sexta-feira, 27 de abril de 2012

CINCO DE ASCENSO FERREIRA







CINEMA
- Mas D. Nina,
aquilo que é o tal de cinema?

O homem saiu atrás da moça,
pega aqui, pega acolá,
pega aqui, pega acolá,
até que pegou-la.
Pegou-la e sustentou-la!
Danou-lhe um beijo,
danou-lhe um beijo,
danou-lhe um beijo!...

Depois entraram pra dentro dum quarto!
Fez-se aquela escuridão
e só se via o lençol bulindo...

.........................................................................

- Me diga uma coisa, D. Nina:
Isso presta pra moça ver?!...


FILOSOFIA
Hora de comer – comer!
Hora de dormir – dormir!
Hora de vadiar – vadiar!

Hora de trabalhar?
- Pernas pro ar que ninguém é de ferro!


CUBA LIBRE
Ayer eras una mezcla de ron y Coca-Cola
A la cual los americanos llamaban, en broma – Cuba Libre!
Pero, después, vinieron los barbudos de Sierra Maestra!
Entonces el ron ha tomado el espirito de la verdad mezclándose con sangre y arena!
Dando una muestra a los pueblos de todo el mundo que Cuba es realmente libre!
Libre para gloria de los Americanos y el honor de la humanidad!
Sacad las manos de mi dulce Cuba, “gringos”!


ESTADOS UNIDOS-BRASIL
                        (Lei de Empréstimos e Arrendamentos)

O negro velho falando para
o companheiro mais afortunado:

- Parente, você
está drumindo ou está acordado?

- Eu está acordado, minha parente!

- Minha parente, me empresta cinco mirrés!

- Eu está drumindo, minha parente!


PREDESTINAÇÃO
- Entra pra dentro, Chiquinha!
Entra pra dentro, Chiquinha!
No caminho que você vai
você acaba prostituta!

E ela:
- Deus te ouça, minha mãe...
Deus te ouça...

In: Poemas de Ascenso Ferreira.  Recife: Nordestal, 1981.

domingo, 22 de abril de 2012

JOÃO CABRAL DE MELO NETO


HORÁCIO
            A Otávio de Freitas Júnior


O bêbado cabal.
Quando nós, de meninos,
vivemos a doença
de criar passarinhos,

e as férias acabadas
o horrível outra vez
do colégio nos pôs
na rotina de rês,

deixamos com Horácio
um dinheiro menino
que pudesse manter
em vida os passarinhos.

Poucos dias depois
as gaiolas sem língua
eram tumbas aéreas
de morte nordestina.

Horácio não comprara
alpiste, e tocar na água
gratuita, para os cochos,
certo lhe repugnava.

Gastou o que do alpiste
com o alpiste-cachaça,
alma do passarinho
que em suas veias cantava.

In: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.

terça-feira, 17 de abril de 2012

DOIS PARÁGRAFOS DE ALFONSO BERARDINELLI

           Mas o que busca, hoje, o público de literatura?  As frustrações são cada vez menos dramáticas, os pesadelos, cada vez mais brandos.  Curáveis.  Há a televisão.  As grandes religiões, especializadas na produção de remorsos, sentimentos de culpa e sublimações, foram liquidadas.  E a idéia de revolução, que pretendia ser a sua herdeira rebelde, mas legítima, é uma idéia que se tornou até risível.  Produziu infinitos lutos e sacrifícios, antes de retornar como uma sombra no reino das sombras.
            Todavia, em qualquer estudioso que não tenha um relacionamento asséptico com a literatura moderna, o ensino e a divulgação de obras modernas deveriam criar algum mal-estar.  Há mais de um século, talvez há dois séculos inteiros, nossas literaturas soam como atos de acusação, revelações horripilantes, auto-análises implacáveis e destrutivas.  Não contêm muitas instruções razoáveis e úteis para que se viva feliz em comunidades e sociedades bem organizadas.  Sociedade Industrial e Democracia, Estado Social e Estado total raramente tiveram o apoio, a aprovação, a simpatia e o consenso do que tradicionalmente se chamava Belas Artes, as quais se transformaram em artes infelizes, degradadas ou estéreis.  Antes de entrar no triturador das vanguardas organizadas, dos manifestos técnicos e da estética modernista, antes de se tornar, finalmente, pós-moderna, isto é, ornamental, comestível e insossa, a arte moderna foi intratável.   Falou nada menos que da possibilidade real do fim do mundo, ou da necessidade moral de que o curso do mundo se detivesse.  Havia até uma espécie de Schadenfreude [alegria nociva] em seu modo de apresentar as coisas.  E talvez houvesse ambições, visões e promessas maiores do que hoje estamos dispostos a tolerar.

