CARTA AOS “PUROS”
Ó
vós, homens sem sol, que vos dizeis os Puros
E em cujos olhos queima um lento fogo frio
Vós de nervos de nylon e de músculos duros
Capazes de não rir durante anos a fio.
Ó vós, homens sem sal, em cujos corpos tensos
Corre um sangue incolor, da cor alva dos lírios
Vós que almejais na carne o estigma dos martírios
E desejais ser fuzilados sem o lenço.
Ó vós, homens iluminados a néon
Seres extraordinariamente rarefeitos
Vós que vos bem-amais e vos julgais perfeitos
E vos ciliciais à idéia do que é bom.
Ó vós, a quem os bons amam chamar de os Puros
E vos julgais os portadores da verdade
Quando nada mais sois, à luz da realidade,
Que os súcubos dos sentimentos mais escuros.
Ó vós que só viveis nos vórtices da morte
E vos enclausurais no instinto que vos ceva
Vós que vedes na luz o antônimo da treva
E acreditais que o amor é o túmulo do forte.
Ó vós que pedis pouco à vida que dá muito
E erigis a esperança em bandeira aguerrida
Sem saber que a esperança é um simples dom da vida
E tanto mais porque é um dom público e gratuito.
Ó vós que vos negais à escuridão dos bares
Onde o homem que ama oculta o seu segredo
Vós que viveis a mastigar os maxilares
E temeis a mulher e a noite, e dormis cedo.
Ó vós, os curiais; ó vós, os ressentidos
Que tudo equacionais em termos de conflito
E não sabeis pedir sem ter recurso ao grito
E não sabeis vencer se não houver vencidos.
Ó vós que vos comprais com a esmola feita aos pobres
Que vos dão Deus de graça em troca de alguns restos
E maiusculizais os sentimentos nobres
E gostais de dizer que sois homens honestos.
Ó
vós, falsos Catões, chichisbéus de mulheres
Que só articulais para emitir conceitos
E pensais que o credor tem todos os direitos
E o pobre devedor tem todos os deveres.
Ó vós que desprezais a mulher e o poeta
Em nome de vossa vã sabedoria
Vós que tudo comeis mas viveis de dieta
E achais que o bem do alheio é a melhor iguaria.
Ó vós, homens da sigla; ó vós, homens da cifra
Falsos chimangos, calabares, sinecuros
Tende cuidado porque a Esfinge vos decifra...
E eis que é chegada a vez dos verdadeiros puros.
Vinícius de
Moraes. Poesia
completa e prosa. RJ: Nova Aguilar, 1987
Somente os muito tolos ou inexperientes no
quesito vida estranhariam a amizade entre dois poetas praticamente antípodas,
Vinícius e João Cabral. A partir da
antítese que fundou suas poéticas, eu mesmo durante muito tempo estranhava
sempre que lia que eram muito amigos.
Ponha-se isso em parte na minha pouca vivência, pouca compreensão das
relações humanas, em especial da amizade; de outra parte, ponha-se no fato de
ter vivido boa parte da vida num ambiente em que o campo da poesia brasileira
era muito faccionalizado. Acho mesmo que
deve continuar sendo – a rigor não sei, pois quero distância de “vida
literária” - , mas é que durante muito tempo João Cabral era lido como um dos
esteios do paideuma concretista e Vinícius como um neo-romântico, ou pior, um desleixado
“poetinha”. Os meandros disso, bom, é só se inteirar um pouco da história de
nossa poesia que se vão descobrindo coisas e coisas.
