Assinar também
é fera compulsão de sui-
cida, sedução de pre-
cipícios, degustação
de formicida, Assis convul-
so valente, não acordem
o menino, pediu Tor-
quato silente enquanto
o cacho caía, a faca cor-
tava rente, o corpo
despenca da ponte e a
alma flutua fria, em câmera
lenta ardente segue a via-
gem sem guia, em es-
piral descendente se junta
à algaravia, babel invertida
e corruta do sétimo
círculo em frente, assinar
é tão sem volta, ainda
mais quando malogra
o gesto tresloucado,
por faltar na última hora
ou desde o começo pla-
nejado pontaria de
cowboy, posologia
adequada, encapsulada
em coragem, e resta
então só o que fica,
falsa solidariedade,
descrédito na praça,
assunto de pasmatórios,
cômico de nosocômio,
pedrada a quebrar vidraça,
risinhos na vizinhança,
abandono da esperança,
expectativa frustrada.
Quem assina então pede
as bênçãos do esquecimento,
quem assinta no sumiço
da promessa vida adentro
sabe o assunto, a premissa,
da promissória vencida,
do humano endividamento
dos jardins do paraíso
aos umbrais do empreendimento
de frente pro Letes, me-
mento, incorporação e vendas,
chaves no financiamento,
convenção de condomínio,
assinou, entrou tá dentro,
quem assina não descura
de esquecer o pensamento
e a negação do que esquece
dá o tom do que acontece
e nasce e se transfigura
e inexiste a cada momento.
Peido de bactéria Deus
assinou por descuido,
depois de tudo a matéria
começou seu torvelinho,
aves e flores migraram,
grasnaram gralhas no exílio,
símios exímios se ergueram
impuseram seu domínio
Adão e Eva morreram
Darwin reina absoluto
e quem também se fudeu
foi Deus, expulso que foi sem
um puto das igrejas
que fundou como reza o es-
tatuto assinado por
pastor vigário vigarista
astuto que deu ordem de
despejo e marmorizou
o templo e até deixa que Deus
explore um quiosque dos seus
quando mais não seja ao
menos pra ocupar o
seu tempo, que o contrato
se renova bem antes da e-
ternidade e diz que ele as-
sim quis e que o que quis
tá direito, e a cessão de di-
reitos cessa assim que co-
meça o do outro e o preço
da liberdade é o etcétera
mofino, o mundo inteiro
não vale a posse, já se vê,
do que eu assino. Assina-
tura,alma inexistente
bordada em panos de casa,
delicadeza entre
porcelana e cambraia,
toalha de linho na mesa,
caimento exato na saia,
quando o corpo gira em valsa,
quando gota a gota a chuva
em bulha escoa pela calha,
quando o que veste cai ao chão
e pelas pernas o olhar
da insuportável paixão
que no desejo se espraia,
ecoa, sobe, os olhos são
como a boca, a boca é menos
que a mão que é menos que a
boca e falta, e a falta preenche
o todo, todo ilusório
e falta, se beija o pé que
o pisa o desejo em seu
reinado, é férreo o calcar
de leveza, e sob a unha
a mão represa e preme
o sangue que roreja como
quem quer reter em carne,
vermelho quente de lacre
borra de digital muito
mais que assinatura,
então todas as gotas
da pele a toda pele igualam
a pele do outro corpo,
incenso que inunda a casa,
nardo, lótus, mirra, alquena,
em desvãos entre armários,
habitat apaziguado e vão,
hóspede de todo precário,
cântico que Salomão
em seus aposentos entoa,
cercado de redondilhas,
ilhas enrodilhadas, preto
no branco da pele, da pele
do papel e pele, pentelhos
dos que se amam, redondi-
lhas na paisagem, enredond-
ilhadas ilhas arquipe-
lagadas, alheias a toda
margem, a todo além
das ilhargas, nos confins
do corpo clama clama a voz
em sua visagem sem viso
de assinatura só o ama-
do e sua amada só o ama-
do e seu amado a ama-
da e sua amada quentura
cálida de quente
mútuo calor quente
quente calor e mais nada.
In: Firma irreconhecível. Oficina Raquel
Ao fundo o ótimo Réplica das urtigas, de Tatiana Pequeno, lançado na mesma ocasião. |
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