In: Alfonso Berardinelli.  Da poesia à prosa. Tradução de Maurício Santana Dias.  CosacNaify, 2007.

sábado, 14 de abril de 2012

MARIO BENEDETTI

PASADO Y HOY

Si retrocedo em mi modesta historia
encuentro amores piedras y manías
que comparecen o desaparecen
en los capítulos del retroceso
pueden ser un hallazgo o una pérdida
una revelación o un desamparo
todo pasado se parece al hoy
y nos espía en huecos del presente
como los ayeres y los anteayeres
ocurre que se esfuman sin aviso
por eso mi pasado tiene zonas
que son vacíos sin promesa alguna

in: Biografía para encontrarme.  Buenos Aires: Seix Barral, 2010.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

INTERIOR

            Como optei desde o segundo semestre de 2009 por vir morar no interior do Estado do Rio, num lugarejo serrano que conheço desde criança, que já foi uma roça propriamente dita, e hoje é quase que apenas uma localidade na periferia em torno do eixo Rio-São Paulo, como optei, dizia,  por vir morar aqui nesse – relativíssimo – isolamento, meus amigos e parentes, amamentados desde a amamentação propriamente dita na cultura urbana, passaram a me ver meio que numa teia de referências meio árcade bicho-grilo, meio bucólica, contaminados que somos todos desde sempre pela idealização da vida no campo, do interior e tal, com seu ritmo mais tranqüilo, seu dia-a-dia mais saudável, suas relações humanas mais cordiais, sua maior proximidade com as forças e potências da natureza, enfim.   Que haja um tanto disso tudo envolvido no fato de eu ter passado a viver essa opção, é fato. Eu mesmo brinco – acho até que já disse aqui mesmo neste blog – com esse bucolismo. Porque  de fato gosto desse ritmo ralentado, propício a uma bestagem, a um ócio que, por outro lado, se a gente bobear, tende a não ser produtivo. 
            O divertido é que a quase totalidade dos amigos de que falo aí em cima sequer desconfiava disso que, no fundo, talvez seja mesmo a minha pouca aptidão para uma vida mergulhada exclusivamente no urbano, meu ritmo sempre um tanto fora das exigências da grande cidade.   E eu sempre soube disso, embora verdade que eu sempre tenha disfarçado relativamente bem.  Mas vai daí que também não tenho a menor simpatia pela província.  E durma-se com um barulho desses!
            Porque essas confusões com o meu way of life só me aborrecem quando as pessoas confundem minha opção pessoal de vida  com um  amor pela vida de província, pela província, o amor aos hábitos interioranos, o convívio pacífico com a sociedade provinciana, coisa que eu absolutamente não tenho.  O tema é extenso, não pretendo desenvolver aqui, mas gostaria de dizer que se é possível esse convívio pacífico, ele não pode ser muito próximo não. Mas também não se consegue fugir a ele: Alfonso Berardinelli disse, e já lá se vão quase vinte anos, que “todo o planeta se transformou numa maledicente província cosmopolita”, desenvolvendo a partir daí um brilhante ensaio, “Cosmopolitismo e provincianismo na poesia moderna”.  Mas meu assunto aqui é outro, nem quero aqui insistir naquilo que eu tenho de concordância com o grande ensaísta italiano.  Isso talvez fique pra uma outra hora (o ensaio é tão fascinante que é bem possível que eu retorne  a ele aqui no blog).
Por hoje eu quero dizer: O provincianismo é cerceador, acabrunhante, pesadamente repressivo, é fechamento de horizontes.   E justo por conta desse fechamento, todas essas qualidades deploráveis seguem de par, juntinhas, irmãzinhas com o tal “orgulho do torrão natal”, o “orgulho em ser (aqui se põe o gentílico correspondente)”, verdadeira catástrofe para quem se deixar encerrar nesse círculo de orgulhos vazios.  Essa face simpática aparece quando se presta atenção no jogo político que nessas cidades é jogado há anos, pelo menos no Brasil, sempre com as mesmas elites no poder (alterações perceptíveis nos últimos anos são ínfimas, e embora significativas, sua dimensão e seu tempo muito lento  exasperam) praticando assistencialismo a uma população de miseráveis,  contando para isso sempre com cúmplices na população idiotalfabetizada a bancar festinhas de igreja, bailes de debutantes, tertúlias de trovinhas, rifas e torneios de futebol.    E a face medonha aparece para valer quando se trata das coisas mais sérias da representação política, da manipulação de verbas, da investigação de crimes, das pendengas judiciais, das situações de catástrofe, quando essas cidades se veem às voltas com grandes chuvas, desabamentos ou – pior, tortura a longo prazo – secas infindáveis, degradação dos recursos naturais. Nota triste do acaso: anteontem, depois de um ano, o mundo voltou a desabar em Teresópolis.  Mortos, feridos, desabrigados, sirenes de alerta compradas por 1 milhão de reais que não funcionaram, prefeito e figurões e apressando em dividir-se entre condolências e desculpas.
            Estou me dispondo aqui a falar mal do interior, da província, por conta de dois textos que li ontem e que me tocaram profundamente.  Um é a entrevista que Célio Turino concedeu a Bruno de Pierro e que li no site Brasilianas http://www.advivo.com.br/node/413503    Se você não liga o nome à pessoa, Célio Turino é o historiador que concebeu os Pontos de Cultura implantados na gestão Gilberto Gil no Minc, onde atuou como Secretário de Cidadania Cultural de 2004 a 2010. Os Pontos de Cultura são, até onde vai o meu parco saber desses assuntos, a mais inteligente e estimulante iniciativa já feita no país no que diz respeito à dinâmica de atuação cultural e trocas, compartilhamento e parceria entre Estado e sociedade.  Pessoas da maior credibilidade já tinham falado para mim da seriedade e da competência de Turino, e a entrevista me deixou muito impressionado com a concepção ousada e o embasamento sólido de sua atuação à frente da Secretaria que ocupou.  Mas no que diz respeito ao assunto aqui, considerando que a atuação do Ministério passa por dificuldades outras e mais graves no momento, como um corte de verbas da ordem de 55%%, o que me chama a atenção é o brevíssimo relato que Turino faz na entrevista sobre dificuldades com secretários estaduais de Cultura por causa justamente da agilidade que era a marca principal, inovadora e empolgante  do projeto.  Leia-se:
“Em 2004, teve uma reunião do conselho de secretários estaduais de Cultura, com o ministro Gil, para protestar contra o programa, pois diziam que ele estava atravessando grupos que os secretários de alguns Estados consideravam que nem eram culturais, como uma comunidade quilombola. Queixavam-se de alguns grupos serem contemplados, sem passar por eles.”