O
fato é que cultivaram a amizade, apesar de suas poéticas serem de fato duas
águas da poética brasileira modernista. Não lembro onde li que ao ler “Morte e
vida severina”, Vinícius teria se mostrado empolgado, ao que Cabral retrucara:
“Vinícius, esse poema não é pra você não, eu escrevi pra operário, você é
intelectual, tem que gostar é de ‘Uma faca só lâmina’”. O excelente filme de Bebeto Abrantes Recife Sevilha: João Cabral de Meo Neto, documentário de
2003, tem passagem saborosíssima a respeito da amizade dos dois (vale anotar
ainda a amizade de vida inteira de Cabral com Ledo Ivo, seu companheiro de
geração e de poética bem distinta e mesmo oposta – também nisso o filme de
Abrantes toca): numa gravação em fita de rolo em reunião social, Vinícius canta
acompanhando-se ao violão, quando se ouve a voz de Cabral: “Sem ser de amor
você não sabe fazer não, não é? Você só canta
o coração, não sabe cantar outra víscera?”
Vinícius reage bem humorado, dizendo que vai musicar os poemas bem
“cerebrinos” do pernambucano, “Vou musicar aqueles poemas da cabra, você vai
ver...” De permeio não se pode deixar de
frisar que Vinícius - “um lírico”, como
de forma desdenhosamente divertida Cabral a ele se referia, ou melhor, se
referia a todos os poetas que não fossem ele próprio, Cabral – é um dos pilares
da nada santíssima trindade bossanovista, ao lado de Tom Jobim e João Gilberto,
constituindo-se pois no grande pai poético da instituição MPB… Aos passo que para João Cabral a música não
passava do “menos desagradável dos ruídos”, como ouvi de viva voz o poeta dizê-lo
nos pilotis da PUC na Expoesia em 1975. Sobre
o Cabral antimúsico, Caetano Veloso lhe dedicou – e a João Donato, o músico
antipoeta – sua canção “Outro retrato” do CD Estrangeiro.
Me
lembrei dessas coisas todas ao topar dia desses com um poema de Vinícius que anda
bem a calhar para nossos tempos de obscurantismo, hipocrisia falsamente pura,
sacripantas vivendo em felicidade de maré montante. E ao reler a “Carta aos ‘Puros’”, lembrei
ainda da exegese poética rigorosa a que
lhe submete Cabral com seu “Ilustração para a Carta aos Puros”, de A educação pela pedra, livro de 1966 (o
poema de Vinicius é da década de 1950, parece).
Aqui Cabral lhe impõe o rigor do puro e do “puro”, através da depuração não purista de dois tipos
de cal. Dois belíssimos poemas.
Não
poderia deixar de ilustrar esta postagem com uma foto que amo – não sei quem é
o fotógrafo – dos dois poetas, no meio de suas andanças de diplomatas, que
ambos eram, numa Paris do anos 1960 com um icônico Citroën-sapo ao fundo.
ILUSTRAÇÃO PARA A “CARTA AOS PUROS” DE VINÍCIUS DE MORAES
A uma se diz cal viva: a
uma, morta;
uma, de ação até o ponto
de ativista,
passa de pura a purista
e daí passa
a depurar (destruindo o
que purifica).
E uma, nada purista e só
construtora,
trabalha apagadamente e
sem cronista:
mais modesta que
servente de pedreiro
aquém de salário mínimo,
de nortista
Uma cal sai por aí tudo,
vestindo tudo
com o algodãozinho alvo
de sua camisa,
de uma camisa que, ao
vestir de fresco,
veste de claro e de
novo, e reperfila;
e nas vezes de vestir
parede de adobe,
ou de taipa, de terra
crua ou de argila,
essa cal lhe constrói um
perfil afiado,
uma quina pura, quase de
pedra cantaria.
Uma cal não sai: se
referve em caieiras
se apurando sem fim a
corrosão e a ira,
o purismo e a intolerância
inquisidora,
de beata e gramatical,
somente punitiva;
se a deixassem sair,
sairia roendo tudo
(de tudo, e até de
coisas nem nascidas),
e no fim roídas as
fichas e indicadores,
se roeria os dentes:
enfim autopolícia.
João Cabral de Melo Neto. Obra completa.
RJ: Nova Aguilar, 2003.