E OUTROS POEMAS, O IMENSO LIVRINHO DO GUTO LEITE
QUE ME CHEGA DO RIO GRANDE DO SUL
A questão fulcral da poesia que se quer
“do tempo presente”, creio, creem – e assim devem sentir – os poetas é: como ferir a carne dos dias com a
palavra. Falemos por enquanto
metaforicamente. Começa pela
contingência que leva o poeta a escrever
o poema, por certo. Mas lógico que a
questão não é essa, e sim, e sempre é o
resultado. Melhor dizendo: ronda o perigo de o resultado, o poema (ou o
que se pretendeu que fosse) acabar sendo insuficiente, datado, ficar preso ao
circunstancial, no sentido mais flébil do termo. O poeta olhará frustrado, se tiver bom senso de autocrítica,
o seu poema logrado.
Não chego a me considerar poeta. Digo em termos de resultados do que escrevo
ou tento escrever. Nem sombra de falsa
modéstia, é senso de meus limites mesmo, ante o terrível poder da palavra poética, que
me subjuga. Embora, às vezes até ache
que acerto a mão (não disse que não era falsa modéstia?). Por exemplo: reativei este blog, que estava
parado desde 2018, porque me assaltou a urgência de escrever ante os tempos
funestos que vivemos e que se pintam – ou se maquiam, vá saber – com tintas de
eternidade. Maquiagem ou máscara, como advertiu em célebre conferência Mário de
Andrade, da necessidade de “pegar a máscara do tempo e esbofeteá-la como ela
merece”. Tenho escrito esses poemas
últimos que publiquei neste blog premido por essas circunstâncias, premido pela
necessidade –que tenho certeza de que não é vã – de responder ao tempo
presente. Esta necessidade não é vã,
embora os resultados a que chego muitas vezes ou quase sempre o sejam. Aí só o leitor avaliará.
Ferir a carne dos dias com a palavra...
escrevi a frase acima em registro, claro, metafórico. E acabei desdobrando-a em
mais metáforas, mesmo alheias. Para
tentar ficar mais claro, mas no fundo tergiversando, passo para alguns
exemplos: poemas de Brecht e de
Maiakovski conseguiam fazê-lo, feriam a carne dos dias. O Drummond de A rosa do povo (Quem não entra com o russo em Berlim?) e de mais
alguns poemas próximos cronologicamente a esse livro magistral,
certamente. O Mário de Andrade de Lira paulistana, idem (“Terremoto que a
porta do pobre arromba”), O Chico
Buarque assertivo de “Construção” e “Deus lhe pague”, cruel de “As caravanas”, divinatório de “A
flor da terra”, o Caetano de “Um índio”, “Fora da ordem” e da letra de “Haiti”
(a melodia é de Gil), o Gil de “Um sonho”...são alguns exemplos. Talvez esses poucos sejam quase todos, pra
falar a verdade, porque não é coisa fácil conseguir esse efeito de que
falo. E antes que me leiam errado: não
estou dizendo que esses são, qualitativamente, os melhores poetas, ou que são
os melhores poemas e canções desses criadores.
O que quer dizer: ferir a carne dos dias com a palavra,
responder com poesia ao tempo presente à altura, não é O critério de
avaliação de um poema ou de uma canção.
Mas é sem dúvida um atestado de se ter atingido um grau de excelência no
que foi proposto, a ser confirmado tão somente pelo escrito que o leitor
atualiza.
