terça-feira, 26 de dezembro de 2017

VALEU, MANOEL GOMES!

         

           Há diversas maneiras de se fugir de um  clichê.  Enfrentá-lo é apenas uma delas.  Dizer, por exemplo: “Fecha-se a tampa de 2017 como se fecha a tampa do caixão de um ano tão triste para a vida pública brasileira”, para a vida dos afetos que contam, como conta uma conta que a gente não fecha, porque dá a impressão que muito mais gente que valia a pena nos deixou, muito mais gente do que a que fica por aqui a continuar emporcalhando nossos dias.
         É uma maneira talvez grosseira, certamente de mau-gosto, de dizer da minha desolação ao saber, neste apagar das luzes – e deste, como fugir? – da morte de Manoel Gomes, o poeta incrível, parceiro de Fred Martins, de Luís Capucho, que sei eu de tantos outros?  Porque não, não adianta – provavelmente de nada valerá, embora eu mesmo ainda não o tenha feito – sair por aí, nos googles da vida, a tentar achar maiores informações sobre esse poeta, cujos feitos pareço tanto admirar – e de fato admiro.
         Marcelo Diniz, um dos nossos amigos comuns, e que o conhecia desde criança,  e portanto muito mais de perto do que eu, escreveu um texto tocante no Facebook – através do qual foi que eu soube da notícia – no qual lá pelas tantas diz assim: “Os escritos de Manoel nunca chegaram a livro. Chegaram a canções. Manoel Gomes é um poeta da oralidade: não teve dinheiro, nem paciência para ver-se impresso. Manoel era performático, sua poesia deve muito a teatro, pintava os olhos e passava batom a cada performance, sem camisas e descalço, exibia seu corpo sem timidez, num espécie de transe obsceno, um corpo afrontoso à moral e ao bom gosto, como um neymatogrosso mais cínico porque gordo. Isso nos finais dos 80, nos bares, no sesc, na uff, no cinema íris. Manoel era motivo de riso, sim, mas muito do riso continha admiração.”
         Desenvolvi há algum tempo uma neura com relação a guardar papéis, quaisquer papéis.  O que poderia talvez se render a uma explicação fácil e ser tomado  como um efeito da era dos arquivos digitais, o papel sendo substituído pelo documento Word,  na verdade não creio que o seja,  uma vez  que desenvolvo também cada vez mais acentuadamente ojeriza a arquivos digitais.  Manel, acho, também não devia gostar muito de papéis.  Explico: da última vez em que estivemos juntos, por ocasião de um concerto de Fred Martins na Sala Funarte no Rio em agosto de 2015, Manel me cantou duas canções cujas letras jurava que eram minhas: uma, em parceria com ele, ambas inacabadas.  Convenceu-me dessa parceria, da qual acabei me lembrando,  e convenceu-me também da outra, - embora eu não tivesse dela a menor lembrança – pelo simples fato de que sua memória era sempre convincente.  E não bastasse isso, me disse, inteiro, a mão no meu ombro, como de seu feitio, um poema que escrevera,  segundo ele há muitos anos,  em homenagem a mim, em seguida me pediu um tempo, retirou-se para um balcão na  entrada da Sala Funarte e ali mesmo, numa folha de bloco daqueles pequenos de rascunho, escolares, me entregou então o poema todo em  quadras, numa  letra de fôrma criança.  Não era uma letra infantil, longe disso, mas era, lembro bem, uma letra criança, já que,  sei lá por quais mistérios, exalava alegria.  Guardei comovido o papel no bolso da calça, em seguida para um compartimento em minha pasta de uso diário,  mas miseravelmente, nunca tive o cuidado de guardá-lo com mais cuidado ou passá-lo para um arquivo de computador. Hoje a procuro por aqui em vão.  Manel também não gostava de guardar papel, pelo visto, mas sua portentosa memória compensava isso.  Por isso ele dizia sua poesia e, se necessário fosse, talvez escrevesse.  Ou alguém escrevia para ele.  Há pouco no telefone Marcelo Diniz me contou que a letra de “Poema velho”, uma linda parceria de Manoel Gomes com Fred Martins, chegou a este num guardanapo guardado por Marcelo muitos anos depois de ter sido escrita – Marcelo lida melhor com papéis, certamente.
         Muito do que era Manoel Gomes, e ele era muito, está  de corpo inteiro  no belo texto que Marcelo escreveu e postou no Facebook.  Eu não tive muitos encontros com Manel, muitas vezes pensava encontrá-lo quando ia estar com Fred Martins, mas na verdade nunca ninguém sabia por onde ele andava.  Foi assim a vida inteira.  Encontrá-lo era para mim, e sei que não só para mim,  sempre obra do acaso.  A figura do poeta  Manoel Gomes me evocou sempre, por essa errância, ou melhor, por esse estado de poesia em errância & canção, a figura de Nelson Cavaquinho, alguém que fazia a poesia que fazia por  compulsão, por uma fatalidade, por uma necessidade vital sem intermédios e circunstâncias intermediadoras.  É o que dizem e escrevem de Nelson e suas errâncias pelo mundo do Rio de Janeiro: em becos, botecos, puteiros, em peças miseráveis em  teatros barrocos e loucos.         E Manel me evocava também, pela estampa delirante  sem medo algum do ridículo, a figura de Jorge Mautner, e, para aumentar as minhas subjetivas e improváveis associações  que faziam de Manel ser Manoel Gomes, ele me parecia ser sempre – e isso que em tese o rebaixaria, pelo contrário, aumentava o seu fascínio – um jornalista fuleiro  desses de suplemento de entretenimento de jornal, sempre a par de fofocas e assuntos inacreditáveis – eu o chamava às vezes em nossos papos de Facebook, de “meu assessor de imprensa no mundo brega”.  Esse compósito desconjutivo, esse depósito disruptivo são minhas canhestras tentativas de falar de Manel – e de Manoel Gomes.  Uma vez, há muitos anos, o encontrei – sempre o acaso – numa rua de Icaraí de manhã.  Ao me ver, atravessou a rua, veio em minha direção e,  sem mais,  me perguntou: “Você leu o que Lobão falou ao JB sobre a tradição da música brasileira?”  Por acaso eu havia lido, aquelas diatribes tolas dele, Lobão, pra falar mal de Chico Buarque e por tabela da música brasileira – e isso bem antes de ele se revelar o rockeiro porta-voz da direita hidrófoba e ignorantona – e respondi para Manel na lata: “Li. E concordo com ele.”  Ele arregalou os olhos: “Mas você acha que a tradição da nossa música é aquilo que ele falou, chamou de lixo?”  Eu não sei bem por que eu havia dito que concordava com Lobão, entre outras coisas eu estava com pressa e não devia ter contrariado meu chapa, mas lembro que disse algo do tipo “... olha, a gente sabe que pra cada Noel Rosa, cada Assis Valente, cada Geraldo Pereira, existem quilos e quilos de lixo e de coisas desimportantes... logo, o somatório é ruim mesmo, com esse pontos luminosos aí...” e lembro que ele veio atrás de mim, argumentando, não lembro bem como me desgarrei dele, mas sei que o fiz.  E foi a primeira vez que presenciei sua fixação com Lobão, de quem falava mal obsessivamente, inclusive atacando-o publicamente, a qualquer pretexto, principalmente os mais descabidos.  Cheguei a falar uma vez a ele que era gastar muita munição com mosca, mas ele me disse que se divertia.