Ora, secretários estaduais de cultura não são representantes de províncias, de pequenas cidades interioranas, dessa mentalidade deprimente que venho desancando aqui, poderá dizer quem me lê.  Engano seu, caro leitor, são sim.  Porque, o que é também assustador, é que esse enclave provinciano, essa miséria mental e intelectual e política, essa verdadeira trava anti-moderna é o que vigora no Brasil. Essa gente paga com os salários nossos, de cidadãos, em cargos que existem pra fomentar, dinamizar, enriquecer a produção de bens simbólicos (“uma comunidade quilombola não é cultural!”), essa gente a desempenhar de forma reles seu papel de secretários, a se sentirem desrespeitados, “atropelados” pela velocidade necessária aos bons resultados – que já estavam visíveis àquela altura.   Daí que eu não me iludo com vida no interior, com os falsos valores bocós que as pessoas normalmente tendem a associar a isso.  Cansar da cidade grande não foi, no meu caso, me iludir com bucolismos: foi saída puramente individual.  E individualista, pra me preservar de alguns embates a que a vida tinha me lançado.
A vontade, ou melhor, o correto a se fazer  – e por isso me penitencio – é largar de resmungar, largar de misantropia e de pessimismo e dar um abraço em Turino, é de  escrever para ele, parabenizando-o, é dizer o quanto o invejo em sua jovial disposição de ação afirmativa, apesar dos horrores que enfrentou (sem lamúrias da parte dele, quem tá chamando atenção pra isso sou eu). Quem ganharia com isso, afinal seria tão-somente a minha vaidade, até por estar dizendo essas coisas aqui. Ele continuará a combater o bom combate, muito melhor do que eu.  Porque eu, na verdade, sou paralisado em meus impulsos construtivos quando leio, de acréscimo,  uma matéria que saiu no Globo do mesmo dia  e que não acho aqui para linkar.  Quem se dispuser a achá-la pela rede, o título é “Mineira vira advogada para provar que está nos bancos dos réus injustamente.” Resumo-a, pois.
Numa cidadezinha chamada Pompéu, interior de Minas, 30 mil habitantes, uma moradora, Beth Campos,  que integrava o Conselho Municipal dos Direitos da Criança, descobriu e denunciou uma assombrosamente vasta rede de exploração sexual de crianças e adolescentes, na qual estavam envolvidos os figurões locais: prefeito, presidente da Câmara, comerciantes, policiais, o diabo, a fina-flor da sociedade provinciana.  O MP entrou na coisa e o julgamento de sete dos envolvidos está previsto para este ano ainda.  O que dá bem o clima dessa “deliciosa vida de província” são coisas como esta: “Mas, em vez de reconhecida como corajosa, ela passou a ser considerada traidora da cidade, por causa da forma como Pompéu foi inserida no noticiário nacional. Beth foi agredida pelo menos duas vezes em bares.” Vida que segue, conseguiram armar na cidadezinha uma cilada para pegar a corajosa denunciante, que, enredada por tramóias mil, difamada e acusada, claro, de “ter interesses políticos”,  agora é denunciada em outro processo e corre o risco de ser condenada a até oito anos de detenção. Diante da situação, Beth fez o certo: saiu de Pompéu, foi viver em Belo Horizonte onde acabou optando por se tornar uma pessoa pública, militante do tema, de modo a não apenas dar continuidade a sua luta, mas também adquirir alguma visibilidade pessoal, como uma – frágil – segurança contra atos extremos de seus ensandecidos inimigos.  E fez também o de certa forma inusitado: tratou de estudar Direito, formando-se advogada em 2010, aos 54 anos, para tratar da própria defesa.  

