domingo, 7 de dezembro de 2014

MANOEL DE BARROS



O MORTO

 I

A chuva lavou
As pessoas do morto
E lavou o morto
Com a sua fisionomia
De torto
E com seus pés de morto
Que arrastava um rio seco
E suas mãos de morto
Onde se dependurou
Insistente, um gesto oco.
À noite enterrou-se
O homem
Na raiz de um muro
Com sua roupa no corpo.
E a chuva regou no horto
Desse vitorioso
Homem morto
Enormes violetas
E uns caramujos férteis...
 
 
II

Veja esse morto como esgotou um por um seus segredos.
Sentando como um doutor
Veja que respeito nutre pelo silêncio...
Que morto!
Um piano dormindo no fundo de um poço
Não é mais cômodo que um homem morto num porto.
Veja que comodidade:
Ele não usará seus dedos nunca mais para pegar em moças...
Que morto!
 
 
Manoel de Barros. Gramática expositiva do chão (poesia quase toda). Civilização Brasileira, 1990.

 

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