Me
pego meio que vadiando em meio a arquivos que tento ordenar, alguns nem tão
velhos assim e me dá vontade de fazer uma postagem também vadia, também relapsa
e capaz, não sei, de chatear talvez alguns dos meus parceiros musicais, por
revelar o que não está pronto ainda, ou não ficará pronto, ou caiu esquecido em
algum desvão, enfim... me pego aqui às voltas com algumas letras que escrevi e
que algumas estão musicadas por parceiros, outras não, outras em processo de feitura, pelo que peço desculpas
aos amigos parceiros envolvidos – ou não.
Desculpas não são devidas porque considero cada vez mais o esquecimento,
o abandono, a desistência – quando e se deixam de sê-lo movido pelas
inescrutáveis leis do acaso – são também uma forma de trabalho de criação. Vou
dispor algumas dessas letras e começo por uma muito antiga, mas muito antiga
mesmo, de cuja existência eu sequer lembrava e que foi musicada pelo querido
Paulinho Lêmos há uns 30 anos, e gravada num CD que ele fez em 2002 em
Portugal. Como há uns dois anos ele me
deu esse CD, eu vim a lembrar dela.
Eis:
COMIDA (LUXO)
Carne de bicho
carne de lixo
é luxo
tripa de trapo
tripa de sapo
é sopa
tripa de luxo
carne de sopa
boca aberta
não entra
nada
Com Paulinho Lêmos |
Falando em não lembrar do que
escrevi, o que me é muito comum, me
deparei outro dia com uma aqui que gostei de saber que fui eu que escrevi – o
que não é assim tão comum.
OUTONO
Outono e sua tez
Seu
tom
Seu
tônus
Outono, aqui me dês
Tua
mão
Tua
névoa
Desde
a manhã
A
limpidez
A
luz
Que
atravessa a treva
Do
que não é outono
E
não se sabe dizer
O
que seja
E por falar em antiga, tem uma também que está com o chapa
Eduardo Aguiar e que parece que vem por aí em CD que está sendo gravado. Ficou
anos engavetada, acabei mostrando a ele, que parece ter se convencido – mais do
que eu – de que valia a pena transformar em canção. É esta,
cujo título acaba por assumir uma dimensão quase metapoética ante minha dúvida
quanto ao que vale:
PODE SER ILUSÃO
Pode
ser ilusão
pode
ser que não
pode
ser sinal
de que
seja vão
pode
ser de nascença
solidão
Só de
ser talvez
só de
se achar
perdida
outra vez
doida
direção
só de
procurar
sofreguidão
Basta
vislumbrar
o vulto
da mulher
a se
multiplicar
em
mulher e mais
mulher
e mais
nenhuma
nem uma
sequer
qualquer
Onde me
encontrar
como
compreender
o que
faz sofrer
o que
faz soprar
o que
faz morder
quando
dá
e
quando não dá
pra
saber
Tudo de
prazer
tudo de
gozar
tudo de
querer
não
parar e ir
mais
além do que aqui
jaz.
Uma das primeiras
letras que fiz para Fred Martins, no começo dos anos 90 recebeu melodia, um
samba ágil que nunca foi gravado (Fred acha que não, mas eu acho que ela tem um
probleminha de ajuste letra/melodia, que a gente nunca sentou pra tentar
solucionar). Ela homenageia um bairro de
Niterói, cujo nome eu adoro (os niteroienses falam só "Viçoso"), que remete ao Eden e, lastimavelmente, é onde fica
o lixão da cidade. E mais
lastimavelmente ainda foi onde em abril de 2010 ocorreu o terrível desmoronamento
do que ficou conhecido como Morro do Bumba, uma das nossas mazelas mais
renitentes, que acabam sempre resvalando para a conta da fatalidade e da
impunidade dos responsáveis. Mas nosso
samba é bem anterior a isso:
VIÇOSO
JARDIM
Depois que o
Jardim do Eden fechou as portas
A gente ficou
circulando por ali
Perambulando sem
ter muito o que fazer
Andando pra lá e
pra cá
Só pra ver o que
ia dar:
Homem ou mulher?
Sorte ou azar?
Noite ou dia?
Andar por andar
Depois a cada
passo só pra espairecer
Passou a noite
inteira e de cansaço
A gente se sentou
num banco
Posto ali pelo
acaso
Até adivinhar o
dia vir nascer
Acumulando ratos
Molambos
E os carros da
limpeza urbana
Ensolarados acordaram
os jardins da cidade
Vista do Morro do Bumba, foto de Marcos de Paula |
Já “Madame Maldade” resultou
numa canção das mais bem sucedidas, não somente pela letra, mas também pela
melodia maravilhosa que lhe pôs Fred Martins, um samba buliçoso, debochado e
sacana. Já a postei aqui no blog, vocês
acham fácil – e a canção está também aí pelos youtubes da vida. O que não sei é se cheguei a mostrar ao Fred
uma retomada da saga da detestável personagem, dondoca de cuja estirpe, pessoal
e infelizmente , conheço tantas. Comecei a escrever e deixei pra lá, mas
cheguei a rascunhar assim:
Madame
guardou as panelas
Já
não precisa mais delas
Um
tanto amassadas ao fundo
E
os cabos soltando as ruelas
Madame
guardou as panelas
E
toda a revolta do mundo
E
diz que a Judite
É
que sabe o que fazer com elas
Diz
que leva fé na mudança
Contribui
para o criança-esperança
E
se sente como quem financiou
(e
financiou)
Agora
é tratar de ajeitar
As
suas próprias as finanças
Que
não tá fácil pra quem não vive de herança
Mas
Madame demonstra confiança
E
mesmo levando ferro Madame diz que tudo mudou
(pra
melhor, sim senhor)
Madame
guardou as panelas
Porque
Já
não precisa mais delas
Um
tanto amassadas ao fundo
E
os cabos soltando as ruelas
Madame
guardou as panelas
E
diz que a Judite vai dar jeito nelas
(Voltou
tudo a ser como antes
Quem
manda no quartel de Abrantes
É
o Abrantes)
Diverti-me
bastante também, neste país enlouquecido, com a maravilhosa estorinha inventada
por Chico Buarque dos autores secretos de suas canções, que ele
conscienciosamente compra em troca de sigilo, em especial de um Ahmed,
excelente artesão cujos serviços ele não tem como dispensar. Que uma molecagem bem-humorada dessas tenha sido
levada a sério por inúmeras pessoas, diz bem da nossa piração nacional,
convidativa num primeiro momento à galhofa e, na sequência, ao suicídio. Com
vocês...
