terça-feira, 27 de janeiro de 2015

PAISAGEM


Os homens indignos andam todos de cabeça erguida.
 

Os dignos não têm outra lembrança que não a de enterrar os filhos
e uma vez cumprido o terrível rito retiram-se para o ermo
em torno às cidades, onde em meio a resíduos de alumínio
cinábrio  pirita cacos diamantinos   limalhas em sangue pisado
ocorre-lhes contrair novas núpcias  e começar do zero
o projeto dos féretros em precipícios fatais
enquanto os ungidos lhes vendem pastorais e advertências
com promoções e abatimentos.
 

Um emissário das alturas fez ouvir a voz de suas insistentes promessas
até que passados alguns dias não se falou mais nisso
– abateu-se sobre  o orbe o silêncio de todos os antes e de todos os após:
não houve acordo possível com os patrocinadores.
 

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

M. CAVALCANTI PROENÇA, A AMIZADE E A MORTE DESEJÁVEL



      Esta postagem remete à postagem do dia 28 de dezembro de 2014, em especial ao que nela é  dito a respeito de M. (Manuel) Cavalcanti Proença.  Para quem quiser, linko a postagem aqui http://robertobozzetti.blogspot.com.br/2014/12/militares-sergio-macaco-e-outros-dois.html

      Por ora apenas saúdo, ou mais que isso, festejo (quem ler a primeira postagem facilmente entenderá a razão) o que li em 3 Antônios e 1 Jobim recentemente.  Certo, o livro, assim como o documentário  que a ele se vincula, foi lançado há mais de 20 anos, em 1993, não sendo portanto uma novidade no mercado.  Para quem não sabe, tratou-se de uma reunião em fevereiro daquele ano  de Antônio Callado, Antonio Candido, Antônio Houaiss e Antônio Carlos Jobim.  Eu tinha  visto o filme  à época, agora ele circula na web (abaixo dou dois links que os leitores podem acessar; eu os acessei ainda hoje e neles está o filme completo).  O  livro, lançado ao mesmo tempo pela Relume-Dumará, uma espécie de transcrição do que foi filmado (mesmo o que não entrou na edição final), além de conter depoimentos individuais sob a forma de entrevista dos quatro Antônios, eu nem sabia que existia.  E ele guarda uma preciosidade que particularmente muito me gratificou, sobre Proença.  A cena ficou de fora da versão editada do filme, o que é pena.  É quando surge de repente nas palavras de Houaiss o nome de Proença, não por acaso no curso de uma conversa sobre as coisas brasileiras (quem leu o Roteiro de Macunaíma, do mestre Proença,  entende perfeitamente a conexão).  A fala  de Houaiss é imediatamente glosada por Antonio Candido,  e tudo o que se segue é uma delícia, de uma comovedora beleza que não resisto a transcrever aqui na íntegra.  Leia-se:

            “HOUAISS – Bem, eu queria contar uma história sobre o meu querido amigo Manuel Cavalcanti Proença.
            CANDIDO – Foi ele quem me disse a coisa mais bonita que já ouvi sobre a amizade... Certa vez José Aderaldo Castello organizou em São Paulo um curso sobre literatura e cangaço.  E eu fui ouvir a aula do Proença, mas tive que sair antes de terminar, por um trabalho a fazer...Passados dois dias encontro com ele e falo: ‘Proença, me desculpe, rapaz, você está dando aula há vários dias, eu só pude ir a uma;cheguei depois de começada, saí antes de terminar e além disso não te procurei...’ E ele me disse: ‘Não se preocupe.  Amizade boa é feito brasa embaixo da cinza, não precisa soprar, ela está sempre acesa.’
            HOUAISS – Um grande brasileiro. Eu o vi em 1964 no Clube Militar, indignado, coordenando uma reunião e se dirigindo aos militares como ‘seus gorilas’... e por aí afora... Foi uma admiração total. Era um conhecedor do Brasil como pouca gente.
            CANDIDO – Extraordinário conhecedor do Brasil e de literatura, um crítico de grande categoria, com uma capacidade analítica fora do comum.  O ensaio de interpretação crítica que ele lançou sobre Grande sertão: veredas logo após a publicação do romance é um monumento.  Manuel Cavalcanti Proença tinha um ouvido extraordinário para a prosa.
            HOUAISS – Tinha sim. 
            CANDIDO – Grande figura.  Quem o levou lá em casa foi o Francisco de Assis Barbosa.  Assim eu vim a conhecê-lo.  Ele tinha um jeito engraçado, de homem do interior. 
            HOUAISS – Você sabem que eu estava presente quando ele morreu?  Foi assim: Manuel estava no sofá, ao meu lado, com o braço estendido, conversando, e de repente ele tombou o rosto.  Supusemos que dormitava, tão tranqüila era a sua expressão.  E estava morto.
            CALLADO – Onde foi isso?
            HOUAISS – Nós estávamos numa casa, no Rio Comprido, entre familiares.  Foi uma das coisas mais pungentes que eu vivi... Ele estava literalmente morto e continuava sorrindo.  Não sofreu nada.
            CANDIDO – Que beleza de morte!
            HOUAISS – É a morte que a gente deseja.
            CANDIDO – É a morte que é desejável.

