domingo, 31 de agosto de 2014

GERALDO CARNEIRO


OLHOS DE RESSACA

 

minha deusa negra quando anoitece
desce as escadas do apartamento
e procura a estátua no centro da praça
onde faz o ponto provisoriamente

eu fico na cama pensando na vida
e quando me canso abro a janela
enxergando o porto e suas luzes foscas
o meu coração se queixa amargamente

penso na morena do andar de baixo
e no meu destino cego, sufocado
neste edifício sórdido e sombrio
sempre mal e mal vivendo de favores

e a minha deusa corre os esgotos
esta rede obscura sob as cidades
desde que a noite é noite e o mundo é mundo
senhora das águas, dos encanamentos

eu escuto o samba mais dolente & negro
e a  luz difusa que vem do inferninho
no primeiro andar do prédio condenado
brilha nos meus tristes olhos de ressaca

 e a minha deusa, a pantera do catre
consagrada à fome e à fertilidade
bebe o suor de um marinheiro turco
e às vezes tem os olhos onde a lua

eu recordo os laços na beira da cama
percorrendo os álbuns de fotografias
e não me contendo enquanto me visto
chego à janela e grito pra estátua
 
se não fosse o espelho que me denuncia
e a obrigação de guerras e batalhas
eu me arvoraria em herói como você, meu caro,
pra fazer barulho e preservar os cabarés

 
in: Verão vagabundo.  RJ: Achiamé, s/d.
 
 
 

domingo, 24 de agosto de 2014

IDADE


Foram muitos os que passaram
serão menos os que virão.
Mascaram suavemente seu fumo,
e em grosso muco  o sumo
puro desfez qualquer ânsia.
Seu nome é tempo – dizem uns
e quietos se retiram, doces – , os dentes
embranquecidos entram no inventário
enquanto se dispõe em mudez
um testemunho expectante
de reminiscências. Qual a ciência
deste silêncio, que estranho
intervalo de urgências desfaz-se
em vestígios de extravagâncias
dispostas em lâminas que olhos
de legistas iluminam?
 
Menos os que aí me aguardam,
me toco agora, furtando-me a  vê-los. 
Com zelos dos que guardam
surpresas para os bailes vindouros
a sete chaves e bailes
que não mais ocorrerão,
socorro-me e lanço-me desafios
que mascaram a falange
dos rostos que me vestem
desde que por aqui vim ter, eu
o aguardado, o que malbaratou
as manhãs e mais todas as horas e sítios
amenos e desfez e magoou
nos embates e enlaces, e agora menos,
por fatal,  por tudo, pelo fraco impulso, 
crepuscular, pelo baixo tônus
de todos os músculos, menos agora,
que bem menos são os que
serão.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

WISŁWAWA SZYMBORSKA




RECITAL DA AUTORA

 

Musa, não ser um boxeador é literalmente não existir.
Nos recusaste a multidão ululante.
Uma dúzia de pessoas na sala,
já é hora de começar a fala.
Metade veio porque está chovendo,
o resto é parente.  Ó Musa.

As mulheres adorariam desmaiar nesta noite outonal,
e vão, mas só ao assistir uma luta colossal.
Só lá as cenas dantescas.
E o ascenso aos céus.  Ó Musa.

Não ser boxeador, ser poeta,
estar condenado a duras florbelas,
por falta de musculatura mostrar ao mundo
a futura leitura escolar – na melhor das hipóteses –
Ó Musa.  Ó Pégaso,
anjo eqüestre.

Na primeira fila um velhinho sonha docemente
que a finada esposa ressuscitou e
assa para ele um bolo com passas.
Com fogo, mas não alto, para o bolo não queimar,
começamos a leitura.  Ó Musa.
 

                                               Tradução de Regina Przybycien

 

Wislawa Szymborska.  Poemas.  SP: Companhia das Letras, 2011.

domingo, 10 de agosto de 2014

O golpe de 64 e a cultura: frustração, resistência e consciência do estrago

  Amigos, a seguir eu posto o link para a edição da revista PALAVRA, número 5, uma publicação do Setor de Literatura do SESC, na qual está este artigo de minha autoria.  A versão em PDF da revista pode ser aí obtida.

http://www.sesc.com.br/portal/publicacoes/cultura/revistas/revista+palavra/revista+palavra+2014/revista+palavra+2014

 A revista, recentemente lançada na FLIP, traz ainda um “Dossiê Millôr Fernandes” com textos de Renata Magdaleno e Breno Serafini; depoimentos de Lúcia Murat, Ignacio de Loyola Brandão e Chacal; artigos sobre o teatro  em torno do golpe de 64, de Sergio Carvalho e Paulo Bio, e sobre música popular, de Paulo Cesar de Araujo.  E a poesia e a prosa de, entre outros, Marcelo Diniz, B. Kucinski e Fabiano Calixto.