         Mas principalmente cheguei a falar a ele – e isso me põe muito feliz – que no esplêndido Tempo afora, CD e DVD de Fred Martins, em meio a grandes canções dos grandes letristas do Fred que ali estão – além dele, Marcelo Diniz, Fred Girauta, Alexandre Lemos e Francisco Bosco – a passagem que mais me tocava eram os dois versos de “Que se danem, que se amem”: “A flor irrompe em surto colorido/quando o botão em fúria se destroça”, que me dizem muito do que era o próprio Manel. Quando o disse, sei que ele ficou muito comovido, o que de certa forma me redimiu de ter dado razão a Lobão tantos anos antes.
             O link dessa linda canção vai aqui:


           Uma última lembrança dele, no concerto de Fred Martins na Funarte em 2015, a que já aludi:   Quando Fred cantou nossa parceria “Madame Maldade”, ouvimos ao final a inconfundível voz de Manel bradar do meio da plateia: “O nome dessa música tinha que ser Danusa Leão!”  Na verdade, a observação fazia todo sentido, Danusa havia ficado tristemente célebre ao escrever uma crônica em que lamentava a mesmice e a tristeza de se ir pra Paris nos tempos da era petista para lá encontrar... o prefeito do seu prédio!  Se cheguei a pensar em dar esse nome à canção de tão medonha personagem, não o faria jamais por consideração à irmã de Danusa, a grande Nara Leão.  Mas Manel tinha toda razão.
         Triste fechar o ano do blog com esse texto.  Mas diante do que houve não poderia ser outro texto.
         Valeu, Manel!

Nós, parceiros de Fred Martins:  além de Manoel Gomes, Fred Girauta e Marcelo Diniz