            HOUAISS -  Transitou de um papo para a morte sem nenhum escândalo para os companheiros. 

    (In: 3 Antônios e 1 Jobim: histórias de uma geração.  RJ: Relume-Dumará, 1993)




       Praticamente tudo o que é dito nessas poucas frases contém uma mistura generosa de dignidade, grandeza, sabedoria, tudo bem pesado entre a leveza da expressão e a gravidade do que é dito, mistura própria do brilho que emana de homens que foram grandes conversadores.  Mas além de tudo isso, chama-me ainda a atenção, pequeno detalhe, a afirmação  de Candido do “ouvido extraordinário para a prosa”, que ele  identifica no velho Manuel.    Em nossa atividade de professores de literatura quantas vezes recorremos a excessivas simplificações  - até porque os textos com que trabalhamos estão cheios delas, até porque é preciso mesmo muitas vezes ganhar tempo, até porque “ensinar literatura” ,  dependendo do ponto, não deixa de ser dobrar-se  de boa-fé a um logro com a só esperança de que aqueles  que "aprendem" descubram que é tudo infinitamente mais rico do que pensamos ensinar, até porque enfim... – e uma dessas simplificações é mostrar que uma das diferenças marcantes entre o verso e a prosa é que esta é guiada sobretudo pela semântica, pelo significado, ao passo que no verso  o som e o sentido tendem a se equilibrar.  É uma simplificação,  com fundo de verdade, claro, mas se levada às últimas conseqüências, ao pé da letra,  pode tornar surdo o leitor que não se abrir à sonoridade   que exigem obras em prosa do porte de Iracema, Os sertões, Macunaíma e Grande sertão: veredas, para ficarmos em alguns exemplos evidentes e  que mereceram a atenção analítica do mestre(assim como a áspera dicção “prosaica” dos versos de Augusto dos Anjos). 
         Pra encerrar, o dono deste blog sente-se um pouco mais confortado em se deparar com menção – de resto, hoje  tão rara... – a um autor  que preza tanto.  E aproveita para reiterar que, procurando uma fotografia na internet que patenteasse o caboclo de “jeito engraçado de homem do interior”, não encontrou uma só foto do velho Manuel.  Apenas fotografias de capas de algumas de suas obras, bem como retratos de seu filho Ivan, além de outros Proenças e nomes e assuntos conexos.  Mas fotografia não é tudo.  A obra de Proença fica.  Antônios sabem.
 Links para o documentário (acessados nesta data):


 





domingo, 18 de janeiro de 2015

GONÇALVES DIAS

DEPRECAÇÃO





[“Porque os índios saíram das florestas e passaram a descer nas áreas de produção.”  Kátia Abreu, ministra da agricultura, em entrevista à Folha de S. Paulo em 05 de janeiro de 2015, numa demonstração tenebrosa de ignorância histórica e insensibilidade]






Tupã, ó Deus grande! cobriste o teu rosto
Com denso velâmen de penas gentis;
E jazem teus filhos clamando vingança
Dos bens que lhes deste da perda infeliz!



Tupã, ó Deus grande! teu rosto descobre:
Bastante sofremos com tua vingança!
Já lágrimas tristes choraram teus filhos,
Teus filhos que choram tão grande mudança.



Anhangá impiedoso nos trouxe de longe
Os homens que o raio manejam cruentos,
Que vivem sem pátria, que vagam sem tino
Trás do ouro correndo, voraces, sedentos.



