quarta-feira, 25 de junho de 2014

AH, UM SONETO... DE AVELINO DE ARAUJO

APARTHEID  SONETO
                       (1988)
 
 
 
Mais da poesia visual/intersemitótica de Avelino de Araujo no site dele mesmo, onde colhi este soneto.  Link: www.avelinodearaujo.com.br

quinta-feira, 19 de junho de 2014

MURILO MENDES

Ilustração de Talarico
 
 

O poema abaixo encerra o livro Tempo espanhol,  publicado por Murilo Mendes em Portugal   (Lisboa, Morais Editora) em 1959, em plena ditadura franquista.

 
 

O CRISTO SUBTERRÂNEO

Descubro um Cristo secreto
Que nasce na Espanha súbito.
 
Não é o Cristo vitorioso
Dos afrescos catalães,
Nem o Cristo de Lepanto
Suspenso por uma torre
De espadas, velas, paixões.
Não investe uma colina,
Não brilha no meio do altar
Entre ornamentos de prata.
Nem no palácio dos ricos,
Nem no báculo dos bispos.
É um Cristo quase secreto
Que nasce das catacumbas
Da Espanha não-oficial.
Nasce da falta de pão,
Nasce da falta de vinho,
Nasce da funda revolta
Contida pela engrenagem
Da roda de compressão.
Nasce da fé maltratada,
Vagamente definida.
 
É um Cristo dos operários
Atentos, em pé de greve,
Filhos de outros operários
Mortos na guerra civil.
É um Cristo dos estudantes
Sem dinheiro para as taxas.
É um Cristo dos prisioneiros
Que no silêncio cultivam
A pura flor da esperança.
É um Cristo de homens-larvas
Famintos, inacabados,
Morando em covas escuras
De Barcelona e Valência.
É um Cristo da experiência 
De padres inconformistas
Que não abençoam espadas
Nem incensam o ditador.
É um Cristo do tempo incerto.
É um Cristo do vir-a-ser,
Formado nos corações
Da Espanha que não se vê.
 

 

Murilo Mendes. Poesia completa e prosa.  RJ: Nova Aguilar, 1994.

terça-feira, 17 de junho de 2014

POEMAS EM NERVAL E EM MALLARMARGENS




            NERVAL é uma revista eletrônica de poesia contemporânea.  Na verdade trata-se de uma edição especial da revista FLAUBERT, que se dedica ao conto.  Ambas merecem ser conhecidas, pela qualidade e ousadia do projeto.  Neste primeiro número, NERVAL reuniu em suas 186 páginas vinte e seis poetas brasileiros destes nossos tempos.  Mariel Reis, seu editor,  assina o Editorial, do qual transcrevo a passagem:

            “Nerval, o nosso herói, provou do cálice de fel.  Eis a nossa reação, plural.  Leitores, meus queridos leitores, adentrem as veredas.  Diverti-los com malabarismos hermenêuticos, com o signo ígneo e com a imagem.  O sangue do poeta são as imagens, li em algum lugar.  Ei-las reunidas aqui caleidoscopicamente para alegrá-los das inúmeras possibilidades da poesia brasileira.”

 Às  páginas  de NERVAL  compareço com oito poemas.  Comigo estão os poetas André Ferraz, Caco Ishak, Claudia Schroeder, Daniel Seidl, Delfin, Demetrio Panarotto, Diego Grando, Everton Behenck, Florisvaldo Mattos, Homero Gomes, Jader Barbosa, Kátia Borges, Laurindo Santarritta, Luciano Lanzilotti, Marcelo Sandman, Márcio-André, Nydia Bonetti, Ramon Nunes Mello, Reinaldo Ramos, Ricardo Pozzo, Roberto Andreoni, Sandro Ornellas, Tagore Suassuna, Waldecy Paulo Pereira e Wilmar Silva.
 
A seguir vai o link para a revista, esperando que vocês gostem e a curtam bastante. 

http://issuu.com/revistaflaubert/docs/nerval004

Pelo convite para frequentar esta bela publicação, agradeço ao poeta amigo Anderson Fonseca, de quem este blog já teve a alegria de publicar um belíssimo poema em uma das primeiras postagens.



