Graças
ao lançamento do volume a ele dedicado na Coleção Postal da Azougue e da
Cozinha Experimental, reato meu contato com a poesia de Leonardo Fróes. O volume, como os demais da coleção, reúne 30
poemas e uma entrevista com o poeta. Fico
muito feliz ainda em saber que o poeta lançou recentemente sua poesia completa
e que foi muito bem recebido em sua participação na FLIP do ano passado. Meu contato com essa poesia precisava mesmo
ser reatado, vou caminhar nessa direção, eu, que dele só tinha até então o
ótimo livro de 1973, Esqueci de avisar
que estou vivo, com sua capa flagrando um detalhe do quadro Crucificação de
Cristo, de Bosch. Fora isso, esbarrava
volta e meia com um poema seu por aí, apenas.
O livro da Coleção Postal reúne poemas
de todos os seus livros publicados, de Língua
franca (1968) a Trilha
(2015). Entre os três do livro de 1973 os
organizadores não incluíram, e por isso
o posto aqui, “Paisagem voando para o orgasmo”, de que muito gosto… alías, me surpreendi ao ver que não o havia
postado já neste blog, por sinal que nunca tinha postado nada do poeta
antes. Sinal de que estava mesmo
precisando desse reencontro com sua poesia que a Coleção Postal veio a
proporcionar.
Não conhecia o primeiro desses poemas, “Inspirado
por um vaso”, que me causou um enorme impacto – foi difícil me desgrudar dele e
ler os demais do volume. E aí fui
buscando também em outros – felizmente encontrei
– o que nele me encantara. Sobretudo a
sintaxe de largo fôlego – à exceção do último, todos os outros, assim como
muitos no livro, são constituídos por
apenas um período - , que se desenrola, se espraia e recolhe imageticamente, em
parataxe e hipotaxe, associações, acenos, analogias incríveis, aproximações
afetivas e intelectuais, numa visão
acima de tudo humanista, generosa, a que precisamos ser dignos – parece apontar
o poeta – de pelo menos pormos a mão: como o caqui que ele oferece à amada,
como a meditação sobre o constructo humano
debruçado às margens do rio central da Renascença. Vaso e caqui (aqui é preciso ler a entrevista
para entende direitinho a trajetória do poeta e tradutor cosmopolita que se
torna agricultor e assim permanece há
mais de 40 anos, sem abrir mão de ser poeta e tradutor) são ambos constructos: na agricultura e no que chamamos mais
habitualmente cultura.
Curtam Leonardo Fróes.
INSPIRADO POR UM VASO
Assim como os oleiros que se
entregam em pasmo à
estafante percepção de uma
forma girada nos próprios
dedos, assim como os pintores
que se dão por completo
à fantasia que evola do verniz
dessa forma e criam, no
seu bojo, uma tensão
contraditória de músculos,
assim como os humildes que a
conservam em uso,
carregam essa forma nos ombros,
afeiçoam-se a ela -
- e não são nada,
senão um par de olhos
contemplando as figuras
cujo mágico poder faz do labor
um prêmio,
assim como os devotos que a
honram
e a demonstram em pânico, fiéis
servos da morte,
ao cínico juízo dos deuses,
assim como os guerreiros que o
seu brilho confunde,
os reis que a acariciam e se
tornam escravos do luxo
ou os marujos que a embarcam no
generoso destino
de suas frotas
batidas pelos mares incógnitos
para depois, acaso, abandoná-la
numa angra de sólidos
ciprestes,
assim como os que lidam com
essa forma,
vazam a linha de contorno,
buscam
no campo ilimitado, mas não
raro ilusório,
de suas tantas aparências
esdrúxulas
uma indicação de sentido para
os gestos humanos
que a elaboram e transmitem á
vida,
assim como os que indagam seu
gênio,
e a ele se curvam, confrangidos
à dura aceitação da realidade,
assim, minha existência, eu te
persigo
na beleza da tarde e me debruço
em doce curvatura sobre o Arno.
(de Língua
franca, 1968)
PAISAGEM
VOANDO PARA O ORGASMO
Trens sonolentos resfolegam
na gare do escuro rostos
antigos se alumbram
e nos sorriem discreta-
mente a razão se estilhaça os
sentidos
se destampam os cheiros se
condensam os sabores
se associam ao cuspe a vida nos
penetra o vento
nos penteia e espalha
por coloridas areias os dias
nos dividem
os horários nos limitam a
memória escasseia o mar
devolve ondas vazias
em que já fomos levados
nas noites frias de outrora o
outro espia o outro espera o outro
nos sedimenta em nosso desvario
e ensina um corpo à solidão
o outro ampara nossa queda
beija
nossos pudores e a boca
sempre entupida de espanto o
canto explode
o galo canta a cama range o ar
se fende o riso
nos comunica o gosto diferente
desse gesto largado o riso
alarga eleva desarruma as gavetas
da nossa servidão cotidiana.
(de Esqueci
de avisar que estou vivo, 1973) *
O
APANHADOR NO CAMPO
Fruta e mulher no mesmo pé de
caqui
no qual espantando os mosquitos
eu trepo
para apanhar como um garoto a
fruta
e apreciar, comendoá lá no
alto, a mulher
que ficou lá embaixo me
esperando subir
e agora vejo se mexendo entre
as folhas,
com seus olhos de mel, seus
ombros secos,
enquanto me contorciono todo
subindo
entre línguas de sol, roçar de
galhos,
para alcançar e arremessar para
ela,
no ponto mais extremo, o caqui
mais doce.
(de Argumentos
invisíveis, 1995)
A
LAGOA DOS OLHARES
No fundo, ninguém conhece
ninguém. A não ser por alto.
Mas na hora dos encontros,
quando os litígios se afogam
na lagoa dos olhares,
quando surge entre dois a
igualdade
de um ponto de vista ao ponto
sem ônus de animosidade,
nos momentos assim, que até nos
ônibus
lotados podem acontecer de
repente,
se aos solavancos ali olhos se
cruzam
no mais perfeito entendimento
possível,
nos momentos amenos em que as
pessoas
(uma no mar da outra
mergulhadas
por atração ou forte simpatia)
deixam de perceber que se
ignoram,
isso é tudo no que podem no
tocante
ao que existe para conhecer do
outro lado.
Quando nos vemos, de nós
embevecidos
na serena permuta de um
instante
em que a emoção de viver nos
aglutina,
a presença da espécie
rarefaz-se, nosso amor pacifica
qualquer onda de susto ou
qualquer guerra.
Depois, contudo, cada qual
volta ao seu casulo,
solucionando-se, ou não, na
solidão.
É bom se ver, distrai se
entreolhar
e é ótimo se conhecer, assim
por alto.
Ninguém porém entrega a senha
do mistério
que é humano ser um só na
multidão.
(de Trilha,
2015)
* com exceção “Paisagem voando
para o orgasmo”, os demais poemas encontram-se no volume Leonardo Fróes da Coleção Postal.