E a terra em que pisam, e os campos e os rios
Que assaltam são nossos; tu és nosso Deus:
Por que lhes concede tão alta pujança,
Se os raios de morte, que vibram, são teus?



Tupã, ó Deus grande!  cobriste o teu rosto
Com denso velâmen de penas gentis;
E jazem teus filhos clamando vingança
Dos bens que lhes deste da perda infeliz.



Teus filhos valentes, temidos na guerra,
No albor da manhã quão fortes que os vi!
A morte pousava nas plumas da frecha,
No gume da maça, no arco Tupi!



E hoje em que apenas a enchente do rio
Cem vezes hei visto crescer e baixar...
Já restam bem poucos dos teus, qu’inda possam
Dos seus, que já dormem, os nossos levar.



Teus filhos valentes causavam terror,
Teus filhos enchiam as bordas do mar,
As ondas coalhavam de estreitas igaras,
De frechas cobrindo os espaços do ar.


Já hoje não caçam nas matas frondosas
A corça ligeira, o trombudo coati...
A morte pousava nas plumas da frecha,
No gume da maça, no arco Tupi!



O Piaga nos disse que breve seria
A que nos infliges cruel punição;
E os teus inda vagam por serras, pos vales,
Buscando um asilo por ínvio sertão!



Tupã, ó Deus grande! descobre o teu rosto:
Bastante sofremos com tua vingança!
Já lágrimas tristes choraram teus filhos,
Teus filhos que choram tão grande tardança.



Descobre o teu rosto, ressurjam os bravos
Que eu vi combatendo no albor da manhã:
Conheçam-te os feros, confessem vencidos
Que és grande e te vingas, qu’és Deus, ó Tupã!




In: Poemas de Gonçalves Dias.  Ediouro, s/d.






quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

JORGE GUILLÉN


LOS NOMBRES


Albor. El horizonte
entreabre sus pestañas,
y empieza a ver. ¿Qué? Nombres.
Están sobre la pátina


de las cosas. La rosa
se llama todavía
hoy rosa, y la memoria
de su tránsito, prisa.


Prisa de vivir más.
A lo largo amor nos alce
esa pujanza agraz
del Instante, tan ágil


que en llegando a su meta
corre a imponer Después.
Alerta, alerta, alerta,
yo seré, yo seré.


¿Y las rosas? Pestañas
cerradas: horizonte
final. ¿Acaso nada?
Pero quedan los nombres.


O poema “Los nombres” foi retirado do ótimo site de poesia em língua espanhola “Poesia em español – Spanish poetry”, cujo link dou abaixo.  http://www.poesi.as/Jorge_Guillen.htm







terça-feira, 6 de janeiro de 2015

CAMINHADA PISANA




Era dia, torso e fibra
era uma visão despida
aquela que eu perseguia
sem guia imagem enigma
(A tarde toldava os becos
vivazes do sol de Pisa
de uma luz sem atropelo
de um sossego comedido
quase próximo da morte:
Muralha entrada e saída).
Por entre blocos de pedra
onde é ranhura é que medra
a palavra poliedra
espraiando-se, e ao fazê-lo
enreda motos e séculos
o que é ponte e é edifício
passo cálculo comércio
sacerdócio e turismo
numa fala multiplexa
moçárabe macarrônica
doce e no entanto toscana
mercantil e piedosa.
No largo das avenidas
caminho pro cemitério
como quem vai a passeio
- e eu vou mesmo a passeio
mas o falcão sobre a pomba
atira-se da cimalha
e célere a arrebata
ao pé da estátua do Dante
- em que círculo a colomba
foi se entregar gotejante
à volteada rapina
do bico de seu verdugo?
Pergunto e sigo a passeio
ao campo santo adiante
entre estreituras de becos
e epifanias de nesgas
o sol em fachadas sólidas
aqui e ali esboroando-se
como kebabs na lâmina
do solícito hindu
que me serve o mata-fome
e não me nega a cerveja.
Gatos e mais gatos sornas
me olham desentendidos
junto aos bares junto às torres
junto às muralhas, ruínas
onde Ugolino e seus filhos
recendendo em embutidos
sorvetes tripas e pizzas
reencarnam sua vermina.