domingo, 20 de outubro de 2024

 OUVIR FRED MARTINS E MARCOS SUZANO: BARBARIZANDO GERAL

O desenho da capa é do próprio Fred Martins



FRED MARTINS é um cancionista de mão cheia.  Dito isto, ora pois,  viva o clichê adequado!   E vamos continuar em tom "jornalístico":  Chega agora a seu oitavo disco – sem contar  um inaugural, ainda em vinil, um EP de seis faixas lançada nos idos de 1992 pelo fugaz selo Niterói Discos, cuja capa penduro aqui:




.    Tempo passou,  Fred se viu um dia,  meio que por acaso, numa excursão de cara&coragem&voz&violão,  sozinho e um tanto sem pouso certo,   pela Europa,   e foi se apresentar  numa mostra de música numa universidade alemã (acho que em Hamburgo, não sei ao certo) quando se deu conta de  que por lá havia uma plateia disposta a ouvir sua música ("Um auditório grande, de universidade, cheio de gente que não sabia nada de português, em silêncio respeitoso, ouvindo o que eu tinha pra mostrar, e depois um acolhimento interessado, generoso", ele me contou na época). Pronto:  um pouco antes, ele tinha ganho,   em 2006, o 9º Prêmio Visa de Música Brasileira (vencedor por unanimidade do júri e da votação popular), acabou gravando um DVD por conta do prêmio, mas também, por outro e mesmo lado,  já tinha percebido  que aqui a maré já não estava pra peixe, a água estava virando pó para quem faz música de talento, de proposta, de substância - e são tantos, são muitos.  Mas Fred  desanimou de vez com o panorama dos brasis,  cujas comportas "do sucesso" - ou apenas da visibilidade e da audição dignas -  estão abertas  para fazer sobreviver – ou melhor, viver  bem – só quem entra nas engrenagens da "música gospel", dos sertanários universitejos, das celebridades instantâneas,  e então...  depois de algumas idas e vindas,  frutos de convites diversos, ele  decidiu se fixar    na Europa. Era 2010.  Por aqui deixou,  antes de decidir partir de vez,  duas canções que obtiveram alguma repercussão:  “Novamente” (parceria com Alexandre Lemos), gravada por Ney Matogrosso em 2000 - incluída numa trilha sonora de novela na Globo - , e “Flores” (parceria  com Marcelo Diniz), que Zélia Duncan registrou em 2001. Fixou-se por  sete anos na Galícia – onde gravou  um CD excepcional com a cantora galega Ugia Pedreira em 2012 (Acrobata), e  atualmente está em Lisboa há 7 anos, onde também já lançou diversos CDs, participando nesse tempo ainda de trabalhos  com músicos locais e europeus em geral, compondo trilha sonora inclusive para um balé russo em homenagem a Oscar Niemeyer.  Fez vários giros pela Europa tendo como partner ninguém menos do que Jaques Morelenbaum, apresentou-se em Cabo Verde, no Canadá, enfim, tem passeado pelo mundo. 


Feita esta apresentação breve, pois bem:  Fred juntou-se agora ao excepcional percussionista Marcos Suzano e zás! lançou no último dia 15 uma obra-prima, o CD BARBARIZANDO GERAL, pelo selo Biscoito Fino, trabalho que há tempos vinha sendo gravado em estúdios entre Lisboa e Rio.   É disco de uma força danada, cuja capa é desenhada pelo próprio Fred.   Poucos trabalhos como este - cito de cabeça e rápido o Besta Fera, de Jards Macalé (2019) e o Moribundas vontades, de Fernando Pellon (2016)  entre poucos exemplos -, são capazes de flagrar a maré montante de brutalidade que vivemos neste tempo-lugar e lançar a arte como antídoto para não naufragarmos de vez.   Mas para quem acompanha mais de perto seu trabalho a  maior das surpresas que traz é o fato de  Fred Martins ter assumido também as letras de suas  canções em quatro  das dez faixas, cada uma melhor do que a outra.  Abre com a  faixa-título,  “Barbarizando geral”, um samba sacudido e contundente, que manda logo ver:  “Com tanta gente crente/que cretinamente é contra o diferente/ os velhos ratos do mercado vão seguir barbarizando geral /enquanto o insano e podre bicho humano/vai entrando pelo cano/eu vou chorando minha tão sentida lágrima de crocodilo”.  E o tom irado e irônico vai atravessando o disco, mesclado a maravilhas de pura lírica (resistência à barbárie, como dizia um velho alemão), como em ‘Este amor é Lume /este amor anima/incandesce cada grão /este amor chegou /desconhece a paz /arde este amor demais...” (“Este amor tem nome”).   As duas outras letras que também levam sua assinatura no disco são excelentes:  o irresistível mezzo-samba mezzo-rumba “Abalou”,  e a doce e intrigante  “Trama”, que fecha o disco.





Se chamo a atenção e saúdo o fato de Fred ter gravado tantas letras próprias, é porque na maior parte de sua já consistente obra ele tem se valido de inúmeros parceiros letristas.  O principal deles tem sido Marcelo Diniz, que em BARBARIZANDO GERAL assina apenas uma parceria, o “Rancho da seita suicida”, uma marchinha que consegue a proeza  raríssima – haja Maiakovski e Brecht! – de unir panfleto político e vigor poético ao fustigar a estupidez que atravessamos como país recentemente e ainda corremos tanto o risco de atravessar.  No “Rancho” estão ali os nomes dos bois: “Um bloco macabro suicida/desfila na rua /na epidemia /na frente vai o genocida/aquele demônio de nome Messias”. A faixa tem ainda a participação altamente convincente,  pela veemência,  da bela voz de Nani Medeiros.  Outra faixa cortante, “Senzala”,  é a estreia de um novo letrista, André Sampaio, cuja proeza também não é pequena:   numa letra de rimas todas em vogais abertas, claras, em /a/  traça um quadro geral da escuridão do fogo que a todos nos vai calcinando a céu aberto, pessoas e coisas, reificadas numa persistência rítmica entre a batida do jongo e a do trabalho forçado: “Se pudessem dizer o que a fome já cala/ou se as línguas não fossem cortadas na faca/e se o canto não fosse batido na enxada/ou seus dedos quebrados pregados nas talas// Mais um dia de sol brilha sobre Senzala”.



