(Aos formandos do Curso de
Letras, turma 2011-2 e "anexos", por ocasião da cerimônia no dia 20 de novembro
de 2015)
Dirijo-me aos formandos,
inicialmente para agradecer a escolha de meu nome e também para falar em nome
da ligação afetiva com esta turma, da proximidade no convívio cotidiano da
academia, e mesmo dos laços de efetiva amizade que estabelecemos alguns de nós.
Até porque talvez só mesmo laços muito fortes de amizade justificariam a
confiança demonstrada não apenas para uma cerimônia destas num feriadão, ainda
mais tendo sido o convite formalizado em cima da hora, o que me levou a algumas
observações e considerações vazadas numa linguagem bem pouco apropriada a ser
reproduzida aqui nesta cerimônia – aliás, em qualquer cerimônia.
Pois bem: é justo por causa desses
laços muito fortes que resolvo recusar o
discurso de viés mais afetivo (que tem sido o mais comum nestas cerimônias) e
procurar fazer algumas observações a serem levadas por vocês no arremate desta
etapa da vida. Não farei “um adeus de
discurso” – como diz Oswald de Andrade pela boca de João Miramar - , tampouco
um discurso de adeus. Não forçarei a
nota afetiva. Em vez disso, buscarei
encaminhar algumas reflexões.
Comecemos por falar não do “feriadão”
(perdendo – ou ganhando o dia, como ensinou Drummond), mas do feriado, deste
feriado: o Dia Nacional da Consciência Negra, feriado nacional criado em
janeiro de 2003, no atendimento democrático a uma iniciativa das demandas da
população negra organizada, feriado de caráter eminentemente democrático por
ser opcional, e que hoje se estende – viva
o google! – a 780 municípios brasileiros, que o celebram.
Numa visão bastante ingênua ou
meramente produtivista, existem aqueles que listam entre as causas do nosso
“atraso” enquanto país o “excessivo número de feriados”, como se ao suprimi-los
ou reduzi-los déssemos um importante passo como nação. Não vou aqui lembrar da França, onde há mais
feriados do que no Brasil, e que não é propriamente um país atrasado – aliás,
nestes dias sombrios que correm, uma das razões, se não a principal, de a
França ter sido, e ser ainda, alvo de ataques extremistas fundamentalistas é
justamente seu caráter de nação pioneira na consagração das conquistas
democráticas.
Aproveito então o “gancho” do feriado
para trazer algumas questões à reflexão de todos aqui. Como vocês me ouviram dizer muitas vezes em
sala de aula, vou “dar um passeio”, esperando não me perder antes de retomar o
início ao final, numa fala mais “encorpada”.
Dirijo-me prioritariamente à atenção da
turma de formandos, ou seja, – aqui lançando mão de referências mais familiares
a nós, “povo de Letras’, mas que serão, se cabíveis forem, de proveito para
todos, para o “público externo’ – aqui representado por amigos e familiais presentes
- , pois afinal é o trânsito entre o nosso saber específico -mas não
exclusivista – e o corpo geral da sociedade, é esse trânsito que deve dar
sentido à nossa formação, ainda mais numa universidade pública.
Aproveito, pois, o mote do Dia da Consciência
Negra, para dizer que Antonio Candido lembra Joaquim Nabuco, em O abolicionismo, que diz que uma das
dimensões da nossa catástrofe social histórica – e que, é preciso reconhecer,
agora se busca, com muita luta e muitas contradições, reverter – é a persistência
do drama humano trazido pela escravidão, que comprometeu para sempre o regime
de trabalho e de produção, fazendo com que gerações e gerações se acostumassem
as ver no trabalhador um objeto, e não um ser humano. Decorreu isso de que os antigos escravos,
mesmo com a abolição de lei em 1888, não foram incorporados à estrutura
social. Cito Candido: “O trabalho livre
se estabeleceu lentamente e sofreu uma influência benéfica da imigração
estrangeira. Italianos, sírio-libaneses,
alemães, espanhóis, os imigrantes fizeram o Brasil contemporâneo. Mas aí deu-se um fato que é bastante
grave. A oligarquia brasileira é tão
poderosa que coopta todas as sucessivas camadas dominantes. O imigrante aqui chega e, quando fica rico,
passa a tratar o empregado exatamente como foi tratado, como escravo. Quer dizer: a classe dominante brasileira não
é formada pelas mesmas famílias, mas as famílias que se vão sucedendo adotam o
mesmo comportamento.”
Como se vê, entramos numa espécie de
reprodução por inércia, quase um moto-contínuo para a perpetuação de nossas
iniquidades e indignidades como sociedade.
Darcy Ribeiro repetia serem as elites dominantes brasileiras talvez as
mais perversas do mundo e, numa frase que muito circula hoje pelas redes
sociais, dizia ainda que o fracasso da educação no Brasil, do ponto de vista
das elites não era um fracasso, era um projeto.
Projeto de educação definido também sinteticamente por Paulo Freire em
outra frase: “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o
opressor.”
Cito Darcy e Freire porque foram dois
homens que juntos estiveram e juntos “fracassaram” em seus projetos para a
educação, calados, cassados e perseguidos que foram com o golpe de 1964,
ambos. O governo autoritário e ilegítimo
– porque às custas de um golpe – que então se instalou, não custa lembrar ou
apenas informar aos mais desavisados, começou golpeando duramente a educação,
perseguindo, prendendo, assassinando, fazendo desaparecer estudantes e
professores – e não apenas – em muitos crimes de terrorismo de estado, que
continuam aí sem esclarecimento e sem punição, para nossa vergonha como nação.
Mas não apenas violência contra pessoas: fazendo desaparecer dos currículos
escolares qualquer coisa ligada ao ensino de filosofia, que lida, como sabemos,
com o exercício constante do pensamento crítico.
E se falo nesse período medonho para o
campo do saber é porque hoje em alguma medida ele parece querer reviver nos
sonhos de nossa desmemória endêmica e
manipulada. Mas sou otimista e considero
que, apesar das dificuldades e dos reveses, o pior não acontecerá. Seguiremos na seara democrática que, apesar
de tudo, sinaliza a existência de seus primeiros frutos. Falemos um pouco destes.
Li que ontem houve protestos, pelo
pessoal que organizou festejos da Semana de Consciência Negra, em frente ao
antigo prédio do DOPS na Rua da Relação, Centro do Rio. O local foi escolhido com a intenção de se
marcar um lugar de memória trevosa, de modo a afrontá-lo enquanto tal. Bem vinda afronta. Tenho inclusive razões pessoais para festejar
a boa ideia, pois frequentei o prédio semanalmente há quase quarenta anos,
quando, ao ser aprovado em concurso público, precisei obter um “atestado
ideológico” para ingresso na carreira, o que foi complicado, pois no ano anterior
eu havia sido presidente do diretório estudantil do meu curso de Letras. E para
conseguir nomeação e tomar posse num cargo público, era necessário o “nada
consta” de autoridades de resto ilegitimamente constituídas. Digo isso para lembrar que o país já foi
muito pior.
E se celebro essa afronta ao espaço
simbólico da repressão, não o faço em meu nome, um figurante obscuro de
importância relegada a uma subalterna quinta grandeza naquele quadro, mas
celebro para celebrar o que deve ser celebrado: as manifestações da cultura
negra, com cânticos, dança de capoeira, enfim... literalmente se sambou na cara
da sociedade repressiva – uma sociedade que, como lembrou Chico Buarque numa
entrevista, “pensa que é branca”. Esse
aspecto glorioso da celebração é simbólico daquilo que completa o que configura
a nossa seara democrática, que as conquistas das transformações sociais dos
últimos anos vêm lutando para sedimentar e que gosto de sintetizar assim: os
negros não voltarão para as senzalas, as mulheres não voltarão para as
cozinhas, o povo LGBT se organizou, suas vozes se fazem ouvir e, felizmente,
não mais de dentro dos armários, para onde não voltarão. Há muito a ser conquistado ainda, e cito
aqui, como exemplo, a dura luta a ser travada em favor da dignidade dos povos
indígenas. Mas, seja como for, viva o
Dia da Consciência Negra, viva Zumbi!
