domingo, 31 de agosto de 2014

GERALDO CARNEIRO


OLHOS DE RESSACA

 

minha deusa negra quando anoitece
desce as escadas do apartamento
e procura a estátua no centro da praça
onde faz o ponto provisoriamente

eu fico na cama pensando na vida
e quando me canso abro a janela
enxergando o porto e suas luzes foscas
o meu coração se queixa amargamente

penso na morena do andar de baixo
e no meu destino cego, sufocado
neste edifício sórdido e sombrio
sempre mal e mal vivendo de favores

e a minha deusa corre os esgotos
esta rede obscura sob as cidades
desde que a noite é noite e o mundo é mundo
senhora das águas, dos encanamentos

eu escuto o samba mais dolente & negro
e a  luz difusa que vem do inferninho
no primeiro andar do prédio condenado
brilha nos meus tristes olhos de ressaca

 e a minha deusa, a pantera do catre
consagrada à fome e à fertilidade
bebe o suor de um marinheiro turco
e às vezes tem os olhos onde a lua

eu recordo os laços na beira da cama
percorrendo os álbuns de fotografias
e não me contendo enquanto me visto
chego à janela e grito pra estátua
 
se não fosse o espelho que me denuncia
e a obrigação de guerras e batalhas
eu me arvoraria em herói como você, meu caro,
pra fazer barulho e preservar os cabarés

 
in: Verão vagabundo.  RJ: Achiamé, s/d.
 
 
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário