Talvez
um instrumento o que se houve ao fundo,
o sexto livro de poemas de Guto Leite, mineiro de BH radicado em Porto Alegre,
onde é professor de Literatura Brasileira na UFRGS, começa a ser corajoso pela
provocação contida na homofonia do
título. Provoca o leitor, claro
que a pressupor um leitor dado às frequentações da poesia. E
continua a ser corajoso em seu texto de abertura, “A queda”, toda uma primeira
seção do volume feita de um bloco maciço de prosa poética sem pausas, a exigir fôlego, controle da respiração e da
volúpia, a exigir uma familiaridade com
um tipo de texto pouco comum entre nós (só entre nós?) já um século depois de
Joyce, que se faz presente somente nos
raros e rarefeitos vislumbres atingidos por, pra ficar na prata da casa, o
Leminski de Catatau, o Waly de Me segura que eu vou dar um troço,
Gramiro de Mattos (Ramirão ão ão) de Urubu-Rei
e poucos mais, sem falar nas Galáxias de
Haroldo de Campos. Difícil recortar algo
para dar de exemplo ao leitor aqui dessa descida do poeta às várias mortes de
seu Inferno, sugerido pela epígrafe do Canto I da Comédia (sem designação de autoria) e pela afirmação do
prefaciador, que nos assegura estarmos diante de um todo que dialoga com a obra
máxima de Dante.
Mas “A queda” oferece súbitas recompensas de intenso prazer epifânico, entremeado
com árduos esforços da escalada (para baixo é escalada?). Na dificuldade de tomar um trecho bem
delineado como exemplo dessa aventura inicial, dou ao leitor sua página de
abertura:
da primeira
vez que morri foi uma
espécie de susto puxei o ar inutil
mente ar
não era o problema e cai
como do
sono no horror macio da c
ama da
segunda de súbito uma dor
aguda
rasgou-me do peito para cá f
ora farpa
extensa e pontuda quede
i esquecido
feito estopa velha da
terceira
descobri tarde que estava
morrendo
uma centena de células pó
r vez
apodreciam no tronco jeito
que deus
inventou pra matar a clãs
se média
não há o que fazer lembro
de ouvir
antes da vertigem e entre
o que fora
e o que era formou-se
uma ponte
fina de ataduras soros
analgésicos
choros de familiares d
a quarta
intervi magroexasperado m
e leve logo
cortemos o papo derr
ame sua
foice do modo que for cond
uza-me
rápido para o outro lado do
rio retire-me já dos demais viv
entes a
morte premente que é o a
caso
enlutado cansou-se de mim e
em uma voz
de mil séculos bradou
Mas o melhor nem é buscarmos confirmar e reconhecer – ou não – nas diversas
“estações” de Guto o diálogo cheio de negaças também, por exemplo, com as estações de Rimbaud: o melhor será se entregar de início ao gozo
de seu livro, fruindo cada texto em sua singularidade. Assim a segunda seção,
toda em rascantes textos curtos (veja-se no recorte que fiz abaixo os dois
primeiros e os dois últimos poemas, todos sem título), bem como a terceira seção, onde o poeta
permite se espraiar mais em extensão e diálogos explícitos (veja-se o
extraordinário “Poema tirado de duas notícias de jornal”, a que o ilustrador
Talarico deu aqui sua valiosa contribuição).
O leitor nem tão familiarizado assim com um universo poético muito vasto
poderá, ele também, ter muito a fruir de todo o convívio – e poesia é arte de
convívio, longo, fiel e amoroso – com os poemas deste Talvez um instrumento o que se houve ao fundo.
E como isto não é uma resenha, pretendendo ser mais uma
apresentação o mais digna possível deste poeta (por sinal, ele é também
cancionista, tendo já dois CDs lançados, mas a isso volto em outra ocasião)que
conheci pelas redes sociais (o lado bom da coisa), vai aqui uma breve mostra de
sua poesia:
se teu verso não causa
náusea ou suicídio
é propaganda
x
os nascidos até hoje
menos os vivos
morreram
quando é a tua esperança
POEMA
TIRADO DE DUAS NOTÍCIAS DE JORNAL
no dia 25 de outubro de 1975
um próprio cinto
casado
pai de dois filhos
apresentou-se no paraíso
para esclarecimentos
no dia seguinte
constrangido
pelas relações que não tinha
com o partido
enforcou-se
nas grades da cela
para isso
usou o pescoço
cheio de roxos
de vladimir herzog
hoje o paraíso é tombado
segundo o Condephaat
a construção
aspas
possui apelo estético
particular
e carrega uma difícil
simbologia
política
fecha aspas
VALERÁ
A PENA
valerá a pena
criarmos códigos
memórias juntos
filhos & ódios
se um dia os lábios
de um dos dois
fossem fissurados
por ausências
valerá a pena
amarrar afetos
dividir espasmos
e concretos
se um dia a vida
de um dos dois
estiver submersa
de pretéritos
VALERÁ
A PENA
valerá a pena
parear destinos
combinar tecidos
temperos & agendas
se um dia a tarde
para um dos dois
impuser seu corpo
vagarosimensa
valerá a pena
sobrepor os panos
suspender os planos
suspirar os sábados
se um dia imóvel
um dos dois
compulsoriamente
romper com o pacto
x
não gaste anestesia
com a negrinha
x
isso não é poesia
por isso é poesia
Guto
Leite.
Talvez um instrumento o que se houve ao fundo. Belo Horizonte:
Moinhos, 2017.