A perseguição de que foi vítima Beth Campos ou (imagino) a rede de sabotagenzinhas, futricazinhas com que Turino teve de se deparar, longe de constituírem  uma estória excepcional, é uma estória que se pode dizer padrão, que exemplifica o que é mesmo a nossa história, o que é histórico no Brasil.  Brutalidade jardim, em fórmula oswaldiana-tropicalista; prolongamento da falta de lei das fazendas,  estendendo-se sobre a frágil existência de cidades enquanto espaço público, compartilhado socialmente, na lição antiga e atual de Sérgio Buarque.  Enfim...
Enfim, o que eu queria deixar claro,  e daí toda essa falação, neste texto  que ficou muito maior do que eu pretendia era muito simples: primeiro: que embora brinque e até me divirta com o “bucolismo” do meu atual modus vivendi, trata-se na verdade mesmo de uma opção que não guarda nenhuma ilusão idealizadora quanto às virtudes interioranas em relação às cidades; segundo, que sendo sobretudo um ponto de vista meu, que sou avesso a maiores convívios, a vida social, a atividade ou militância políticas, defendo minha opção como saída particular a atender  sobretudo a mim: poderá vir daqui um malogro ou uma felicidade – qualquer um dos dois dirá respeito exclusivamente a mim; e finalmente, terceiro, que sei que a razão não está comigo, está com a militância de Turino e Beth Campos, pessoas pelas quais passei a ter a maior admiração a partir do momento que tomei conhecimento de suas ações. O país melhorará devido a gente como eles.




sexta-feira, 6 de abril de 2012

AH, UM SONETO... DE MÁRIO DE ANDRADE

QUARENTA ANOS (27-XII-33)

A vida é para mim, está se vendo
Uma felicidade sem repouso;
Eu nem sei mais si gozo, pois que o gozo
Só pode ser medido em se sofrendo.

Bem sei que tudo é engano, mas sabendo
Disso, persisto em me enganar... eu ouso
Dizer que a vida foi o bem precioso
Que eu adorei.  Foi meu pecado... Horrendo

Seria, agora que a velhice avança,
Que me sinto completo e além da sorte,
Me agarrar a esta vida fementida.

Vou fazer do meu fim minha esperança,
Oh sono, vem!... Que eu quero amar a morte
Com o mesmo engano com que amei a vida.

            In: Poesias completas.

Explicando esse título de seção:         Este blog tem mais ou menos um ano e meio de existência e logo no começo resolvi fazer uma seção especialmente dedicada à públicação de sonetos.  Então redigi esta nota que vai aí abaixo, e que acho oportuno republicar.