Mesa no café Literário do SESC na Flip, com Breno Serafini e Chacal


sexta-feira, 8 de agosto de 2014

FLORISVALDO MATTOS DUAS VEZES



            Já falei aqui da  minha alegria em ter sido convidado a publicar poemas na revista eletrônica Nerval, junto com mais 25 poetas destes nossos tempos,alguns cuja poesia já conhecia, outros que aos poucos estou ainda descobrindo.  Reitero o convite,  a quem ainda não foi lá, para que conheça a revista, que linko aqui:  http://issuu.com/revistaflaubert/docs/nerval004
            Uma presença que muito me honrou ao saber que compartilhávamos a mesma publicação  foi a do poeta baiano Florisvaldo Mattos.  Mattos é uma eminente figura da intelectualidade baiana, melhor dizendo, soteropolitana, que promoveu, a exemplo de João Carlos Teixeira Gomes e Glauber Rocha, entre outros, uma intensa agitação cultural na Salvador dos anos 60. Nascido em 1932 é professor aposentado da UFBA e jornalista. Por este link, chegamos a um belo perfil de sua atividade (que foi também onde colhi as fotos desta postagem): http://jeitobaiano.atarde.uol.com.br/?tag=florisvaldo-mattos

            A seguir  um dos poemas publicados em Nerval:



GALOPE AMARELO


Quando ele voltou
a moça do portão estava casada
o prefeito era uma cruz e uma placa
as aves mudaram de itinerário
como os ônibus
o irmão mais moço tomava ópio
para esquecer.
 
Quando ele voltou
o empregado da esquina respondera
a um processo
onde perdeu a esperança e os dedos
o pai fuzilara um estudante
a mãe fugira com um mascate.

Quando ele partiu
a primavera galopava nos rosais
os campos de begônia floresciam
o gado esturrava nos currais
a terra desafiada vicejava como
uma égua na véspera do galope.
 
Quando ele partiu
o alimento dos olhos era verdura
de paisagem além da cerca
as goiabas enchiam os cestos
as mulheres voltavam com os meninos
os velhos falavam de assombração
a lua espreitava o pátio e o quintal.
 
Quando ele voltou
o ministro citava o arquiteto
com a pretensão de restaurar
o tempo à revelia dos relógios
o muro substituía o horizonte
autoridades sonolentas distribuíam
o passaporte dos homens para o sanatório.
 
Quando ele voltou
as leis se haviam tornado ainda mais fósseis
as oligarquias muito mais poderosas
os poderosos mais astutos
o ministro lembrava “a pá sob os escombros”
o menino relia as manchetes da guerra
os preconceitos rimavam com a economia.

Quando ele voltou
havia uma encruzilhada e um alto-falante
a moça do portão estava casada
o irmão caçula era um soldado velho.


Quando ele partiu
a primavera galopava nos rosais.
Quando ele voltou
O céu era só um galope amarelo.


Florisvaldo Mattos em foto de 2011


            
             Mergulhando em direção à origem dos tempos, fui num esforço tentar me lembrar da primeira vez que o nome, de curiosas ressonâncias parnasianas, do poeta nada parnasiano, me apareceu.  E lembrei. E, para minha sorte, ainda tenho aqui a publicação.  Foi no número 2 da ANIMA, revista editada em 1976 por Abel Silva e Capinam, que durou justamente esses dois números, naquela barra pesada ainda dos anos de chumbo.  O poema era este aqui:

POEMA PREPOSICIONADO

                        a Glauber Rocha

Debaixo dessas pontes de limo
debaixo desses rios parados
por que nos quererão ativos
mas não honrados?

Por sobre esses verões poluídos
por sobre esses ventos domados,
por que nos quererão amigos,
mas não amados?

Diante desses mares vencidos,
diante desses muros inviolados,
por que nos quererão sorrindo,
no instante mais trágico?
 
Por entre roteiros proibidos,
por entre símbolos reinventados,
por que nos quererão perdidos
viajantes sem mapa?

Atrás dessas botas de verniz,
atrás dessas máscaras de aço,
por que nos quererão submissos
seres programados?

Nesse fosso de espanto e mito,
nessa fria massa de ocasos,
por que não paramos de rijo
o fóssil barco?

Com as ferramentas da vida
com os amantes com os amados,
por que logo não explodimos
a frágil máquina?
 
Fique no ouvido o som terrível,
cravem na carne os estilhaços,
antes me quero morto ou sofrido,
porém honrado.

Florisvaldo na década de 60,com Glauber



















































































































segunda-feira, 4 de agosto de 2014

CONVITE PARA O LANÇAMENTO DO NOVO LIVRO DE ROBERTO ACÍZELO DE SOUZA


        
            O professor Roberto Acízelo de Souza, depois de Uma ideia moderna de literatura , lançado em 2011 (veja aqui http://robertobozzetti.blogspot.com.br/2011/07/roberto-acizelo-de-souza-lanca-obra-de.html)  lança outra obra fundamental,  organizada por ele,   para o conhecimento da reflexão sobre os textos literários:  Do mito das Musas à razão das Letras  trata do que se refletiu a respeito dos textos literários, do período que vai do século 8 a. C ao século 18. Assim, completa-se retroativamente o que a cultura do Ocidente pensou como sendo literatura, um percurso que na obra anterior contemplava de fins do século 17 ao começo do século 20.  E,  assim como naquele livro, esses textos seminais reunidos aqui por Acízelo estão sendo lançados pela mesma Argos - Editora da Unochapecó.  Obra de referência fundamental, indispensável, como a anterior.