente na hora em que o pintor assentava na sua
fidelidade, ele pensou que, lá de dentro do aquário, o peixe, realizando o seu
número de prestidigitação, pretendia fazer notar que existia apenas uma lei que
abrange tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Essa lei seria a metamorfose. Compreendida a nova espécie de fidelidade, o
artista pintou na sua tela um peixe amarelo.
(do livro Vocação animal, 1971)
In:
MENÉRES, M. Alberta e MELO E CASTRO, E. M. (org.). Antologia
da novíssima poesia portuguesa. 3 ed. rev. e atualizada. Lisboa: Moraes, 1971.