quinta-feira, 30 de agosto de 2012

E caiu a chuva de sangue nos fundos do botequim


E caiu a chuva de sangue nos fundos do botequim
os olhos se injetaram,  e o som e a imagem
totalitárias da imensa TV
       como era de se esperar
           estenderam-se pela parede, adentraram sob a porta o banheiro
       seguiram-me até o carro
determinaram-me o rumo, desviaram-me, expulsaram-me para dentro da noite
que me expeliu finalmente pela manhã
e nem outro dia,
quero dizer
mais – ou menos – do que outro dia já era
como outro eu mesmo  já era, como o gosto
que pareceria brotar virou travo amargo,  e a boca
entre desejo e alho expelia um doce olor de sangue
que a tudo acabou por se sobrepor
ausente
faltante
aroma de rubro incenso candeia da solidão – noite.


sábado, 25 de agosto de 2012

Um que já tem tempo


RELATO

A despudorada, a viajada
mulher belíssima
relaxa-se
lânguida
dividindo o convés
em céu/mar
e sua presença.

As atenções se desviam
conflitantes
a tripulação morre de desejo
de invadir seu camarote.

Eu permaneço em terra
a ver mais que navios.

Espero que aproveitem a viagem.


In JOSÉ, n. 9.  Dezembro 1977


quarta-feira, 22 de agosto de 2012

ANTONIO CÍCERO


BLACKOUT

Passo a noite a escrever.
Do lado de lá da rua
poderia alguém me ver,
daquele prédio às escuras,
em frente ao meu,e mais alto.
Que voyeur me espiaria?
De interessante, só faço
escrever. Ele veria
decerto a parte traseira
do computador: talvez,
daquela outra janela,
avistasse, de viés,
o lado esquerdo da minha
face de perfil: jamais
entretanto enxergaria
certos versos de cristal
líquido, que mal secreto
com o sal do meu suor,
já anunciam segredos
só meus e de algum leitor
que partilhará comigo
o paraíso e o desterro,
o pranto que vem do riso,
o acerto que vem do erro.
Disso tudo, meu vizinho
nem de longe desconfia.
Mas e se ele, tendo lido
meus lábios, que pronunciam
o que na tela está escrito,
perceber-se desterrado
não só do meu paraíso:
do meu desterro, coitado?
E se ele a tudo atentar
e por inveja e recalque
me der um tiro de lá?
Melhor fechar o blackout.

Antonio Cícero. Porventura.  Record, 2012.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

WALY SALOMÃO


COBRA CORAL


Para de ondular, agora, cobra coral:
a fim de que eu copie as cores com que te adornas,
a fim de que eu faça um colar para dar à minha amada,
a fim de que tua beleza
                     teu langor
                     tua elegância
                                   reinem sobre as cobras não corais.

Waly Salomão. Tarifa de embarque.  RJ: Rocco, 2000.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

RBEC n. 2 - Revista Brasileira de Estudos da Canção

     Clube da Esquina, Gilberto Gil, Vinícius de Moraes, Chico Buarque, o rock brasileiro dos anos 70, a música cabo-verdiana e sua relação com a música brasileira são alguns dos assuntos dos dezenove artigos que integram o n. 2 da RBEC - Revista Brasileira de Estudos da Canção, publicação semestral online dirigida pelo pofessor Lauro Meller da UFRN e de cujo corpo editorial participo.  Além dos citados, há ainda artigos de Solange Ribeiro de Oliveira (UFMG)   e de Mike Brocken (Universidade de Liverpool).  Há ainda um artigo de minha autoria onde analiso as duas canções compostas por Fred Martins e Vitor Ramil para um mesmo poema de Alberto Caeiro, "Noite de São João".
     Já estão sendo recebidos artigos para o número 3, a sair em janeiro de 2013.  Os textos devem ser enviados até 30 de setembro.  
      No site estão todas as informações e os números da RBEC. http://rbec.ect.ufrn.br/index.php/Edição_atual
 

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

SEMINÁRIO NA UFRURALRJ DISCUTE OS 90 ANOS DO MODERNISMO E RECEBE INSCRIÇÕES


           O grupo de pesquisas que tenho a honra de integrar na UFRRJ (Universidade Rural) , Discursos em Interfaces Contemporâneas, está promovendo, com o apoio da Capes,  o Seminário “MODERNISMO BRASILEIRO 90 ANOS: OUTRAS VANGUARDAS, NEOVANGUARDAS E PÓS-VANGUARDAS”  no Campus Seropédica de 3 a 6 de setembro.
      O evento é gratuito, as inscrições estão abertas,.  Para quem quiser apresentar comunicações o prazo é até o dia 20/08, para envio dos resumos.  À semelhança da 1ª edição do evento (Clássicos Revisitados), as comunicações selecionadas serão publicadas em livro eletrônico e as conferências em livro impresso.
            A temática do Seminário girará em torno dos três eixos em que ele está estruturado: 1. Semana de Arte Moderna: permanência e ruptura; 2. Vanguardas e contemporaneidade: diálogos nas artes e na literatura; 3. Vanguardas, neovanguardas e pós-vanguardas: literatura, outras artes, teoria e crítica.
O evento contará ainda com as participações já confirmadas de, entre outros,  Antonio Cícero, Eneida Maria de Souza, Hans-Ulrich Gumbrecht, Italo Moriconi, Jorge Fernandes da Silveira, Karl Erik Schollhammer, Luiz Costa Lima, Luiz Otávio Braga.