PRAZER,
AHMED (DELAÇÃO PREMIADA)
[Introdução
falada: Meu prêmio é o reconhecimento de
vocês
chega de Chico
Buarque, meu nome é Ahmed
chegou a minha
vez]
Olá
eu sou o Ahmed
meu caro amigo
resolvi me
apresentar
cansei
do anonimato
saiu barato
esse tempo todo sem poder
cumprimentar
sequer um fã
a cada vez
que eu o ouvia
alegremente
assoviar uma
melodia minha
vendida a preço
vil na camarinha
mafiosa da canção
popular
A gente cansa de não
ser conhecido por vocês
desde que “A
banda” estourou em 66
depois “Roda
viva”, “Sabiá” , “Construção”
tantos anos de
exílio e de perseguição
daqueles caras
que fizeram sua glória
e o nosso
nome na sombra triste da história
Então
já nada impede
o esconderijo
eu decidi
abandonar
e mais além
de tudo isso
o compromisso
ficou difícil
demais de poder
segurar
e no afã
de cada vez
que eu escutava
alguém chegar e
elogiar
o que eu fiz bem
em caprichar
pra vender a
preço vil
e ser o amigo
barato
do grande gênio
popular
Sei que
errei e por isso me penitencio
hoje eu venho
delatar e não mais me silencio
falo em meu nome
e no de mais gente
que precisa se
mostrar urgentemente
e denunciar esse
conglomerado vil
feito de Chico,
Caetano, Milton, Gil
(e outros mais)
Pois é
vou te contar
o ghost writer
resolveu se
aposentar
viver
de b em com a
vida
desimpedida
de curtir o
prazer que a vida
pede e dá
e sempre deu
a quem comprou
e assinou
impunemente
(breque):
E fez seu nome
com as nossas criações
e agora perante o
juiz
eu reconheço
sou réu confesso
e bem pago
por meus pecados
e pelas minhas
confissões.
Uma possível identidade secreta de Ahmed |
Esse mesmo país enlouquecido
fez com que eu escrevesse esta, amarga, sem espírito de galhofa possível:
PESADELO CIVIL
Vivo em pesadelo civil
melhor nem dormir
diz o amigo
melhor não acordar
digo comigo
tanto acordo
quanto durmo
em pesadelo civil
sigo e prossigo
em pesadelo civil
Lá fora e aqui dentro tudo
se eu durmo
ou se vigio
Acordrumo drumacordo
drama bruma pesada
morto vivo
morro e vivo
em pesadelo civil
Sono sem sonhos
só sustos e arrancos
de colapsos
trapaças
catástrofes, trancos
tiros nas trancas
arrombos arroubos
de podres torpezas
trincos nos dentes
sangue nas tranças
das crianças
em pedaços
como cães
raivosos
Pesadelo civil
Pesadelo civil
Pesadelo civil
É claro que as letras sempre pressupõem um trabalho de
ajuste, o que escrevo ou – mais raramente, mas por vezes também acontece – a canção
delineada em melodia com ideia e/ou rascunhos de letra que venha do parceiro
passa por um processo de re-feitura, que às vezes se radicaliza. Foi o que aconteceu com um poema – e já
aconteceu mais de uma vez - que postei aqui mesmo, chamado “Os desvisíveis”, de
que Fred pegou e musicou. Mexemos no
texto, acho que ficou a contento, não sei exato o que ele pensa, mas ele me diz
que gravou num CD que anda produzindo com o incrível percussionista Marcos Suzano,
não sei se com a letra como dou abaixo.
Vou postar o poema que, depois de virar letra mudou de titulo: “Desvisíveis nunca mais”.
OS DESVISÍVEIS
(poema)
Onde não havia ninguém
- nem vestígio
indício
perdido de vista no fundo do
precipício
só silêncio abafando
o suplício de todo
dia até o fim desde
o início
dos tempos
coloniais
- então quando os invisíveis se tornam
visíveis
impossível será torná-los
desvisíveis
não mais
DESVISÍVEIS
NUNCA MAIS (letra)
Onde não tinha ninguém
Nem ruído nem indício
Perdido de vista no fundo
Do precipício
Só o silêncio abafando
O suplício de todo dia
Todo dia até o fim
Desde o início
Dos tempos coloniais
Invisíveis dessangrando
No suplício de todo dia
Todo dia até o fim
Desde o início
Desvisíveis nunca mais
Com alguns dos envolvidos: em pé, Marcelo Diniz (Mestre nunca igualado!), sentados Fred Martins e Eduardo Aguiar |