|
Prévert por Robert Doisneau em 1955 |
3 POEMAS
O GATO E O PÁSSARO
Uma cidade escuta desolada
O canto de um pássaro ferido
É o único pássaro da cidade
E foi o único gato da cidade
Que o devorou pela metade
E o pássaro deixa de cantar
O gato deixa de ronronar
E de lamber o focinho
E a cidade prepara para o pássaro
Funerais maravilhosos
E o gato que foi convidado
Segue o caixãozinho de palha
Em que deitado está o pássaro morto
Levado por uma menina
Que não para de chorar
Se soubesse que você ia sofrer tanto
Lhe diz o gato
Teria comido ele todinho
E depois teria te dito
Que tinha visto ele voar
Voar até o fim do mundo
Lá onde o longe é tão longe
Que de lá não se volta mais
Você teria sofrido menos
Só tristeza e saudades
É preciso nunca fazer as coisas pela metade.
LE CHAT ET L'OISEAU
Un village écoute désolé
Le chant d'un oiseau blessé
C'est le seul oiseau du village
Et c'est le seul chat du village
Qui l'a à moitié dévoré
Et l'oiseau cesse de chanter
Le chat cesse de ronronner
Et de se lécher le museau
Et le village fait à l'oiseau
De merveilleuses funérailles
Et le chat qui est invité
Marche derrière le petit cercueil de paille
Où l'oiseau mort est allongé
Porté par une petite fille
Qui n'arrête pas de pleurer
Si j'avais su que cela te fasse tant de peine,
Lui dit le chat,
Je l'aurais mangé tout entier
Et puis j'aurais raconté
Que je l'avais vu s'envoler
S'envoler jusqu'au bout du monde
Là-bas où c'est tellement loin
Que jamais on n'en revient
Tu aurais eu moins de chagrin
Simplement de la tristesse et des regrets.
Il ne faut jamais faire les choses à moitié.
BATISMO DE AR
Essa rua
outrora chamada de rua do Luxemburgo
por causa do jardim
Hoje é chamada de rua Guynemer
por causa de um aviador morto na guerra
No entanto
essa rua
é a mesma de sempre
o jardim é sempre o mesmo
é sempre o de Luxemburgo
Com alamedas... estátuas... fontes
Com árvores
árvores vivas
Com pássaros
pássaros vivos
Com crianças
todas as crianças vivas
Então a gente pergunta
a gente pergunta pra valer
por que um aviador morto foi ali meter o bedelho.
LE BAPTÊME DE L'AIR
Cette rue
autrefois on l'appelait la rue du Luxembourg
à cause du jardin
Aujourd'hui on l'appelle la rue Guynemer
à cause d'un aviateur mort à la guerre
Pourtant
cette rue
c'est toujours la même rue
c'est toujours le même jardin
c'est toujours le Luxembourg
Avec les terrasses... les statues... les bassins
Avec les arbres
les arbres vivants
Avec les oiseaux
les oiseaux vivants
Avec les enfants
tous les enfants vivants
Alors on se demande
on se demande vraiment
ce qu'un aviateur mort vient foutre là-dedans
A FELICIDADE DE UNS
Peixes amigos amados
Amantes dos que foram pescados em tamanha quantidade
Vocês assistiram a essa calamidade
A esta coisa horrível
A esta coisa terrível
A este tremor de terra
A pesca milagrosa
Peixes amigos amados
Amantes dos que foram pescados em tamanha quantidade
Dos que foram pescados cozidos comidos
Peixes... peixes... peixes...
Como vocês devem ter rido
No dia da crucificação.
LE BONHEUR DES UNS
Poissons amis aimés
Amant de ceux qui furent pêchés en si grande quantité
Vous avez assisté à cette calamite
A cette chose horrible
A cette chose affreuse
A ce tremblement de terre
La pêche miraculeuse
Poisons amis aimés
Amants de ceux qui furent pêchés en si grande quantité
De ceux qui furent pêchés éboulillantés mangés
Poissons... poissons... poissons...
Comme vous avez dû rire
Le jour de la crucifixion.
Traduções de Silviano Santiago
Além do encanto próprio da poesia de Prévert (1900-1977), a estratégia adotada por Silviano Santiago para sua tradução adiciona-lhe mais um: a aproximação dessa dicção poética com a dos nossos modernistas de 20/30. Deixo Silviano falar na introdução que escreveu para a antologia de Prévert organizada e traduzida por ele:
“Acreditamos que – de modo geral – a sua dicção se assemelha à dos bons poetas brasileiros escrevendo nos anos 30. Poetas estes que já se encontram desvinculados da linguagem agressiva da vanguarda dos anos 20, mas daqueles anos guardando ainda a simplicidade coloquial na escolha do vocabulário e nas construções sintáticas, perpassando também o coloquial com a alta voltagem do humor e até da piada. Foi a partir de ‘modelos’ como Manuel Bandeira, Carlos Drummond e Murilo Mendes que procuramos transpor os versos de Prévert para o português.
(...)
Coube ao tradutor não impor ao texto a ser traduzido uma dicção poética esclarecedora do poema, mas buscar no repertório das dicções possíveis na sua literatura nacional um equivalente que fosse justo. Coube ao tradutor domar primeiro o equivalente, ou seja, a dicção poética escolhida como justa, para só depois efetuar o trabalho de tradução.
Nesse sentido, este tradutor é um exegeta de asas curtas, certamente um duplo plagiador. Plagia o texto a ser traduzido e plagia os poetas nacionais que selecionou como modelos de dicção.”
In: Jacques Prévert: poemas. Nova Fronteira, 1985.