        O soneto, como forma poética, está para mim sintetizado nesse belo título que Álvaro de Campos achou para o seu.  Provavelmente a forma mais praticada de poesia ocidental, o soneto só é rígido em mãos inábeis ou apenas esforçadas em consegui-lo: os grandes poetas fazem com que seu sentido mais profundo de forma fixa se movimente imageticamente em bilhões de combinações rítmicas, fônicas, lexicais e mesmo métricas, que a aparente rigidez formal antes ressalta do que escamoteia quando lemos um grande soneto; e só aparentemente é uma forma breve: os grandes sonetos duram enquanto vivemos e os recordamos e gostamos de percorrer, galgar, escalar seus  versos até nos sentirmos à vontade para flanar por eles. Brevidade não implica ligeireza, superficialidade.
        Essa junção de enganosa previsibilidade poética e permanente surpresa me leva sempre a dizer, reverberando Campos, “Ah, um soneto...”
        Vou postar aqui, sob essa rubrica, alguns sonetos de minha profunda admiração. 

domingo, 1 de abril de 2012

A BUCHADA DE CARNEIRO DE BRAGA E O VATAPÁ DE CAYMMI NA ENTRADA DO OUTONO

            Mário Faustino desdenhava da crônica e dos poetas que ele admirava e cuja admiração parecia decrescer a cada vez que ele lembrava que andavam se entregando ao exercício da crônica jornalística.  No fundo – e no raso – isso me parece um equívoco, mas quem sou eu  pra discutir com Mário Faustino, poeta e agitador cultural de minha muita admiração, que se fosse vivo ainda estaria por aí com 80 e poucos anos e teria muito provavelmente construído uma obra basilar de nossa poesia e da nossa crítica – a exemplo do que fizeram os concretistas seus amigos e também eles alvo de algumas  discordâncias quanto às questões de poética.  Aliás, o que teria sido da relação entre eles, não tivesse Faustino morrido naquele acidente aéreo em 1962?
                Suposições, conjeturas, tergiversações.  Assumo  aqui, agora e frequentemente,  um certo tom  de crônica, eu que desde ontem ando lendo e relendo Rubem Braga por dever de ofício.  Braga cronista fez para mim nas nossas letras aquilo que de mais próximo tivemos dos poemas em prosa baudelaireanos, o que é uma coisa a se investigar com mais profundidade,  talvez.   Mas há crônicas de Braga que são textos definitivos, daqueles peremptos, aqueles que atravessarão os tempos – e creio que de ninguém mais, além de Braga, pelo menos em quantidade.  Não sei se é o caso desta crônica que posto aqui hoje, e que não posto exatamente por estas razões em torno das quais fico remanchando.
                Posto porque nunca a tinha lido –  que eu lembre, pelo menos –, porque ela é magnífica, e porque é uma homenagem à altura daquele que considero um dos dois pratos mais espetaculares da cozinha brasileira.  Razão pela qual a postagem é complementada pelo outro prato que merece a mesma honra: o vatapá.  E que recebeu tratamento à altura do gênio Dorival Caymmi, tão genial que se você tiver alguma prática e boa intuição culinária dá pra fazer um vatapá seguindo o que diz a letra.   Rubem Braga e Dorival Caymmi eram, ainda por cima, amicíssimos, o que faz desta postagem um convite à alegria nesta entrada de outono.
                Há diversos vídeos de “Vatapá” no youtube, vários ótimos.  Fiquei entre postar este com os filhos do patriarca e um com João Bosco, acompanhado de Jamil Joanes e Vitor Biglione. Mas homenagear o clã acabou dando a diretriz, além do que o arranjo muito jobiniano de Dori (pena  os demais músicos não serem identificados) me convenceu de vez, trazendo à lembrança também os sons de Tom.
                Em tempo: pode parecer que falar em buchada de carneiro em pleno Domingo de Ramos, que abre a semana da páscoa, seria uma provocação anti-católica.  Nem pensei nisso, a não ser agora.  Mas a idéia de uma implicância – ainda que gratuita – também não me desagrada de todo.  