As informações completas sobre o evento estão aqui neste linkhttp://r1.ufrrj.br/wp/eventos/modernismo/

terça-feira, 7 de agosto de 2012

UMA CRÔNICA DE VINÍCIUS


O que eu mais gosto nesta crônica de Vinícius que posto aos meus leitores é seu último parágrafo.  É nele que o poeta explicita os fundamentos da sua lírica amorosa, que resplandece em versos como “e se não tivesse o amor melhor era tudo se acabar” ou na síntese do “Samba do Veloso”: “O tempo de amor/é tempo de dor/o tempo de paz/não faz nem desfaz.”

DA SOLIDÃO
 
   Sequioso de escrever um poema que exprimisse a maior dor do mundo, Poe chegou, por exclusão, à ideia  da morte da mulher amada. Nada lhe pareceu mais definitivamente doloroso. Assim nasceu "O corvo": o pássaro agoureiro a repetir ao homem sozinho em sua saudade a pungente litania do " nunca mais".

         Será esta a maior das solidões? Realmente, o que pode existir de pior que a impossibilidade de arrancar à morte o ser amado, que fez Orfeu descer aos infernos em busca de Eurídice e acabou por lhe calar a lira mágica? Distante, separado, prisioneiro, ainda pode aquele que ama alimentar sua paixão com o sentimento de que o objeto amado está vivo. Morto este, só lhe restam dois caminhos: o suicídio, físico ou moral, ou uma fé qualquer. E como tal fé constitui uma possibilidade - que outra coisa é a Divina comédia para Dante senão a morte de Beatriz? - cabe uma consideração também dolorosa: a solidão que a morte da mulher amada deixa não é, porquanto absoluta, a maior solidão.

             Qual será maior então? Os grandes momentos de solidão, a de Jó, a de Cristo no Horto, tinham a exaltá-la uma fé. A solidão de Carlitos, naquela incrível imagem em que ele aparece na eterna esquina no final de Luzes da cidade, tinha a justificá-la o sacrifício feito pela mulher amada. Penso com mais frio n'alma na solidão dos últimos dias do pintor Toulouse-Lautrec, em seu leito de moribundo, lúcido, fechado em si mesmo, e no duro olhar de ódio que deitou ao pai, segundos antes de morrer, como a culpá-lo de o ter gerado um monstro. Penso com mais frio n'alma ainda na solidão total dos poucos minutos que terão restado ao poeta Hart Crane, quando, no auge da neurastenia, depois de se ter jogado ao mar, numa viagem de regresso do México para os Estados Unidos, viu sobre si mesmo a imensa noite do oceano imenso à sua volta, e ao longe as luzes do navio que se afastava. O que se terão dito o poeta e a eternidade nesses poucos instantes em que ele, quem sabe banhado de poesia total, boiou a esmo sobre a negra massa líquida, à espera do abandono?

                 Solidão inenarrável, quem sabe povoada de beleza... Mas será ela, também, a maior solidão? A solidão do poeta Rilke, quando, na alta escarpa sobre o Adriático, ouviu no vento a música do primeiro verso que desencadeou as Elegias de Duíno, será ela a maior solidão?

                  Não, a maior solidão é a do ser que não ama. A maior solidão é a do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana. A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo, e que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro. O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e de ferir-se, o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo  entristece também tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes da emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto da sua fria e desolada torre.
 
Vinícius de Moraes. Para uma menina com uma flor, 1966.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

SUBSTÂNCIAS


A carne, que perece, pensa guardar
a substância do tempo;  na verdade mal
em mal se conserva e ceva
aquele verme e aquele outro enquanto
o tempo mesmo – este desconversa.

Entre os seres minúsculos e a glória
das alturas oscilantes, o tempo esquece
a carne, que com ele almeja confundir-se
- mas em vão;  e ela o que é é o que
cai, o que sobra, o que necrosa, o que cheira.

Acende um sorriso no rosto dos que dizem
“lei da gravidade”, felizes com o próprio
humor resignado e o amor-próprio
a extinguir-se, mas o sorriso é aceso
pelo tempo e apaga-se da carne.

Que esta em breve não susterá
o sorriso, o amor-próprio, o humor,
em breve um cheiro virá, forte
emprenhará  cada vão, toda prega,
e o cheiro, este sim – é da carne.