           
           Postei também recentemente em Mallarmargens – revista de poesia e arte contemporânea, da qual sou um mallarmago (autor fixo), meus recentes “Treze exercícios de magistério”, com ilustração de Talarico.  Confiram no link:
 
 

 

 

sábado, 14 de junho de 2014

ANGÉLICA FREITAS


ÍTACA

 

se quiser empreender viagem a ítaca
ligue antes
porque parece que tudo em ítaca
está lotado
os bares os restaurantes
os hotéis baratos
os hotéis caros
já não se pode viajar sem reservas
ao mar jônico
e mesmo a viagem
de dez horas parece dez anos
escalas no egito?
nem pensar
e os freeshops estão cheios
de cheiros que você pode comprar
com cartão de crédito.
toda a vida você quis
visitar a grécia
era um sonho de infância
concebido na adultidade
itália, frança: adultério
coisa de adultos?
não escuto resposta)
bem se quiser vá a ítaca
peça a um primo
que lhe empreste euros e vá a ítaca
é mais barato ir  á ilha de comandatuba
mas dizem que o azul do mar
não é igual.
aproveite para mandar emails
dos cybercafés locais
quem manda postais?
mande fotos digitais
torre no sol
leve hipoglós
em ítaca compreenderá
para que serve
a hipoglós.
 
 

Angélica Freitas.  Um útero é do tamanho de um punho.  CosacNaify, 2012.

 
 
 

domingo, 8 de junho de 2014

FRANCISCO ALVIM, VEJAM SÓ

 
 
 


... vejam só! descobri que este blog, que navega levianamente ao léu como um barco bêbado, contrariamente ao que se esperaria talvez de um empreendimento que à frente tem  um professor doutor em literatura, nunca publicou um poema, um mísero poema de FRANCISCO ALVIM, um dos poetas que mais amo dentre os surgidos da década de 1970 para cá.  Como é daquelas coisas que me soam inexplicáveis, para tirar o atraso e saldar a dívida vai aqui logo uma leva de sua poesia admirável, parente da prosa de Machado e Dalton Trevisan.

 



HISTÓRIA ANTIGA

Na época das vacas magras
redemocratizando o país
governava a Paraíba
alugava de meu bolso
em Itaipu uma casa
do Estado só um soldado
que lá ficava sentinela
um dia meio gripado
que passara todo em casa
fui dar uma volta na praia
e vi um pescador
com sua rede e jangada
mar adentro saindo
perguntei se podia ir junto
não me reconheceu partimos
se arrependimento matasse
nunca sofri tanto
jogado naquela velhíssima
jangada
no meio de um mar
brabíssimo
voltamos agradeci
meses depois num despacho
anunciaram um pescador
já adivinhando de quem
e do que se tratava
dei (do meu bolso) três contos
é para uma nova jangada
que nunca vi outra
tão velha
voltou o portador
com a seguinte noticia
o homem não quer jangada
quer um emprego público
 

 
APETITE
 
O problema do coelho
é que estava muito bom
mas
não tinha carne

 

QUER VER?

Escuta

 

ARGUMENTO

Mas se todos fazem

 

GREGORINHO

Mata o cachorro
e quando a dona acha ruim
diz
cala a boca senão vai junto

 

RESTO DE VIDA

A segurança nacional
está acima das legendas partidárias
o azar é dele
que quis enfrentar o Governo
só entra nessa quem quer
se um dia acontecer qualquer coisa aqui
vou morar na Suíça
onde tenho dinheiro para viver –
e muito bem –
o resto da vida

 

DISCORDÂNCIA

Dizem que quem cala consente
eu por mim
quando calo dissinto
quando falo
minto

 

SEM DENTES

Como vai?
Desse jeito

 

CASA PRÓPRIA

O emprego
não me cheira bem
mas o dinheiro
cheira

 

LUTA LITERÁRIA

Eu é que presto
 

 

DISSERAM NA CÂMARA
 
Quem não estiver seriamente preocupado e
perplexo
não está bem informado

 

MEU FILHO

Vamos viver a era do centauro
metade cavalo
metade também

 

LEOPOLDO

Minha namorada cocainômana
me procura nas madrugadas
para dizer que me ama
Fico olhando as olheiras dela
(tão escuras quanto a noite lá fora)
onde escondo minha paixão
Quando nos amamos
peço que me bata
me maltrate fundo
pois amo demais meu amor
e as manhãs empalidecem rápido
 

 
SOL DOS CEGOS

1. No cerne do instante
nada nos vê nada vemos
não nos explica o que somos
o que seremos
Matéria sem sonhos – nítida
matéria – nele nos temos
 
Sou astro, não sou estrela
meu calor não irradia –
a chama que me aquece
é fria
 
2. Sou astro, não sou estrela
minha luz não ilumina –
é lâmina com que me sangro
a retina
 
Francisco Alvim.  Poemas (1968-2000). 7Letras; CosacNaify, 2004.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

NA VARANDA


foi quando a Louca
começou a sua ronda
imperceptível
à qual de início não dávamos importância

até que meu pai insistiu e o levamos
mais uma vez até a varanda
onde há vários dias ele afirmava
avistar quem ali – a nossos olhos
nunca estivera

não há ninguém, veja com seus próprios
olhos, dissemos
e de fato ele nos mostrou e lá estava ela
a Louca
a que não mais desde então nos deixou
desde que
em seus passos quase imperceptíveis
para ela ele se encaminhou.