BUCHADA DE CARNEIRO
               Um dia, quando este mundo for realmente cristão, eu acho que ninguém terá coragem de matar um carneiro. Até que já devia ser pecado matar carneirinho. Tem tanto pecado na religião que a gente por dentro mesmo, não acha, não sente que é pecado - e matar um carneiro, ato bárbaro, contra um bichinho tão inocente, a balir, a chorar, é considerado coisa honesta! Entretanto desejar a mulher do próximo é pecado. Vamos que seja pecado avançar na mulher do próximo, telefonar com más intenções para a mulher do próximo, dançar muito apertado com a mulher do próximo - mas cobiçar, meu Deus, não devia ser pecado, porque muitas vezes é somente castigo e aflição; eu que o diga!
              Mas voltemos ao carneirinho; e contemos que tio Estácio carregou o bicho dentro da camioneta horas e horas, o tempo todo ele chorando, como se adivinhasse o fim da viagem. Tio Estácio até chegou a botar um esparadrapo tapando a boca do bichinho para ele não se lamuriar mais, porque os balidos feriam a consciência, cortavam o coração dos algozes. Mas de esparadrapo na boca o carneinho ficou tão infeliz chorando para dentro, tão desgraçado, que tio Estácio tirou o esparadrapo. E durante horas continuou aquela triste lamentação. Foi de noite que eles chegaram ao sítio. Um camarada queria amarrar o carneirinho lá fora, onde ele pudesse comer capim, tio Estácio achou que era perigoso, tem muita cobra; “aliás, ponderou, como ele vai morrer amanhã, não convém que coma hoje; assim dá menos trabalho para limpar". Vejam que bom coração é o tio Estácio!
               No dia seguinte, ao romper da alva, deu-se a execução, feita com requintes de técnica. Oh, se alguma senhora me lê, pare por aqui; eu sou um repórter fiel e tenho de contar tudo. A verdade é que não assisti ao ato nefando; tio Estácio também não; o carrasco foi Argemiro; o local afastado da casa-grande. Ficamos tomando refresco de maracujá para acalmar os nervos, procurando não pensar no que estava acontecendo naquele momento. Juro que eu ainda tinha uma vaga esperança, um sonho louco de que o crime não se concretizasse, o carneirinho talvez pudesse fugir, ou talvez na hora o braço de Argemiro tombasse...
             Mas aconteceu:  uma paulada rija na cabeça e depois o bichinho, ainda vivo, foi sangrado.
             É horrível pensar nisso. Vamos encerrar o assunto. Na verdade não houve mais nada. Apenas D. Irene passou o dia inteiro muito ocupada, dirigindo o serviço de duas negras,  e ela mesma trabalhando como doida.
             No dia seguinte todo mundo acordou com um ar estranho, Lula e Juca disseram que nem queriam tomar café, Mário e Manuel chegaram de longe, havia alguma coisa no ar. Pelas duas ou três horas da tarde essa coisa que estava no ar aterrissou na mesa.
             Lá em cima eu falei de religião. Pois se há alguma coisa que pode ar uma idéia de céu, de bem-aventurança, de gostosura plena - é buchada. Intestinos e vísceras mil, sangue em sarapatel, tudo se confunde junto ao pirão, esse fabuloso pirão em que a gente sente a alma celestial do carneirinho. Devo dizer que os miolos foram comidos dentro do crânio, com toda a dignidade; e aquela parte em que o carneiro prova que não é ovelha foi petiscada frita - uma delícia. Comemos, comemos, comemos, comemos; e cada vírgula quer dizer pelo menos uma cachacinha, e o ponto e vírgula pelo menos duas. O ponto final foi um grande sono de rede. E se vocês além de tudo ainda querem saber o moral história, direi baixinho, envergonhado e contrafeito, mas confessarei: o crime compensa.

                                                                           Fevereiro, 1955

In: A cidade e a roça, 2 ed. Editora do Autor, 1961.


VATAPÁ
Dorival Caymmi
( vídeo de 1984, com Danilo e Dori Caymmi)

Quem quiser vatapá, ô
Que procure fazer
Primeiro o fubá
Depois o dendê
Procure uma nêga baiana, ô
Que saiba mexer
Que saiba mexer
Que saiba mexer
Procure uma nêga baiana, ô
Que saiba mexer
Que saiba mexer
Que saiba mexer
Bota castanha de caju
Um bocadinho mais
Pimenta malagueta
Um bocadinho mais
Bota castanha de caju
Um bocadinho mais
Pimenta malagueta
Um bocadinho mais
Amendoim, camarão, rala um coco
Na hora de machucar
Sal com gengibre e cebola, iaiá
Na hora de temperar
Não para de mexer, ô
Que é pra não embolar
Panela no fogo
Não deixa queimar
Com qualquer dez mil réis e uma nêga ô
Se faz um vatapá
Se faz um vatapá
Que bom vatapá