André Sampaio e eu


Fred, Marcelo Diniz e eu


 Manoel Gomes com “Além do qualquer” a mim me tocou especialmente:   Manoel veio a falecer de forma meio inexplicável e obscura, num atropelamento de madrugada em Niterói em dezembro de 2017 (deixo o link para o texto que postei aqui mesmo no blog na ocasião: https://robertobozzetti.blogspot.com/search/label/Manoel%20Gomes) .   Fred compôs muito com ele, gravou muitas letras suas, sempre de forma magnífica.  Ao ouvir-ler esta “Além do qualquer”, não tive a menor dúvida: trata-se de um testamento poético deixado por Manoel, poeta que como pessoa viveu  sempre além do qualquer e,  além do além,  sua voz ainda se faz ouvir na melodia do samba-canção secundado pela percussão leve de Suzano e um belíssimo bandoneon (que achado!) a cargo do argentino Martin Sued.  Não resisto a deixar aqui toda a letra, que, repito, muito me comove e muito significa para quem conheceu Manel (da última vez em que estivemos juntos, ele me deu de presente um poema especialmente escrito para mim, escrito em letra de forma durante um show a que assistíamos, num papel todo dobrado  – jamais me desculpei o fato de não saber onde a guardei).  Em “Além do qualquer” temos alguém que soube fazer seu próprio auto-retrato:

Por gostar tanto do mundo
Não pode ser qualquer mundo
Meu pano de cena
Por querer tão bem a vida
Não deverá qualquer vida
Assim valer a pena
Por viver tão plena arte
Jamais será qualquer arte
Meu campo de pouso
Por amar forma de gente
Não me encanta qualquer gente
E um verso qualquer não ouso

 


Com Manoel Gomes

Tudo o que escrevi aqui talvez fosse menos suspeito não fosse eu parceiro de três canções de Fred neste disco - mas confiram e ouçam BARBARIZANDO GERAL, que verão que não minto.  Mas dessas parcerias vou falar só em passant:  “Madame Maldade”, a mais antiga,  já tinha sido registrada ao vivo no CD de 2017 A música é meu país. Trata-se de uma brincadeira maldosa – como tem forçosamente de ser – com as passeatas pelo impeachment de Dilma  nas copacabanas do Brasil.   A tal madame é uma personagem que criei no Facebook, que ilustro  sempre com  um retrato daquelas senhoras de Boldini e legendas barbarizantes em geral.  Foi também na mesma rede social, à época em que o Papa Francisco deu umas declarações de tolerância e de amor pelos homossexuais e que Chico Buarque foi agraciado com o Prêmio Camões para contrariedade geral dos nossos imbecis, que escrevi um textinho despretensioso saudando-os, que fez Fred pegar o  embalo e fazer um samba delicioso, todo quebradinho chamado “Dois Chicos”, avisando – até em Libras – “evêm mais chico no caminho!” (Mendes, Science...).   E, por fim, compusemos ainda há uns 5 anos “Ahmed”, uma homenagem ao verdadeiro autor das canções de Chico Buarque (não só: também as de Tom Jobim, Milton, Edu Lobo, Caetano, Paulinho da Viola, Caetano, Gil, João Bosco e Aldir), relegado ao anonimato do qual procuramos resgatá-lo.   Nesta, o luxo foi tanto que até o MPB4 entrou na brincadeira e deu uma força na faixa, resgatando do esquecimento quem merece.  Afinal, como diz o próprio Ahmed: “Só quero ser reconhecido por vocês.”   Chico parecia ter gostado também da brincadeira, mas depois vetou o vídeo no qual ele dava seu depoimento de confissão.  Paciência.   Ahmed declarou numa entrevista outro dia algo que nos soou surpreendente.  Disse ele:  “Dizem que morre o burro, fica o homem, né.  Benjor escreveu isso numa música.  Aliás, só ele,  o Tom Zé, o Nelson Ned e o Odair José nunca me compraram música.  Nem do Julinho da Adelaide.  Na verdade, morrem os mitos, ficam os nomes, né.”  Palavra de Ahmed.

 

https://open.spotify.com/intl-pt/album/2DIyQhIDjt1iJjMEGsduhD?si=tSy6gf7pSoacPhTd_WHbkw

Não deixem de ouvir BARBARIZANDO GERAL, discaço cujo link vai aí em cima.  E eis ali embaixo em ordem cronológica  toda a discografia do Fred Martins.  Vão aí nas internets da vida que garanto que não se arrependerão  A gente ouve o trabalho dele em todos esses canais aqui:



1.         JANELAS (2001)

2.       RARO E COMUM

3.       TEMPO AFORA (2008)

4.       GUANABARA (2009)

5.       ACROBATA (com Ugia Pedreira, 2012 – na Espanha)

6.       PARA ALÉM DO MURO DO MEU QUINTAL (2015 – em Portugal)

7.       ULTRAMARINO (2021 – em Portugal)

8.       BARBARIZADO GERAL (2024 – pela Biscoito Fino)


Fred, eu e +1



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