Esta postagem remete à postagem do dia 28 de
dezembro de 2014, em especial ao que nela é dito a respeito de M. (Manuel) Cavalcanti
Proença. Para quem quiser, linko a
postagem aqui http://robertobozzetti.blogspot.com.br/2014/12/militares-sergio-macaco-e-outros-dois.html
Por ora apenas
saúdo, ou mais que isso, festejo (quem ler a primeira postagem facilmente
entenderá a razão) o que li em 3 Antônios
e 1 Jobim recentemente. Certo, o
livro, assim como o documentário que a
ele se vincula, foi lançado há mais de 20 anos, em 1993, não sendo portanto uma
novidade no mercado. Para quem não sabe,
tratou-se de uma reunião em fevereiro daquele ano de Antônio Callado, Antonio Candido, Antônio
Houaiss e Antônio Carlos Jobim. Eu tinha
visto o filme à época, agora ele circula na web (abaixo dou
dois links que os leitores podem acessar; eu os acessei ainda hoje e neles está
o filme completo). O livro, lançado ao mesmo tempo pela
Relume-Dumará, uma espécie de transcrição do que foi filmado (mesmo o que não
entrou na edição final), além de conter depoimentos individuais sob a forma de
entrevista dos quatro Antônios, eu nem sabia que existia. E ele guarda uma preciosidade que
particularmente muito me gratificou, sobre Proença. A cena ficou de fora da versão editada do
filme, o que é pena. É quando surge de repente nas
palavras de Houaiss o nome de Proença, não por acaso no curso de uma conversa
sobre as coisas brasileiras (quem leu o Roteiro
de Macunaíma, do mestre Proença, entende
perfeitamente a conexão). A fala de Houaiss é imediatamente glosada por Antonio
Candido, e tudo o que se segue é uma delícia,
de uma comovedora beleza que não resisto a transcrever aqui na íntegra. Leia-se:
“HOUAISS – Bem, eu queria contar uma história sobre o meu querido
amigo Manuel Cavalcanti Proença.
CANDIDO
– Foi ele quem me disse a coisa mais bonita que já ouvi sobre a amizade...
Certa vez José Aderaldo Castello organizou em São Paulo um curso sobre
literatura e cangaço. E eu fui ouvir a
aula do Proença, mas tive que sair antes de terminar, por um trabalho a
fazer...Passados dois dias encontro com ele e falo: ‘Proença, me desculpe,
rapaz, você está dando aula há vários dias, eu só pude ir a uma;cheguei depois
de começada, saí antes de terminar e além disso não te procurei...’ E ele me
disse: ‘Não se preocupe. Amizade boa é
feito brasa embaixo da cinza, não precisa soprar, ela está sempre acesa.’
HOUAISS
– Um grande brasileiro. Eu o vi em 1964 no Clube Militar, indignado,
coordenando uma reunião e se dirigindo aos militares como ‘seus gorilas’... e
por aí afora... Foi uma admiração total. Era um conhecedor do Brasil como pouca
gente.
CANDIDO
– Extraordinário conhecedor do Brasil e de literatura, um crítico de grande
categoria, com uma capacidade analítica fora do comum. O ensaio de interpretação crítica que ele
lançou sobre Grande sertão: veredas logo
após a publicação do romance é um monumento.
Manuel Cavalcanti Proença tinha um ouvido extraordinário para a prosa.
HOUAISS
– Tinha sim.
CANDIDO
– Grande figura. Quem o levou lá em casa
foi o Francisco de Assis Barbosa. Assim
eu vim a conhecê-lo. Ele tinha um jeito
engraçado, de homem do interior.
HOUAISS
– Você sabem que eu estava presente quando ele morreu? Foi assim: Manuel estava no sofá, ao meu
lado, com o braço estendido, conversando, e de repente ele tombou o rosto. Supusemos que dormitava, tão tranqüila era a
sua expressão. E estava morto.
CALLADO
– Onde foi isso?
HOUAISS
– Nós estávamos numa casa, no Rio Comprido, entre familiares. Foi uma das coisas mais pungentes que eu
vivi... Ele estava literalmente morto e continuava sorrindo. Não sofreu nada.
CANDIDO
– Que beleza de morte!
HOUAISS
– É a morte que a gente deseja.
CANDIDO
– É a morte que é desejável.
HOUAISS
- Transitou de um papo para a morte
sem nenhum escândalo para os companheiros.
(In: 3 Antônios e 1 Jobim: histórias de uma geração. RJ: Relume-Dumará, 1993)
Praticamente tudo o que é
dito nessas poucas frases contém uma mistura generosa de dignidade, grandeza,
sabedoria, tudo bem pesado entre a leveza da expressão e a gravidade do que é dito, mistura própria do brilho que emana de homens que foram grandes
conversadores. Mas além de tudo isso,
chama-me ainda a atenção, pequeno detalhe, a afirmação de Candido do “ouvido extraordinário para a
prosa”, que ele identifica no velho
Manuel. Em nossa atividade de
professores de literatura quantas vezes recorremos a excessivas simplificações - até porque os textos com que trabalhamos
estão cheios delas, até porque é preciso mesmo muitas vezes ganhar tempo, até
porque “ensinar literatura” , dependendo
do ponto, não deixa de ser dobrar-se de
boa-fé a um logro com a só esperança de que aqueles que "aprendem" descubram que é tudo infinitamente
mais rico do que pensamos ensinar, até porque enfim... – e uma dessas simplificações
é mostrar que uma das diferenças marcantes entre o verso e a prosa é que esta é
guiada sobretudo pela semântica, pelo significado, ao passo que no verso o som e
o sentido tendem a se equilibrar. É uma
simplificação, com fundo de verdade,
claro, mas se levada às últimas conseqüências, ao pé da letra, pode tornar surdo o leitor que não se abrir à
sonoridade que exigem obras em prosa do
porte de Iracema, Os sertões, Macunaíma e Grande sertão:
veredas, para ficarmos em alguns exemplos evidentes e que mereceram a atenção analítica do mestre(assim como a áspera dicção “prosaica” dos
versos de Augusto dos Anjos).
Pra encerrar, o dono deste blog sente-se um pouco mais
confortado em se deparar com menção – de resto, hoje tão rara... – a um autor que preza tanto. E aproveita para reiterar que, procurando uma
fotografia na internet que patenteasse o caboclo de “jeito engraçado de homem
do interior”, não encontrou uma só foto do velho Manuel. Apenas fotografias de capas de algumas de
suas obras, bem como retratos de seu filho Ivan, além de outros Proenças e nomes e
assuntos conexos. Mas fotografia não é
tudo. A obra de Proença fica. Antônios sabem.
Links para o documentário (acessados nesta data):