Há quarenta anos esta situação de
celebração era impensável: Jorge Ben Jor
cantava algo que parecia ser tão distante: “Eu só quero ver como vai ser quando
Zumbi chegar”. Os sinais estão aí de uma
chegada de Zumbi, nesta canção tantas vezes gravada e cantada em festejos
diversos. O mito se confunde por vezes
com a história e, se esta pode complementar e nos levar á depressão pelo
conhecimento objetivo do estágio repressivo que ela venha a flagrar – afinal,
lembram Caetano e Gil, “todos sabem como se tratam os pretos” – o mito pode
alimentar, se não a redenção, a perseverança na luta por dias mais justos.
Ora, afim ao mythos, como ao epos, por
vezes englobando a ambos, temos a literatura. Quando vocês me convidam, e aos
colegas de literatura, a desempenhar um papel tão importante neste momento,
posso, podemos interpretar isso como uma afirmação da literatura, de sua
prática, de seu ensino, de sua aprendizagem, de seu sentido mais
arraigado. Este não é simples, nem cabe
me estender aqui sobre ele – de resto, penso que já o fizemos muitas vezes
juntos - , mas a gradativa supressão que o ensino de literatura vem sofrendo no
ensino médio – sem falar no seu abastardamento ou pura e simples ausência nas
etapas anteriores de formação – é para nos deixar para lá de alertas. Não podemos abrir a guarda, não podemos abrir
mão do discurso literário, de seu papel de mediador, de aferidor, de
problematizador da malha de discursos, ainda mais numa sociedade tão penetrada
por autoritarismo, proveniente sobretudo da ignorância e da baixa e/ou
péssima escolaridade.
Se é inegável que assistimos nos
últimos anos – e os indicadores sociais estão aí mesmo, entre outras coisas
para nos livrarem de uma mídia comprometidamente venal – a uma significativa
inclusão social e diminuição da pobreza e da miséria, é inegável também que
muitos analistas têm apontado com razão que esse ganho se fez infelizmente mais
pela inclusão via consumo do que via educação.
E a batalha pela educação é aquela que nos chama agora a combater o bom
combate nas molduras da sociedade democrática, de instituições que apesar de
tudo têm se mostrado sólidas.
Encaminho agora a conclusão, procurando
amarrar os fios soltos na ponta do início.
Graciliano Ramos – este magnífico escritor, por sinal nascido no mesmo
estado da federação onde ficava o Quilombo de Palmares – em conversa com o
folclorista Câmara Cascudo saiu-se com esta, segundo conta seu biógrafo Dênis
de Moraes;
“Na casa dessa burguesia rica você pode
encontrar dez penicos de porcelana, mas não encontra dez livros. Não é que eu deseje tê-la [a essa burguesia,
bem entendido] como leitora de meus livros, mas isto mostra a indiferença pela
divulgação literária e a falta de estímulo à produção intelectual.”
Às vezes ouço falar que a literatura “é
uma atividade de elite”, que seria “um luxo”, que os escritores se entregariam
“a práticas elitistas”, coisas que tais.
Vou repetir aqui o que disse no correr de uma aula outro dia mesmo: Não vamos ofender deste modo a literatura ou
a atividade literária. Numa sociedade
cujas elites são perversas, boçais, obscurantistas, analfabetas, violentas e
assassinas, dizer que assim é a literatura é ofendê-la, é ofender a nós
todos. Não compactuemos com isso. Nesse sentido, vos conclamo.
Obrigado.