Não sei se me faço entender. Mas eis que abro um livrinho umas 60 páginas
do Guto Leite, chamado E outros poemas
(Editora Zouk, 2024) e me deparo com um poema inicial já atordoante. Em seguida vem este, que me nocauteia:
o
time que matou meninos em fevereiro
será mais uma vez campeão do brasileiro
trouxe de portugal um treinador
tarimbado
faltou
para a revisão do ar-condicionado
uma zaga segura um meio-campo
entertainer
os
garotos da base ficavam num container
centroavantes mortais em um
esquema que amassa
é
difícil enxergar quando tem tanta fumaça
a cada gol do artilheiro a galera
delira
não
deu pra socorrer os moleques, que dormiam
aumenta a distância pro segundo
colocado
christian
athila arthur rykelmo pablo bernardo
gedson
jorge samuel vitor morreram dez
todos sabem o que fazer com a bola
nos pés
será mais uma vez campeão do
brasileiro
o
time que matou meninos em fevereiro
É um poema
desconcertante, é um dos tais poemas que ferem a carne dos dias. Tento ser um pouco mais preciso: um poema capaz de dizer do tempo presente em
sua concisão verbal, em sua precisão formal ao mesmo tempo em que, justo por isso, flagra este presente em visada capaz de abranger em imagens terrificantes o esgoto,
o esgoto calcinante em que vamos mais e mais nos tornando, como país, como humanidade, que sei eu, como
seres vinculados ao que chamamos modernidade, ao que chamamos Ocidente, ao que
chamamos capitalismo. Que começa, o
poema, por ser à queima-roupa em quem gosta
de futebol, em quem tem um time, ou já gostou ou já teve e hoje não mais –
volto a meu próprio exemplo. E como não
chorar, a não ser que se seja um canalha, com o absurdo fato da morte dos dez
adolescentes da base de futebol do Flamengo em fevereiro de 2019? Mas o magistral desempenho com que os versos
se desnovelam ante nossos olhos, em um virtuosismo de craque poeta que fala ao
mesmo tempo de futebol, de poesia e do medonho que nos cerca. O belo da criação estética não se perde na
indignação, o belo se faz e se queima
dentro do horror que contemplamos: “uma zaga segura, um meio campo
entertainer/os garotos da base ficavam num container”. Me tirou o fôlego. Os dez meninos mortos nomeados em impressionantes
versos de 13 sílabas – chamados “bárbaros”,
será um acaso? – , que se mantêm ao longo de todo o texto. Guto não perde o andamento.
E
o pior, digo, o melhor. Ou: o melhor é o
pior. O livrinho está cheio de poemas
assim, de igual excelência. Que inclusive dialogam amorosa e asperamente com o
melhor legado nosso em poemas, de Drummond (“ó louça infinita, Aleph de
vasilhas,/se em espasmos de tempo sumires inaudita//nós vos recriaremos”) e
outros poetas, em canções de Caetano (“o fim do mundo será por extenso//o
menino do rio/derreteu”) e outros cancionistas (Guto também o é, com três CDs
gravados). São poemas de impressionante
potência e – atenção – , Guto é um poeta residente em Porto Alegre, na Porto
Alegre destes dias trágicos. Seus poemas
premonitórios são espantosos, sem nada
terem de divinatórios: são poemas de um poeta atento, leitor de seu tempo em
suas implicações concretas, sociais, ecológicas. Capaz de poetizar o fato na
medida mesmo em que sabe que fato e fatalidade não podem ser confundidos.
Por exemplo, no
admirável e já citado “causas naturais”, dividido em nove segmentos, o poeta
nos diz no segmento 2:
os
cabelos são arrancados
à
mão
e
um fio d’água
correndo
o cocoruto
se
espalha
imagine
então
as
margens
desarvoradas
de
um rio
E
no encerramento do mesmo poema, no segmento 9:
não
há outro tema que não o fim do mundo
é
obsceno fazer poema sobre o fim do mundo
A
vontade que tenho, para fechar estas páginas de justo elogio disfarçado de
crítica impressionista, é poder me estender a cada um dos poemas o quanto eles-
todos eles – merecem. Quem sabe, me empenho dia desses, num texto de maior fôlego. Por ora, deixo aqui com vocês o também atordoante
“A anoa” (que me remete a Murilo Mendes em sua modernização do arcaico num
livro como Convergência), como um
testemunho de que o tempo presente é sempre, como as pinturas rupestres a que o
texto alude. E que a poesia tem de estar
sempre à sua altura.
Guto
Leite, querido, professor doutor Carlos Augusto Bonifácio Leite, muito obrigado
por estes e outros poemas e canções.
A ANOA
na parede de uma caverna
em leang bulu’sipong
uma anoa resiste
a caçadores com lanças
sobrevinda às crianças
de homens antes dos homens
às quilhas de brilhantes barcos
da frota srivijaya
às velas e caravelas
de dom francisco serrão
à companhia holandesa
às bombas de hiroito
a anoa que não se rende
a quarenta e quatro mil rotas
como o gesto de seu artista
impresso na tez da rocha
está já por todo o tempo
que vir a ser o futuro
(Aqui uma postagem anterior sobre o
mesmo poeta: https://robertobozzetti.blogspot.com/2018/02/guto-leite.html)