Acabo de descobrir que o meu primeiro alumbramento
(consultar Manuel Bandeira, se for o caso) cinematográfico, a primeira bunda, a
primeira visão entre os reflexos de folhagem n’água, as refrações, o chiaroscuro
contrastante da luz a 24 quadros, naquele
corpo roliço na exata dimensão, e
flutuante-rolante em meio líquido e na imaginação palpável do que se via era...
Rossana Podestà!
Vagabundeando pela internet mais do
que deveria, nesta madrugada gélida e
vadia aqui no brejo, namorando imagens de filmes e atrizes, eis que relembro de uma estória, verídica a mais não poder, de que andei me
lembrando e contando recentemente a alguns amigos e amigas: a estória do meu primeiro
nu cinematográfico.
Devia ser por volta de 1966 ou 67, no
Grêmio Social Esportivo aqui do local, nome muito engraçado, pela pompa, de uma construção inacreditavelmente precária e
tosca que foi demolida não tem mais do que três anos. Sábados à noite era
sessão de cinema, às 8. Apenas um
projetor, os filmes em quatro rolos eram interrompidos para a troca – momento em
que a rapaziada aproveitava para fazer uma social. Ali eu vi inúmeros filmes “históricos” italianos,
uns épicos fuleiríssimos, aventuras de Sansão, Maciste, Golias, nomes que acabavam rendendo apelidos, distribuídos pela molequeira entre uns poucos
agraciados – aqueles mais fortes de corpo ou mais valentes. Vi também “O assalto ao trem pagador”, o
ótimo filme de Roberto Farias, particularmente emocionante para todos nós, por
ter cenas filmadas na subida desta serra – onde se dera efetivamente o assalto,
factual – logo depois da estação de Japeri, antes de chegar a Mário Belo. Lembro
que foi provavelmente o filme recebido com maior entusiasmo por todos nós,
moleques (aqui não existe o termo “garotos” nem “meninos”) –, o que me ajudou desde muito cedo a não nutrir
nenhum tipo de preconceito contra o “cinema nacional”, essa expressão que
assume ares terrivelmente pejorativos, quando é (ou era...) dita com esgar de canto de boca por uma classe
média urbana de zona sul carioca que era o meu “outro lado”, aquele de onde eu
procedia. Vi também no Grêmio Social
Esportivo meu primeiro filme de terror, com uma cena em que um rosto aparecia
desfigurado e que me valeu um susto medonho – que um amigo tratou de tentar
dissipar, mostrando-me como era fácil de ser obtido o efeito com uma simples
vela acesa sob o rosto (a câmera pegando o rosto também de baixo). Era um troço,
o tal filme, chamado “Raptus – o diabólico
Dr. Hitchcok”, do qual o único vestígio que me ficou foi esse susto, por muito
tempo, apesar dos esforços contrários do meu amigo para dissolvê-lo.
Mas nada se compara à emoção do
alumbramento em “A escrava de Roma”. Pelos
googles da vida leio tratar-se de um dos “épicos” (Sergio Leone, um dos meus
mais amados diretores, começou dirigindo alguns desses épicos, foi a sua
escola) italianos, um filme de 1961 – e leio mais: que Podestà havia já vivido Helena
de Tróia, num filme homônimo de Robert Wise, uns cinco anos antes, tendo sido
também Nausicaa numa produção chamada “Ulisses”. Mas em “A escrava de Roma”... não,
não lembro de absolutamente nada no filme, a não ser A cena. Ela (presumo que fosse a escrava) retira-se
para banhar-se num rio, protegida por um guardião, que ficará de vigia. A cena é manjadíssima em atmosfera barata de
filmes de segunda, claro. Devia rolar
algum clima entre Rossana e seu guardião, claro também, mas não sou capaz de
assegurar (e denegrir a imagem da deusa). Sei que ela dirigia a ele algumas palavras, de dentro
d’águia, virada para a câmera, acho que dava um sorriso e... virava-se de
costas quase à flor da água, para nós, espectadores – de súbita respiração
interrompida – , e ensaiava umas braçadas! o. O. O oO. O Ó OH, o OOOOOOOOOOOOHHHH o OOOOH
sem limite sem trégua sem nada sem fim, a bunda ali quase à flor da água, e ela nos oferece aquele dorso, aquele dorso,
o dorso. Indescritível o que se passou então? Não, não é a palavra. Indelével, sim. Gritos. E palmas. E urras. E assovios.
Muitos. Mas muitos sobretudo risos de prazer. Muitos. E assovios urras palmas e
gritos muitos gritos e gritos. Coisa de
torcida, de geral, de domingo. Com quantos
ali eu compartilhava aquele alumbramento? Certamente com muitos, e com os da
minha idade, pouco mais pouco menos, certamente com todos. Ah, sim, o som
ficou: cadeiras batiam no chão, freneticamente.
Explico: as cadeiras eram soltas, ficavam amontoadas num canto da “sala
de projeção” e, ao entrarmos íamos lá e cada um pegava a sua e a punha onde bem
escolhesse. Veio daí, acho, meu hábito me sentar na cadeira de frente para as
costas dela. Mas eu dizia: as cadeiras
batiam no chão, movidas pelo nosso entusiasmo de possessos. Sou capaz mesmo de
assegurar que uma ou duas voaram no auge
da nossa empolgação. Uma ou duas. Ou três, talvez. Não mais. Talvez fosse mais aconselhável assegurar que todas
as cadeiras voaram. Seria falsamente
hiperbólico, uma pobre licença realista, a passar quase despercebida. Tolice, literatice. A hipérbole foi interior: Alumbramento, que por definição é indelével.
Lembro que saíamos do cinema lá pelas
10 e pouco, e saíamos mimetizando as cenas
vistas há pouco. Lutas de espada, duelos de revólver (engraçado que não lembro
de nenhum faroeste marcante que tenha visto ali), frases, exclamações, golpes de
pés e mãos recém aprendidos eram comuns.
Tais exercícios eram importantes também por duas razões: nas noites de
inverno, era uma maneira de espantar o frio medonho; além disso, na época, quase não havia luz na estrada (terminava uns
200 metros antes da minha casa), sendo, portanto, como o assovio, uma prática
altamente recomendável para espantar o
medo. Não lembro da algazarra na saída
de “A escrava de Roma”. O que será que
levávamos daquele filme, tão impactante para nós, além da necessidade de espantar
o frio e o medo?
O professor moribundo do soberbo “As
invasões bárbaras” de Arcand lembra-se de seu alumbramento com Inès Orsini,
atriz que em filme marcante de sua infância, representando Santa Maria Goretti, a certa altura levanta a saia dentro d’água e
mostra as canelas. O professor diz que verteu rios de esperma por conta dessa
visão. Não, eu não verti rios de esperma
por Rossana Podestà. Na ocasião eu tinha
10 ou 11 anos, era cedo ainda. Mas a
visão ficou. Não consegui, buscando pela internet, o “still” daquela cena, nem sequer nenhum “still”
de “A escrava de Roma”, mas a visão ficou.