terça-feira, 14 de maio de 2013

Um poema antigo, de A TAL CHAMA O TAL FOGO


Meu primeiro livro, lançado em 2008, reunia poemas escritos em sua quase totalidade na década de 1980.  Como este, que posto a seguir, de 1989



POEMA EXPULSO

 
as palavras abrem falência
e os minutos duram os dias

 a dançarina e seu perfume
não sabem meu telefone

eu vou de novo
pra dentro dos engarrafamentos

terei cuidado com o menino
assim também com seu carrinho

dou a mão e atravesso o vento
a fuligem a zombaria o desmantelo

chegamos do outro lado
com o apuro dos sonâmbulos

sonho o relento e o ninho
sonho no meu pesadelo

(meu glorioso São Cristóvão
portador de Cristo, intercedei por nós)

outro dia que me vi
andando como há muito tempo
no zumbido dos zumbis
no prumo do meio-fio

a cidade me especula
cheia de pretos bonitos

tenho medo do minuto, do milênio
do eterno e de certas nucas

tenho medo da pele e de farpas
de vidros que o corpo expele

também de expelir silêncio
no tráfego das palavras

uma cidade estrangeira
me aguarda sem pressa
me guarda sem receio

compro a passagem e sigo
mas rumo ao engarrafamento?

vendo a vida e volto?

que portugal ou espanha
me seduz com seus arabescos
esguias ancas omoplatas abismos
de negros pentelhos?

que letra zomba ainda
de fora do desassossego?

que s ou f me falha
me salga? – tudo é fascínio

dentro de todo perigo
o mesmo que sou me guarda

de como antigamente
o mesmo engarrafamento
súbito me expele – cuido
do meu menino, penso tê-lo
perdido perdido no movimento

de irevir, vindo sempre vindo
no indo, no v, no verir

letras riem das palavras
(nem poderia ser diferente)

letras não fissuram a urgência
nem o frio nem o ardor
do instante seguinte à fala

letras são toda potência.
Inda assim melhor não dizê-lo

quanto ao amor,  a tela onde
tecê-lo será dada de súbito.

 
 
 
In: A tal chama o tal fogo.  Oficina Raquel, 2008.
 
Ilustração de Talarico
 
 
 
 
 
 
 

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